Parecer n.º 83/2005, de 12 de Agosto de 2008

Parecer n. 83/2005

Direito de reuniáo - Direito de manifestaçáo - Governador civil Autoridade administrativa - Competência

  1. ) Os direitos de reuniáo e de manifestaçáo, consagrados no artigo 45. da Constituiçáo, encontram -se regulados pelo Decreto -Lei n. 406/74, de 29 de Agosto, diploma que, genericamente, respeita o conteúdo essencial daqueles direitos;

  2. ) É vedada pela Constituiçáo a sujeiçáo do exercício dos direitos de reuniáo e de manifestaçáo a qualquer autorizaçáo prévia, seja de que entidade for, mas é conforme a essa proibiçáo constitucional a exigência, estabelecida no artigo 2. do Decreto -Lei n. 406/74, de uma comunicaçáo prévia a autoridades administrativas (governadores civis e presidentes de câmaras municipais, consoante o local de aglomeraçáo se situe ou náo na capital do distrito);

  3. ) As referidas autoridades administrativas podem proibir (impedir) a realizaçáo de reunióes ou manifestaçóes cujo fim ou objecto seja contrário «à lei, à moral, aos direitos das pessoas singulares ou colectivas e à ordem e à tranquilidade públicas» ou atente contra «a honra e a consideraçáo devidas aos órgáos de soberania e às Forças Armadas», nos termos das disposiçóes conjugadas dos artigos 1. e 3., n. 2, do Decreto -Lei n. 406/74;

  4. ) A prática de crimes no decurso de reunióes ou manifestaçóes consubstancia a contrariedade à lei dos fins prosseguidos por tais eventos e integra a previsáo do artigo 1., ex vi do artigo 3., n. 2, do citado diploma;

  5. ) A aludida proibiçáo de reuniáo ou manifestaçáo contrária à lei reveste a natureza de medida de polícia, pelo que, na respectiva decisáo, as autoridades administrativas competentes devem atender a critérios de necessidade, eficácia e proporcionalidade, como decorrência do disposto no artigo 272., n. 2, da Constituiçáo;

  6. ) Em concreto, a previsáo pelas autoridades administrativas da eventual prática de crime ou crimes no decurso de manifestaçóes, como pressuposto da respectiva decisáo de proibiçáo, tem de assentar numa razoável certeza de verificaçáo do facto típico (e náo numa mera presunçáo), ainda em aplicaçáo do princípio da proporcionalidade - devendo

    atender -se a aspectos como a maior ou menor exigência na demonstraçáo do preenchimento do tipo legal;

  7. ) Se numa concreta manifestaçáo que náo tenha sido objecto de proibiçáo prévia, por falta de fundamento bastante, ocorrer a efectiva prática de crimes, podem as autoridades policiais de segurança (Polícia de Segurança Pública, Guarda Nacional Republicana) interromper a sua realizaçáo e ordenar a respectiva dispersáo, ao abrigo do n. 2 do artigo 5. do Decreto -Lei n. 406/74, ou seja, «quando for (...) afastad[a] (...) da sua finalidade pela prática de actos contrários à lei ou à moral ou que perturbem grave e efectivamente a ordem e a tranquilidade públicas, o livre exercício dos direitos das pessoas ou infrinjam o disposto no n. 2 do artigo 1.» - desde que tal medida de polícia se afigure adequada segundo um critério de proporcionalidade;

  8. ) A actuaçáo policial em relaçáo aos participantes de manifestaçóes, individualmente considerados, que sejam eventuais autores de crimes cometidos no seu decurso, deve pautar -se pelos seguintes parâmetros:

    - a autoridade policial pode proceder à detençáo do autor do crime, seja em flagrante delito (v. g., se o facto criminoso foi cometido na sua presença), seja fora de flagrante delito, desde que verificados os respectivos pressupostos (artigos 255. e 257. do Código de Processo Penal), a ser submetida à apreciaçáo da autoridade judiciária competente;

    - a autoridade policial pode proceder, dentro do condicionalismo legal, à identificaçáo do suspeito e à sua revista, se necessário (artigos 250. e 251. do CPP);

    - a autoridade policial deve adoptar as medidas cautelares necessárias quanto aos meios de prova, nos termos legais (artigo 249. do CPP);

    - a autoridade policial deve levantar ou mandar levantar auto de notícia, se presenciar crime de denúncia obrigatória, e remetê -lo ao Ministério Público, valendo como denúncia [artigos 241., 242., n. 1, alínea a), 243. e 248.], ou comunicar ao Ministério Público denúncia (obrigatória ou facultativa) que lhe seja apresentada [artigos 241., 242., n. 1, alínea b), 244. e 248.].

  9. ) Independentemente da descrita actuaçáo policial durante ou após a realizaçáo de manifestaçóes em que ocorra a prática de crimes, é sempre possível - a todo o tempo, e sem prejuízo das regras sobre queixa e acusaçáo particular (artigos 113. a 117. do Código Penal) e sobre prescriçáo (artigos 118. a 121. do mesmo Código) - a instauraçáo de procedimento criminal contra os respectivos autores, com base na aquisiçáo da notícia do crime pelo Ministério Público, seja por conhecimento próprio, seja mediante denúncia (artigo 241.).

