Parecer n.º 1/2008, de 11 de Janeiro de 2008

Parecer n. 1/2008

Dever de Identificaçáo - Identificaçáo de suspeito - Permanência em posto policial - Medida cautelar de polícia - Órgáo de polícia criminal - Medida restritiva da liberdade - Princípio de proibiçáo de excesso - Revogaçáo tácita

161/2004

Senhor Ministro da Administraçáo Interna, Excelência:

1

Acolhendo proposta da Inspecçáo -Geral da Administraçáo Interna (1) e sugestáo da Auditoria Jurídica do Ministério (2), dignou -se Vossa Excelência solicitar que «seja emitido, com carácter de urgência, parecer do Conselho Consultivo da PGR», sobre a questáo de saber se a Lei n. 5/95, de 21 de Fevereiro, se encontra em vigor e, na afirmativa, sobre a sua articulaçáo com o artigo 250. do Código de Processo Penal (3).

Cumpre dar satisfaçáo ao solicitado.

2

A Lei n. 5/95, de 21 de Fevereiro, de acordo com o sumário oficial, estabelece a obrigatoriedade do porte de documento de identificaçáo. O artigo 250. do Código de Processo Penal (CPP), integrado em capítulo relativo a medidas cautelares e de polícia, dispóe sobre identificaçáo de suspeito e pedido de informaçóes.

O objecto do parecer, relacionado com o controlo da identidade pelas forças de segurança, tem, pois, como principais referentes constitucionais os artigos 26., 27. e 272. da Constituiçáo.

2.1 - Na sequência da consagraçáo do direito à vida (artigo 24.) e do direito à integridade pessoal (artigo 25.), o artigo 26. da Constituiçáo consagra outros direitos pessoais, com realce para o direito à reserva da intimidade da vida privada (n. 1).

A identidade é uma das matérias protegidas pela reserva da intimidade da vida privada.

Defende -se, a este propósito, que, náo sendo constitucionalmente admissível a consagraçáo de um dever geral de identificaçáo dos cidadáos, a previsáo de hipóteses de controlo de identidade há -de respeitar os princípios a que obedece a restriçáo de direitos fundamentais (4).

2.2 - No artigo 27. a Constituiçáo consagra o direito à liberdade e à segurança.

Estes dois direitos, «embora distintos, estáo intimamente ligados desde a sua formulaçáo nas primeiras constituiçóes liberais»: o direito à liberdade significa «direito à liberdade física, à liberdade de movimentos, ou seja, direito de náo ser detido, aprisionado, ou de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado espaço, ou impedido de se movimentar»; o direito à segurança «significa essencialmente garantia de exercício seguro e tranquilo dos direitos, liberto de ameaças ou agressóes» (5).

Quanto ao direito à liberdade, vigora, desde a versáo originária da Constituiçáo, o princípio, expresso no n. 2 do artigo 27., de que «[n]inguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a náo ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisáo ou de aplicaçáo judicial de medida de segurança».

O n. 3 do artigo 27. enumera excepçóes a este princípio, cujo elenco foi ampliado nas revisóes constitucionais de 1982 (6) e de 1997 (7).

Em 1976 apenas se previa a prisáo preventiva [n. 3, alínea a)] e a prisáo ou detençáo de pessoa que tenha penetrado irregularmente no território nacional ou contra a qual esteja em curso processo de extradiçáo ou expulsáo [n. 3, alínea b)] (8).

Na revisáo de 1982, o artigo 27. foi alterado, com destaque para o alargamento dos casos enunciados no n. 3 (9).

Agora o artigo 27. da Constituiçáo prescreve: «Artigo 27.

(Direito à liberdade e à segurança)

1. Todos têm direito à liberdade e à segurança.

2. Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a náo ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisáo ou de aplicaçáo judicial de medida de segurança.

3. Exceptua -se deste princípio a privaçáo da liberdade, pelo tempo e nas condiçóes que a lei determinar, nos casos seguintes:

  1. Detençáo em flagrante delito;

  2. Detençáo ou prisáo preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisáo cujo limite máximo seja superior a três anos;

  3. Prisáo, detençáo ou outra medida coactiva sujeita a controlo judicial, de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou contra a qual esteja em curso processo de extradiçáo ou de expulsáo;

  4. Prisáo disciplinar imposta a militares, com garantia de recurso para o tribunal competente;

  5. Sujeiçáo de um menor a medidas de protecçáo, assistência ou educaçáo em estabelecimento adequado, decretadas pelo tribunal judicial competente;

  6. Detençáo por decisáo judicial em virtude de desobediência a decisáo tomada por um tribunal ou para assegurar a comparência perante autoridade judiciária competente;

  7. Detençáo de suspeitos, para efeitos de identificaçáo, nos casos e pelo tempo estritamente necessários;

  8. Internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente.

    4. [...]

    5. [...]»

