Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 612/2011, de 24 de Janeiro de 2012

TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 612/2011 Processo n.º 899 11 Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional I — Relatório 1 — Requerente e objecto do pedido O Provedor de Justiça apresentou ao Tribunal Cons- titucional, ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 2, alínea

d), da Constituição da República Portuguesa, um pedido de apreciação e declaração, com força obrigató- ria geral, da inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 14.º, n. os 1 e 3, 47.º, n.º 2, alínea

a), e 58.º do Decreto -Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto.

O teor das normas questionadas é o seguinte: Artigo 14.º Proprietárias de farmácias 1 — Podem ser proprietárias de farmácias pessoas sin- gulares ou sociedades comerciais. 2 — . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3 — As entidades do sector social da economia po- dem ser proprietárias de farmácias desde que cumpram o disposto no presente decreto -lei e demais normas regu- lamentares que o concretizam, bem como o regime fiscal aplicável às pessoas colectivas referidas no n.º 1. Artigo 47.º Contra -ordenações graves 2 — Constitui contra -ordenação punível com coima de € 5000 a € 20 000 o facto de:

a) A propriedade da farmácia pertencer a pessoa colec- tiva que não assuma a forma de sociedade comercial; Artigo 58.º Entidades do sector social da economia As entidades do sector social da economia que sejam proprietárias de farmácias devem proceder, no prazo de cinco anos a contar da entrada em vigor do presente decreto- -lei, às adaptações necessárias ao cumprimento dos requi- sitos previstos no artigo 14.º 2 — Fundamentos do pedido O Provedor de Justiça fundamentou o seu pedido de declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, nos seguintes termos: O Decreto -Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto, estabelece o regime jurídico das farmácias de oficina.

O diploma em apreço determina, como princípio ge- ral, no respectivo artigo 14.º, n.º 1, que podem ser pro- prietárias de farmácias pessoas singulares ou sociedades comerciais.

Concomitantemente, esclarece aquele decreto -lei, no n.º 3 do mesmo artigo 14.º, que «as entidades do sector social da economia podem ser proprietárias de farmácias desde que cumpram o disposto no presente decreto -lei e demais normas regulamentares que o concretizam, bem como o regime fiscal aplicável às pessoas colectivas refe- ridas no n.º 1», ou seja, às sociedades comerciais.

Na decorrência das regras mencionadas, estabelece o legislador, no artigo 47.º n.º 2, alínea

a), do diploma, que constitui contra -ordenação (grave, punível com coima de € 5000 a € 20000, a que podem acrescer as sanções aces- sórias elencadas no artigo 49.º) o facto de a propriedade da farmácia pertencer a pessoa colectiva que não assuma a forma de sociedade comercial.

Finalmente, e em sede de disposições finais, vem o legislador, no artigo 58.º obrigar as entidades do sector social da economia que sejam proprietárias de farmácias à data da entrada em vigor do diploma a procederem, no prazo de cinco anos a contar da sua entrada em vigor, às adaptações necessárias ao cumprimento dos requisitos previstos no artigo 14.º, a que acima se fez referência.

As regras do Decreto -Lei n.º 307/2007, que definem as entidades que podem ser proprietárias de farmácias e constam do seu artigo 14.º, n. os 1 e 3 (na parte relativa ao regime fiscal), e as regras que decorrem da imposição daquele estatuto [para o que aqui interessa, constantes dos artigos 47.º, n.º 2, alínea

a), e 58.º do diploma], as- sumidamente visam excluir as entidades do denominado sector social da economia da possibilidade de, enquanto entidades com a referida natureza, exercerem a actividade económica da venda de medicamentos e demais serviços prestados pelas farmácias. É o que claramente resulta do preâmbulo da lei: «Com o presente diploma, impõe -se a alteração da propriedade das farmácias que actualmente são detidas, designadamente, por instituições particulares de solidariedade social.

No futuro, estas terão de constituir sociedades comerciais, em ordem a garantir a igualdade fiscal com as demais farmácias.» O legislador exclui, pois, a possibilidade por parte das entidades do sector social de serem, enquanto tais (isto é na sua qualidade própria de entidades do sector social), proprietárias de farmácias.

As normas contidas nos artigos 14.º, n. os 1 e 3, 47.º, n.º 2, alínea

a), e 58.º do Decreto -Lei n.º 307/2007 mostram -se contrárias ao princípio da igualdade e ao princípio da pro- porcionalidade, bem como às normas da Constituição que visam a tutela e a promoção da actividade das entidades incluídas no denominado sector social e cooperativo, como sejam as que decorrem dos artigos 61.º, n. os 2 e 3, 63.º, n.º 5, e, muito especialmente, da garantia institucional da coexistência dos sectores público, privado e cooperativo e social, estabelecida no artigo 82.º da Constituição.