    Senhor Ministro da Administraçáo Interna, Excelência:

    I

    Dignou -se Vossa Excelência solicitar a este corpo consultivo (1) pare-cer sobre «as competências próprias dos Governadores Civis e demais autoridades administrativas no que respeita ao exercício do direito de manifestaçáo».

    A presente consulta foi suscitada pela concreta realizaçáo de uma manifestaçáo, em Lisboa, no dia 18 de Junho do presente ano, que os seus promotores alegaram constituir um protesto contra o aumento da criminalidade. Na comunicaçáo apresentada por três cidadáos ao Governador Civil de Lisboa, informando acerca da manifestaçáo, escreve- -se que «a marcha de protesto intitula -se "Menos criminalidade, mais segurança" e surge como protesto aos acontecimentos verificados na praia de Carcavelos e na vila de Coruche».

    A entidade consulente dá notícia de que «a mesma manifestaçáo foi publicamente promovida na Internet por uma organizaçáo denominada "Frente Nacional", com uma motivaçáo claramente distinta, que indiciava visar, ou poder vir a proporcionar, a prática de crimes de discriminaçáo racial (p. p. no artigo 240. do Código Penal)» (2).

    Neste contexto, pretende -se saber como proceder perante futuras iniciativas de carácter semelhante, para o que se apresentam a este Conselho três núcleos diferentes de questóes, que passamos a enunciar.

    Num primeiro núcleo, centrado nas competências dos governadores civis, pergunta -se o seguinte:

    a) Está o exercício do direito de manifestaçáo sujeito a autorizaçáo dos Governadores Civis, ou de outras entidades, ou a competência das autoridades administrativas está limitada à verificaçáo dos requisitos formais legalmente estabelecidos?

    b) Com que fundamento pode o Governador Civil, ou outra entidade administrativa, proibir uma manifestaçáo?

    c) Em concreto, podem os Governadores Civis - ou outras entidades administrativas - proibir a realizaçáo de manifestaçóes quando suspeitem que essas manifestaçóes dêem lugar à prática de actos criminosos, designadamente os p.p. no artigo 240. do Código Penal?

    35848 d) Caso se responda negativamente às questóes anteriores, podem as autoridades judiciais adoptar providências impeditivas da realizaçáo das manifestaçóes e, nesse caso, têm os Governadores Civis, ou outras entidades administrativas, legitimidade para as promover judicialmente?

    O segundo núcleo é apresentado do seguinte modo:

    Por outro lado, independentemente da legalidade da convocatória da manifestaçáo, ou mesmo dos seus propósitos, pode verificar -se no seu decurso a existência de comportamentos que se podem subsumir na prática de actos tipificados como criminosos.

    (...)

    Das imagens e relatos desta manifestaçáo [3], evidenciam -se actos que parecem, salvo melhor opiniáo, incitar à discriminaçáo, ao ódio ou à violência racial ou, pelo menos, constituem difamaçáo de grupos de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional. Ou seja, parece haver indícios da prática do crime p. p. no artigo 240., n. 1 a) e b), ou n. 2 b) do Código Penal.

    Em tais circunstâncias, importa esclarecer qual a competência das autoridades policiais que presenciam tais comportamentos:

    a) Podem/devem intervir para fazer cessar tal comportamento?

    b) Podem/devem proceder à identificaçáo, detençáo, ou pelo menos adoptar as medidas cautelares necessárias, tendo em vista a posterior instauraçáo do competente procedimento criminal?

    E prossegue -se, com a indicaçáo do terceiro núcleo de questóes: «Por fim, quando se verifique a posteriori tais comportamentos:

    1. Pode/deve haver lugar a procedimento criminal?

    2. Em caso afirmativo, quem terá legitimidade para o promover?»

    Do que se relata resulta que as questóes propostas estáo intimamente ligadas, pelo que se fará um tratamento geral do tema da consulta, após o que se apreciará discriminadamente cada um dos pontos em causa.

    Cumpre emitir parecer.

    II

    A problemática suscitada envolve, genericamente, duas vertentes: por um lado, indaga -se acerca dos poderes dos governadores civis quanto à convocaçáo de manifestaçóes susceptíveis de propiciar a prática de crimes, designadamente de discriminaçáo racial; por outro, pretende -se saber como devem actuar as autoridades policiais perante manifestaçóes em que tenha lugar a prática desses crimes.

    A consulta foi motivada por uma concreta manifestaçáo, em relaçáo à qual se refere que «parece haver indícios» de nela ter sido come-tido o crime previsto no artigo 240. do Código Penal. Possivelmente para evidenciar esse juízo sobre o conteúdo da manifestaçáo, foram enviadas cópias de recortes de imprensa e uma cassete de vídeo a ela respeitantes.

    Ora, esta circunstância justifica, desde logo, uma prevençáo liminar: do ponto de vista estatutário, o Conselho Consultivo tem a sua competência confinada à matéria de legalidade [artigo 37., alínea a), do Estatuto do Ministério Público (EMP) (4)]. Ou seja, náo investiga matéria de facto, pelo que está absolutamente fora da sua esfera de actuaçáo visionar cassetes de vídeo, designadamente para averiguar se foi ou náo praticado um qualquer crime (5).

    Em matéria criminal, a formulaçáo relevante de juízos de facto a partir da análise de meios de prova apenas pode ter lugar num processo jurisdicionalizado, cabendo...

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