    A redacçáo actual deste artigo data, como dissemos, da IV Revisáo Constitucional (1997), sendo de realçar, na óptica do objecto do parecer, a novel alínea g) do n. 3, que erige em excepçáo ao princípio de que ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a detençáo de suspeitos, para efeitos de identificaçáo, nos casos e pelo tempo estritamente necessários.

    A proposta de alteraçáo consta do projecto de revisáo constitucional n. 3/VII (PS) (10), onde surge enquadrada pela seguinte justificaçáo: «defesa do direito dos cidadáos à segurança e tranquilidade públicas, instituindo mecanismos que permitam reforçar a eficácia da justiça penal e, em geral, o combate à criminalidade com pleno respeito pelas garantias individuais; eliminaçáo de dúvidas sobre o regime constitucional da detençáo para identificaçáo» (11).

    Procurava -se, desse modo, clarificar a posiçáo da Constituiçáo em matéria de controlo da identidade dos cidadáos (12).

    A soluçáo aprovada vai no sentido da admissibilidade da detençáo de suspeitos, para efeitos de identificaçáo, nos casos e pelo tempo estritamente necessário (13).

    Por suspeito deve entender -se, em consonância com o disposto na alínea e) do artigo 1. do Código de Processo Penal, «toda a pessoa relativamente à qual exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou que nele participou ou se prepara para participar».

    De facto, reconhece -se que se trata de conceito oriundo do espaço semântico jurídico -penal e que só com referência a ele pode ser compreendido (14); aliás, náo se vê que a Constituiçáo náo queira acolher o conceito de suspeito constante da lei processual penal ou que «queira permitir à lei alguma margem de conformaçáo num domínio como este» (15).

    O «tempo» náo ficou quantificado, apesar de tal hipótese ter sido ventilada (16): os constituintes bastaram -se, neste aspecto, a par da remissáo para a lei, com uma dupla alusáo [na alínea g) e no proémio do n. 3] aos requisitos da necessidade e da proporcionalidade inerentes ao princípio da proibiçáo do excesso, a que está sujeita a aplicaçáo das medidas de polícia (17).

    2.3 - Nos termos do artigo 272. da Constituiçáo, a polícia «tem por funçóes defender a legalidade democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadáos» (n. 1); as medidas de polícia «sáo as previstas na lei, náo devendo ser utilizadas para além do estritamente necessário» (n. 2).

    Os princípios enunciados neste preceito constitucional sáo princípios gerais aplicáveis a todos os tipos de polícia (18), designadamente às diversas forças policiais quando actuam na veste de órgáos de polícia criminal, na acepçáo que o Código de Processo Penal atribui a esta expressáo (19).

    O n. 2 do artigo 272. da Constituiçáo prevê dois importantes princípios materiais relativamente às medidas de polícia: o princípio da tipicidade legal e o princípio da proibiçáo do excesso, assim enunciados (20):

    «O princípio da tipicidade legal significa que os actos de polícia, além de terem um fundamento necessário na lei, devem ser medidas ou procedimentos individualizados e com conteúdo suficientemente definido na lei, independentemente da natureza dessas medidas: quer sejam regulamentos gerais emanados das autoridades de polícia, decisóes concretas e particulares (autorizaçóes, proibiçóes, ordens), medidas de coerçáo (utilizaçáo da força, emprego de armas) ou operaçóes de vigilância, todos os procedimentos estáo sujeitos ao princípio da precedência da lei e da tipicidade legal.

    O princípio da proibiçáo do excesso significa que as medidas de polícia devem obedecer aos requisitos da necessidade, exigibilidade e proporcionalidade. Trata -se de reafirmar, de forma enfática, o princípio constitucional fundamental em matéria de actos públicos potencialmente lesivos de direitos fundamentais e que consiste em que eles só devem ir até onde seja imprescindível para assegurar o interesse público em causa, sacrificando no mínimo os direitos dos cidadáos. Nesta sede isto significa que o emprego de medidas de polícia deve ser sempre justificado pela estrita necessidade e que náo devem nunca utilizar -se medidas gravosas quando medidas mais brandas seriam suficientes para cumprir a tarefa.

    Entre as formas de exercício dos poderes de polícia por parte das autoridades de polícia (21), importa aqui considerar os actos de polícia, com destaque, dentro destes, para as medidas de polícia (22).

    Os actos de polícia, actos de natureza preventiva, «podem decorrer da vigilância ou ser independentes dela».

    Umas vezes configuram -se como actos genéricos, dirigindo -se a uma pluralidade de pessoas; outras vezes como actos individuais.

    Os actos de polícia com carácter unilateral e imperativo constituem «comandos dirigidos aos indivíduos pelas autoridades, cuja eficácia náo depende da aceitaçáo dos destinatários e a que estes devem obediência».

    Manifesta -se entáo com especial vigor nos actos de polícia «o privilégio da execuçáo prévia da Administraçáo».

    Do ponto de vista do seu conteúdo, os actos de polícia, ora impóem uma...

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