Acórdão n.º 274/86, de 29 de Outubro de 1986

Acórdão n.º 274/86 Processo n.º 209/86 Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional: 1 Relatório O Presidente da República (PR) requer ao Tribunal Constitucional (T. Const.), nos termos dos n.os 1 e 3 do artigo 278.º da Constituição (CRP), a apreciação preventiva da constitucionalidade de um decreto aprovado em Conselho de Ministros e enviado para promulgação como decreto-lei, o qual se propõe disciplinar determinados aspectos do regime de isenções do imposto sobre o valor acrescentado (IVA), na área das chamadas exportações indirectas e outras operações conexas.

É do seguinte teor a fundamentação expendida no requerimento do PR: O Governo não invoca qualquer autorização legislativa, vindo regular de modo inovatório um dos casos de isenção do imposto sobre o valor acrescentado.

Pode estar-se, deste modo, perante a violação dos artigos 106.º, n.º 2, e 168.º, n.º 1, alínea i), da Constituição da República Portuguesa. Com efeito, a lei fundamental consagra expressamente que 'os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes' (artigo 106.º, n.º 2).

Ora, como é a Assembleia da República que tem a competência quanto à 'criação de impostos e sistema fiscal' (artigo 168.º, citado), estamos perante uma reserva de lei formal - que abrange não só as normas de incidência propriamente ditas, mas também todas as excepções à incidência, que são as isençõesfiscais.

No caso em apreço o legislador parece não se limitar a seguir o disposto no artigo 14.º, n.º 1, alínea b), do Código do IVA (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 394-B/84, de 26 de Dezembro), consagrando derrogações e restrições em relação a tal normativo.

Põe-se, assim, a dúvida sobre se estamos perante um novo regime de isenções quanto à matéria em causa. Aliás, o Governo solicitou na Lei do Orçamento para 1986 autorizações legislativas específica quanto ao IVA, não tendo sido aí abrangida esta matéria.

Acresce que o n.º 1 do artigo 2.º do projecto citado parece configurar um caso de discricionariedade da Administração quanto à definição de regras de incidência ao admitir a via regulamentar em matéria relativamente à qual existe reserva absoluta de lei.

Nestes termos, e em conclusão, as normas do projecto acima identificado parecem violar o disposto nos artigos 106.º, n.º 2, e 168.º, n.º 1, alínea i), da Constituição da República.

Chamado a pronunciar-se sobre o pedido de apreciação da alegada inconstitucionalidade do mencionado decreto, o Primeiro-Ministro (PM) veio contestar tal pedido, argumentando, à uma, que o requerente não especificou as normas que pretende ver apreciadas (salvo a do n.º 1 do artigo 2.º), e, à outra, que o diploma se limita a regulamentar aspectos do regime de isenções do IVA constante do respectivo compêndio legal [Código do IVA (CIVA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 394-B/84, de 26 de Dezembro].

Discorre assim o PM: 1 - Determina o n.º 1 do artigo 51.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, que o pedido de apreciação da constitucionalidade ou legalidade das normas jurídicas deverá especificar 'as normas cuja apreciação se requer'.

Ora na petição apresentada não se individualizam, com excepção da referência ao artigo 2.º, as normas sobre as quais S. Ex.' o Sr. Presidente da República tem dúvidas relativamente à sua conformidade com o disposto constitucionalmente.

Assim, e dispondo a Constituição, no n.º 1 do artigo 278.º, que 'o Presidente da República pode requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer norma constante de [...] decreto que lhe tenha sido enviado para promulgação como [...] decreto-lei [...]', poderá considerar-se que o pedido a que ora se responde não respeita o n.º 1 do artigo 51.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, pela ausência de especificação das normas eventualmente feridas de inconstitucionalidade.

2 - Importa, por isso, destrinçar, face ao solicitado por S. Ex.' o Sr. Presidente da República, o conteúdo do n.º 1 do artigo 2.º do referido decreto do restante normativo do mesmo diploma.

Ora, se se admitir que - embora seja defensável que a Directiva n.º 69/169/CEE (modificada), por instrumental quanto ao artigo 15.º da Sexta Directiva do IVA, não contém elementos substancialmente inovatórios quanto ao direito comunitário fiscal derivado já recebido na ordem interna - as normas de incidências constantes do artigo 2.º podem suscitar uma reflexão quanto à conformidade ou desconformidade com os tipos tributários vigentes, não colhe, no entanto, a pretendida introdução de um elemento de discricionariedade que S. Ex.' o Sr. Presidente da República aduz quanto ao artigo 2.º, n.º 1, não sendo aceitável a referencia à eventual violação do princípio de reserva absoluta de lei.

3 - Relativamente às restantes disposições não se julga susceptível de qualquer dúvida a sua conformidade com o disposto na lei fundamental, dado que se trata de um normativo de carácter meramente regulamentar, como a seguir se desenvolverá.

4 - Assim, da análise sucinta de cada um dos artigos resulta que: a) O artigo 1.º limita-se a concretizar os conceitos contidos na alínea b) do artigo 14.º do Código do IVA, em estrita obediência, de resto, à tradição da construção doutrinal e legislativa desses conceitos, sendo o seu n.º 4 meramente instrumental (ao tratar um aspecto probatório); b) As restantes disposições do projecto de decreto-lei sub judice, com a excepção do artigo 6.º, são manifestamente regulamentares de aspectos processuais internos e probatórios; c) O artigo 6.º refere-se a transmissões de bens com carácter comercial, matéria abrangida pelas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 14.º do Código do IVA, limitando-se aquela disposição a concretizar o âmbito de aplicação dos referidos preceitos do mesmo Código.

5 - Nestes termos, e com a ressalva feita em 2, o diploma resulta do exercício das competências próprias do Governo em matéria de regulamentação da lei fiscal, pelo que não põe em causa o princípio de reserva de lei formal.

Entende-se que não se põe também em causa o princípio de reserva absoluta de lei: não estabelece um novo regime de isenções; não restringe as garantias que a lei fiscal anterior sobre a matéria conferiu ao contribuinte; não ofende qualquer norma de direito comunitário fiscal derivado recebida no direito interno português; razões pelas quais, tudo visto, deverá o Tribunal Constitucional considerar improcedente o pedido de declaração de inconstitucionalidade, nos termos em que é formulado por S. Ex.' o Sr. Presidente da República.

O requerimento do PR e a resposta do PM delimitam o conjunto das questões que importa resolver. Além das questões de constitucionalidade suscitadas pelo PR, há que apreciar também a questão processual levantada pelo PM, que, pela sua natureza de questão prévia, exige se comece por ela.

2 Fundamentação 2.1 - A questão da especificação do pedido Com se referiu acima, o Governo começa por suscitar uma questão prévia impeditiva do conhecimento do pedido, invocando falta de especificação das normas questionadas no requerimento do PR. Torna-se necessário, naturalmente, começar por abordar este ponto, justamente porque ele condiciona decisivamente o âmbito do pedido: se houver que dar razão ao PM, então o pedido deve limitar-se ao n.º 1 do artigo 2.º do diploma em causa, pois é essa a única norma expressamente destacada no requerimento do PR.

Não existe margem para dúvidas de que o objecto dos pedidos de apreciação da constitucionalidade só pode ser uma norma ou um conjunto de normas. É expresso nesse sentido o artigo 278.º, n.º 1, da CRP quando dispõe que 'o Presidente da República pode requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer norma constante [...]'.

Por sua vez, o artigo 51.º, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional) - directamente referido pelo PM -, determina que 'o pedido de declaração da constitucionalidade [...] das normas jurídicas referidas nos artigos 278.º [...] da Constituição [...] deve especificar, além das normas cuja apreciação se requer [...]'.

É facilmente compreensível a razão de ser de tal requisito: trata-se de obrigar os órgãos competentes para desencadearem processos de fiscalização abstracta da constitucionalidade a delimitarem com precisão o âmbito do pedido, ou seja, as normas cuja constitucionalidade questionam.

Todavia, importa esclarecer dois pontos: por um lado, nada impede que seja pedida a apreciação da constitucionalidade de uma pluralidade de normas, incluindo todas as normas de um diploma; por outro lado, a razão de ser do requisito da especificação não exige que o pedido refira nominalmente a identificação singular (uma a uma) das disposições que se põem em causa, devendo considerar-se bastante uma fórmula que, de modo suficientemente preciso, delimite o conjunto das normas questionadas. Valem aqui as considerações produzidas a esse respeito num comentário à lei fundamental: Sendo a fiscalização preventiva um controle sobre normas (embora ainda imperfeitas) por iniciativa do PR ou do MR, a estes cabe a obrigação de identificarem as normas cuja constitucionalidade querem ver apreciada [...] Entretanto, essa identificação não precisa de ser directa e expressa, bastando uma indicação indirecta ou implícita, desde que suficientemente clara. [J. J.

Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.' ed., 2.º vol., Coimbra, 1985, p. 512; acrescentado o itálico da expressãofinal.] No caso pendente, o PR não identifica nominalmente, na primeira parte do seu pedido, as normas cuja apreciação requer e que, no seu entendimento, podem violar a reserva da competência legislativa da Assembleia da República (AR); limita-se a requerer a apreciação da constitucionalidade do 'projecto de decreto-lei'. Mas não são legítimas dúvidas sérias -tendo em conta essa expressão e o conjunto do pedido - de que o PR pretende ver apreciadas as...

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