Acórdão n.º 499/2008, de 17 de Novembro de 2008

Acórdáo n. 499/2008

Processo n. 717/07

Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:

I - Relatório. - 1 - O pedido.

O Presidente da Assembleia Legislativa da Regiáo Autónoma da Madeira, ao abrigo do artigo 281., n. 2, alínea g), da Constituiçáo da República Portuguesa (CRP), vem requerer a declaraçáo, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade e da ilegalidade das normas contidas nos artigos 19., n. 1, alínea c), 20. e 59. da Lei n. 2/2007, de 15 de Janeiro (Lei das Finanças Locais), preceitos relativos às relaçóes financeiras entre o Estado e os municípios.

As normas em causa, cujas epígrafes sáo, respectivamente, "Repartiçáo de recursos públicos entre o Estado e os municípios", "Participaçáo variável no IRS" e "Participaçáo no IRS em 2007 e 2008", dispóem da seguinte forma:

Artigo 19., n. 1, alínea c): "A repartiçáo dos recursos públicos entre o Estado e os municípios, tendo em vista atingir os objectivos de equilíbrio financeiro horizontal e vertical, é obtida através das seguintes formas de participaçáo: (...) Uma participaçáo variável de 5 % no IRS, determinada nos termos do artigo 20., dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respectiva circunscriçáo territorial, calculada sobre a respectiva colecta líquida das deduçóes previstas no n. 1 do artigo 78. do Código do IRS".

Artigo 20.: "1 - Os municípios têm direito, em cada ano, a uma participaçáo variável até 5 % no IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respectiva circunscriçáo territorial, relativa aos rendimentos do ano imediatamente anterior, calculada sobre a respectiva colecta líquida das deduçóes previstas no n. 1 do artigo 78. do Código do IRS.

2 - A participaçáo referida no número anterior depende de deliberaçáo sobre a percentagem de IRS pretendida pelo município, a qual deve ser comunicada por via electrónica pela respectiva câmara municipal à Direcçáo -Geral dos Impostos, até 31 de Dezembro do ano anterior àquele a que respeitam os rendimentos.

3 - A ausência da comunicaçáo a que se refere o número anterior ou a recepçáo da comunicaçáo para além do prazo aí estabelecido equivale à falta de deliberaçáo.

4 - Caso a percentagem deliberada pelo município seja inferior à taxa máxima definida no n. 1, o produto da diferença de taxas e a colecta líquida é considerado como deduçáo à colecta do IRS, a favor do sujeito passivo, relativo aos rendimentos do ano imediatamente anterior àquele a que respeita a participaçáo variável referida no n. 1, desde que a respectiva liquidaçáo tenha sido feita com base em declaraçáo apresentada dentro do prazo legal e com os elementos nela constantes.

5 - A inexistência da deduçáo à colecta a que se refere o número anterior náo determina, em caso algum, um acréscimo ao montante da participaçáo variável apurada com base na percentagem deliberada pelo município.

6 - Para efeitos do disposto no presente artigo, considera -se como domicílio fiscal o do sujeito passivo identificado em primeiro lugar na respectiva declaraçáo de rendimentos.

7 - O produto da participaçáo variável no IRS é transferido para os municípios até ao último dia útil do mês seguinte ao do respectivo apuramento pela Direcçáo -Geral dos Impostos."

Artigo 59.: "Em 2007 e 2008, a participaçáo a que se refere a alínea c) do n. 1 do artigo 19. é de 5 %."

3 - Fundamentos do pedido

3.1 - De inconstitucionalidade

Para fundamentar o seu pedido, o Presidente da Assembleia Legislativa da Regiáo Autónoma da Madeira utilizou vários argumentos que de seguida seráo expostos:

  1. Violaçáo do dever de solidariedade do Estado para com as regióes autónomas

    Em breves palavras, invoca -se a violaçáo do princípio constitucional da solidariedade do Estado para com as Regióes Autónomas, extraído dos artigos 225., n. 2, da CRP ("o artigo 225., n. 2, da Constituiçáo (...) náo deixa de ser sensível à construçáo de um dever de solidariedade nacional em prol das Regióes Autónomas"), 227., n. 1, alínea j) (este

    preceito, "sendo mais específico, faz ancorar uma possível dimensáo do dever de solidariedade nacional numa perspectiva tributária"), e 229., n. 1 ("Ainda noutro trecho, a Constituiçáo Portuguesa volta a lembrar este dever de solidariedade nacional para com as Regióes Autónomas"), por força da "reduçáo do montante até 5 % da receita do IRS que deve ser totalmente atribuída à Regiáo Autónoma da Madeira", sendo essa "situaçáo tanto mais chocante quanto é certo se acentuarem as disparidades derivadas do carácter insular do território do arquipélago da Madeira, que assim vê decepada uma parte considerável das receitas financeiras de que precisa".

  2. Violaçáo dos direitos autonómicos na participaçáo das receitas dos impostos estaduais gerados e cobrados nas regióes autónomas

    A este propósito é alegada uma orientaçáo constitucional geral, segundo a qual a autonomia regional náo se concebe sem uma autonomia financeira, "pela qual as Regióes Autónomas pudessem dispor de receitas próprias, nos vários tipos de receitas financeiras existentes". No entender do Requerente, "resulta evidente que a partilha, ainda que limitada, de uma receita regional com os municípios - no caso das receitas de IRS gerado e cobrado na Regiáo Autónoma da Madeira - náo se afigura conforme a esta orientaçáo constitucional".