A exclusão das entidades do sector social do acesso à propriedade das farmácias implica, desde logo, uma vio- lação do princípio da igualdade.

A este propósito, mostra -se relevante chamar à colação a jurisprudência do Tribunal Constitucional, designadamente constante dos Acórdãos n. os 635/2006 e 236/2005. Estavam aí em causa normas legais que impediam as associações mutualistas de, em benefício dos seus as- sociados, exercerem a actividade funerária.

O Tribunal Constitucional entendeu não existir «fundamento legítimo e racional para o tratamento discriminatório das associa- ções mutualistas relativamente ao exercício da actividade funerária». Não havia, portanto, razão suficiente para excluir as associações mutualistas de uma actividade, obrigando -as a assumir a forma societária.

De igual forma, o legislador não pode, como pretende com a actual lei, vedar às instituições de solidariedade social o direito à propriedade de farmácias, obrigando -as a «travestir -se» de sociedades comerciais se quiserem pros- seguir uma actividade de saúde, com finalidades sociais, ou seja, não lucrativas.

As normas impugnadas do Decreto -Lei n.º 307/2007 violam, também, o princípio da proporcionalidade.

De facto, a imposição de determinado estatuto jurídi- co — de sociedade comercial — às entidades do sector social proprietárias de farmácias não passa a exigência de proporcionalidade no confronto com as duas ordens de razões que, segundo o preâmbulo do diploma, moti- varam o legislador a estabelecer a referida solução legal: a possibilidade de ser efectivado um apertado controlo administrativo da titularidade das farmácias (uma vez que a titularidade das farmácias está quantitativamente limitada a um máximo de quatro por pessoa colectiva), e a salvaguarda da igualdade fiscal entre as entidades das mesmas detentoras.

Desde logo, não se vislumbra de que modo essa im- posição da forma de sociedade comercial possibilita um controlo administrativo mais eficaz da titularidade da pro- priedade das farmácias, designadamente tendo em vista a fiscalização do cumprimento da regra, ínsita no artigo 15.º, n.º 1, do mesmo Decreto -Lei n.º 307/2007, que obriga a que nenhuma entidade possa deter ou exercer, em simultâ- neo, directa ou indirectamente, a propriedade, a exploração ou a gestão de mais de quatro farmácias.

Na verdade, sendo tarefa do Estado, atribuída pela Cons- tituição designadamente no respectivo artigo 63.º, n.º 5, a fiscalização, nos termos a concretizar na lei, da activi- dade e do funcionamento das instituições particulares de solidariedade social e de outras de reconhecido interesse público sem carácter lucrativo, tal atribuição fundamental do Estado, imposta pela Constituição, seria suficiente para permitir o controlo administrativo eficaz de que fala o legislador no preâmbulo do Decreto -Lei n.º 307/2007. Também não cumpre o pressuposto da proporcionali- dade o objectivo assumido pelo legislador de colocar em situação de igualdade fiscal todas as entidades proprietárias de farmácias, objectivo que tem naturalmente implícitas preocupações que se associam à garantia da concorrência num mercado de iniciativa privada.

Antes de mais, não se mostra tal solução adequada, na medida em que a questão da concorrência do sector social e cooperativo designadamente com o sector privado se porá, da mesma forma, em qualquer actividade eco- nómica, e não só na venda de medicamentos, no quadro próprio da existência e funcionamento destes sectores: o sector social, visando objectivos de solidariedade so- cial; o sector privado, garantido pelo «funcionamento eficiente dos mercados», através da «equilibrada con- corrência entre empresas» [cf. artigo 81.º, alínea

f), da Constituição]. A concorrência não obriga a que todas as pessoas que exerçam a mesma actividade assumam a mesma forma jurídica.

Por exemplo: para que uma entidade social fosse proprietária ou gerisse um lar de idosos ou um hospital, haveria a mesma de constituir -se em sociedade comercial? Poderá o Estado forçar a igualizar, pelo «mercado», rea- lidades históricas que nunca pertenceram ao «mercado» das empresas? O regime fiscal, podendo em teoria constituir um ele- mento com relevância para efeitos da concorrência, não tem uma influência diferente na actividade farmacêutica do que nas restantes actividades abertas aos sectores pri- vado e social — desde logo, da distribuição grossista de medicamentos —, e em que o exercício é feito de forma concorrencial.

Ou seja, a questão da concorrência entre os sectores pri- vado e social não tem contornos específicos na actividade farmacêutica que não assuma noutras actividades econó- micas, e que justifique que as entidades do sector social não possam, nesta qualidade, exercer aquela actividade, no âmbito dos seus fins próprios.

Acresce que, designadamente o Código do IRC prevê, no seu artigo 10.º, n. os 2 e 3, um conjunto de regras que, ao excluírem a isenção prevista no n.º 1, do mesmo artigo, precisamente visam anular ou atenuar os benefícios em sede de IRC de que gozam as...

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