Parecer n.º 25/2018

Data de publicação08 Março 2019
SeçãoParte D - Tribunais e Ministério Público
ÓrgãoMinistério Público - Procuradoria-Geral da República

Parecer n.º 25/2018

Ensino superior - Serviço docente - Autonomia universitária

Dispensa de prestação de serviço docente

1.ª A autonomia universitária é um direito fundamental, previsto no artigo 76.º da Constituição, que se projeta nos domínios pedagógico, científico, cultural, administrativo, financeiro, patrimonial, disciplinar e estatutário.

2.ª A autonomia estatutária das universidades significa a faculdade de cada instituição do ensino superior poder definir normativamente a sua própria organização interna e funcionamento, aprovando a sua «Constituição», convivendo neste domínio uma reserva de lei com uma reserva de estatuto.

3.ª O dever de o legislador ordinário não intervir excessivamente na regulação das matérias respeitantes à gestão das instituições universitárias de modo a respeitar o direito de autonomia consagrado no artigo 76.º, n.º 2, da Constituição, não invadindo o campo da reserva estatutária, corresponde a um dever de não tratamento imperativo com um grau excessivo de densidade ou de determinação normativa.

4.ª O disposto no artigo 90.º, n.º 2, do RJIES, deve ser lido como consagrando a faculdade dos reitores, presidentes, vice-reitores e vice-presidentes das instituições universitárias, quando sejam seus docentes ou investigadores, se assim o entenderem, desempenharem estes cargos com dispensa de prestação de serviço docente, não proibindo, contudo, que os estatutos dessas instituições atribuam igual faculdade a outros titulares de cargos de gestão.

5.ª O artigo 90.º, n.º 2, não é, pois, uma norma que enuncie taxativamente, num elenco exaustivo (numerus clausus), os cargos de gestão que podem ser exercidos por docentes dessa instituição em regime de dispensa total do serviço docente, pelo que os estatutos de cada instituição não estão impedidos de preverem igual faculdade para outros titulares de cargos de gestão para além dos mencionados no referido preceito legal.

6.ª A norma geral habilitante da previsão estatutária de dispensa de serviço docente para os docentes que exerçam cargos de gestão durante esse exercício é o disposto no artigo 67.º do RJIES quando determina que os estatutos devem conter as normas fundamentais da sua organização interna devendo regular, designadamente, a estrutura dos órgãos de governo e de gestão, a que se somam as normas específicas que, relativamente a determinados cargos, cometem aos estatutos o papel de definir o seu regime, incluindo a eventual faculdade de dispensa total de serviço docente para quem desempenha cargos de gestão.

7.ª Sendo deixados aos estatutos de cada instituição do ensino superior a liberdade de regular o regime dos pró-reitores, dos pró-presidentes, do provedor do estudante, do diretor de unidade de investigação e do coordenador da escola doutoral, nada impede, designadamente o disposto no artigo 90.º, n.º 2, do RJIES, que estatutariamente seja prevista a possibilidade dos titulares destes cargos beneficiarem também de dispensa de serviço docente, durante o seu exercício, se forem docentes daquela mesma instituição de ensino superior.

Este parecer foi votado na sessão do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, de 20 de dezembro de 2018.

Senhor Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior

Excelência:

I. Consulta

Solicita Vossa Excelência que o Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República tome posição, nos termos do artigo 37.º, a), do Estatuto do Ministério Público, sobre a legalidade da previsão estatutária da dispensa de serviço docente dos órgãos de gestão, criados ao abrigo da faculdade concedida pelo artigo 88.º do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior, designadamente do pró-reitor ou pró-presidente, do provedor do estudante, do diretor de unidades de investigação e do coordenador da Escola Doutoral.

A necessidade desta consulta é justificada pela existência de divergências entre a Inspeção-Geral da Educação e Ciência e a Secretaria Geral da Educação e Ciência quanto à legalidade das referidas previsões estatutárias.

Enquanto a primeira daquelas entidades, no âmbito das auditorias à distribuição do serviço docente a diversas instituições universitárias, tem entendido que, perante a inexistência de norma habilitante, a referida dispensa só poderá ser atribuída ao abrigo da autonomia das instituições de ensino superior, desde que seja respeitado o limite obrigatório de atribuição de 6 horas letivas por semana, no âmbito do Estatuto da Carreira Docente Universitária e do Estatuto do Pessoal Docente do Ensino Superior Politécnico, pelo que tem recomendado às instituições auditadas a alteração daquelas disposições estatutárias neste sentido, a Secretaria Geral de Educação e Ciência sustenta que tal limite de 6 horas letivas é apenas aplicável aos professores que exercem funções docentes, podendo ser dispensado àqueles que exercem funções de gestão. Segundo a opinião desta Secretaria, essa possibilidade encontra fundamento na crescente autonomia das instituições de ensino superior, com o consequente aumento da complexidade da sua gestão, afigurando-se, para além de constitucional e legalmente possível, razoável e justificado admitir que as instituições de ensino superior possam dispensar docentes ou investigadores que desempenham cargos de gestão de prestar serviço docente, sem prejuízo de estes o poderem prestar se assim o entenderem.

Cumpre, então, emitir parecer sobre esta questão.

II. O governo das instituições do ensino superior

O regime jurídico das instituições do ensino superior consta atualmente da Lei n.º 62/2007 de 10 de setembro (doravante identificado como RJIES), a qual se aplica a todos os estabelecimentos do ensino superior, ressalvando o disposto nos seus artigos 179.º e 180.º, e a legislação especial aplicável aos ensinos artístico e à distância (artigo 1.º, n.os 2 e 3, do RJIES).

Estão, pois, abrangidos por este regime as universidades, os institutos universitários e outras instituições do ensino universitário, os institutos politécnicos e outras instituições de ensino politécnico (artigo 5.º do RJIES).

Conforme qualificação do artigo 9.º do RJIES, as instituições do ensino superior públicas são pessoas coletivas de direito público que podem, em certas circunstâncias, revestir a forma de fundações públicas com regime de direito privado (que aqui não trataremos), estando por isso sujeitas, em tudo o que não contrariar o RJIES, assim como o disposto em outras leis especiais, ao regime aplicável às demais pessoas coletivas de direito público, de natureza administrativa, designadamente à lei-quadro dos institutos públicos, a qual tem neste domínio uma aplicação subsidiária.

No RJIES regula-se a constituição das instituições do ensino superior, as suas atribuições e organização, o funcionamento e competência dos seus órgãos e, ainda, a tutela e fiscalização do Estado sobre as mesmas, no quadro da sua autonomia (artigo 1.º, n.º 1, do RJIES).

São objeto de leis especiais, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, do RJIES:

a) O acesso ao ensino superior;

b) O sistema de graus académicos;

c) As condições de atribuição do título académico de agregado;

d) As condições de atribuição do título de especialista;

e) O regime de equivalência e de reconhecimento de graus académicos e outras habilitações;

f) A criação, modificação, suspensão e extinção de ciclos de estudos;

g) A acreditação e avaliação das instituições e dos ciclos de estudos;

h) O financiamento das instituições de ensino superior públicas pelo Orçamento do Estado, bem como o modo de fixação das propinas de frequência das mesmas instituições;

i) O regime e carreiras do pessoal docente e de investigação das instituições públicas;

j) O regime do pessoal docente das instituições privadas;

l) A ação social escolar;

m) Os organismos oficiais de representação das instituições de ensino superior públicas.

No artigo 11.º do RJIES enuncia-se um princípio constitucional estruturante do ensino universitário, em sentido amplo, abrangendo todas as instituições integrantes do ensino superior, dispondo o seu n.º 1:

As instituições de ensino superior públicas gozam de autonomia estatutária, pedagógica, científica, cultural, administrativa, financeira, patrimonial e disciplinar face ao Estado, com a diferenciação adequada à sua natureza.

Na verdade, no n.º 2, do artigo 76.º, da Constituição, introduzido pela revisão Constitucional de 1982 e aprofundado pelas revisões de 1989 e 1997, lê-se que as universidades gozam, nos termos da lei, de autonomia estatutária, científica, pedagógica, administrativa e financeira, sem prejuízo de adequada avaliação da qualidade de ensino.

A garantia constitucional do direito à autonomia das universidades reflete uma inflexão na compreensão das relações entre o Estado e o ensino superior, abandonando-se uma perspetiva centralista, com origem no período da monarquia absolutista, para se regressar às origens do ensino universitário europeu como espaço de liberdade de ensinar e aprender.

Conforme referiu Eduardo García de Enterría (1), a autonomia universitária constitui o instrumento essencial que transforma uma determinada organização numa universidade e que explica a sua vitalidade, a sua permanência ao longo dos tempos e, sobretudo, a sua possibilidade de renovação, ideia tão cara ao próprio desenvolvimento das sociedades humanas. Nessa perspetiva, a Universidade só pode assegurar a sua função de formação de novos académicos ou mesmo de meros profissionais, através de um ensino crítico, plural e não dogmático, que se coloca a si mesmo constantemente em causa, aberto à investigação e à mudança permanentes. A autonomia universitária significa em primeiro lugar, «liberdade de ciência e incorporação dessa liberdade no processo formativo», sendo para isso necessário um enquadramento institucional concreto que as torne possíveis e que só à própria Universidade cabe definir.

Como enuncia o transcrito artigo 11.º, n.º 1, do RJIES, essa autonomia institucional projeta-se nos domínios pedagógico, científico, cultural, administrativo, financeiro, patrimonial...

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