  3. Violaçáo do direito, constitucional e legal, de audiçáo das regióes autónomas

    Por último, é invocado um vício de natureza procedimental resultante de a "Regiáo Autónoma da Madeira náo ter sido devidamente auscultada na instruçáo do procedimento legislativo de elaboraçáo da Lei do Orçamento de Estado para 2007" [certamente um lapso do autor do pedido, pois do que se trata é da nova Lei das Finanças Locais], o que consubstanciaria a violaçáo do direito de audiçáo consagrado no artigo 229., n. 2, da CRP, e concretizado nos artigos 90. e seguintes do Estatuto Político -Administrativo da Regiáo Autónoma da Madeira (doravante EPA -RAM - aprovado pela Lei n. 130/99, de 21 de Agosto) e na Lei de audiçáo dos órgáos de governo próprio das Regióes Autónomas (Lei n. 40/96, de 31 de Agosto). De forma mais concreta, é referido que um tal direito constitucional e legalmente consagrado náo foi respeitado no caso em análise, uma vez que a "Assembleia da República náo voltou a ouvir a Assembleia Legislativa da Regiáo Autónoma da Madeira após ter introduzido alteraçóes substanciais no texto que viria a ser a versáo final da Lei das Finanças Locais em comparaçáo com a versáo inicialmente apresentada". Deste modo, prossegue -se, "a omissáo de uma segunda audiçáo por parte da Assembleia da República infringiu por completo o núcleo essencial deste direito de audiçáo, ao náo lhe [à Assembleia Regional] ter dado a oportunidade de uma segunda pronúncia, e impedindo -se assim de levar à consideraçáo do decisor legislativo novos argumentos que este eventualmente devesse ponderar para assumir uma soluçáo definitiva". Este "segundo dever adicional de audiçáo, que corresponde a um direito adicional de pronúncia por parte da Assembleia Legislativa" decorre de forma inequívoca da Lei n. 40/96, mais concretamente do seu artigo 7. (realce nosso)

    3.2 - De ilegalidade

    Sáo apontados dois fundamentos para a ilegalidade das normas em questáo:

  4. Violaçáo da norma do Estatuto Político -Administrativo da Regiáo Autónoma da Madeira que garante a totalidade da receita gerada no território regional em sede de IRS

    Quanto a este específico fundamento, invoca -se que náo foi respeitado o n. 1 do artigo 112. (Receitas fiscais) do EPA -RAM, o qual estabelece que "sáo receitas fiscais da Regiáo, nos termos da lei, as relativas ou que resultem, nomeadamente, dos seguintes impostos: a) Do Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares".

    Argumenta -se que esta norma deve ser lida à luz do artigo 107., n. 3, do EPA -RAM, relativo ao poder tributário da Regiáo ("A Regiáo dispóe, nos termos do Estatuto e da lei, das receitas fiscais nela cobradas ou geradas, bem como de uma participaçáo nas receitas tributárias do Estado, estabelecida de acordo com um princípio que assegure a efectiva solidariedade nacional, e de outras receitas que lhe sejam atribuídas e afecta -as às suas despesas") e, de forma mais genérica, daquela orientaçáo constitucional geral, já mencionada, que se consubstancia na afirmaçáo da autonomia financeira das Regióes Autónomas.

    Ora, alega -se que a Lei das Finanças Locais (mais concretamente, aqueles preceitos acima mencionados), "ao determinar a possibilidade de partilhar essa receita, unicamente regional, com os municípios, implica uma derrogaçáo parcial desta norma estatutária, o que se afigura inadmissível". Inadmissibilidade fundada na circunstância de que "a

    46978 norma estatutária tem uma posiçáo reforçada em relaçáo a uma lei comum, como é a Lei das Finanças Locais, dada a funçáo que se reconhece aos Estatutos Político -Administrativos das Regióes Autónomas de, no sistema político regional, valerem como sub -Constituiçóes, assim prevalecendo sobre quaisquer outras normas legais que náo possuam valor reforçado".

  5. Violaçáo superveniente da norma da Lei das Finanças das Regióes Autónomas que garante a totalidade da receita gerada na Regiáo da Madeira em sede de IRS

    Um outro fundamento de invalidade das normas em análise prende-se com o facto de que elas se tornaram ilegais por força da entrada em vigor da Lei Orgânica n. 1/2007, de 19 de Fevereiro (Lei das Finanças das Regióes Autónomas).

    Mais concretamente, elas atentaráo contra o artigo 16. deste diploma legal, nos termos do qual "constitui receita de cada Regiáo Autónoma o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares: a) Devido por pessoas singulares consideradas fiscalmente residentes em cada Regiáo, independentemente do local em que exerçam a respectiva actividade".

    A leitura deste preceito deverá ser conjugada com o artigo 51., n. 1, do mesmo diploma, o qual dispóe que "as competências administrativas regionais, em matéria fiscal, a exercer pelos governos e administraçóes regionais respectivas, compreendem: (...)...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT