Acórdão n.º 486/2008, de 11 de Novembro de 2008

Acórdáo n. 486/2008

Processo n. 1217/07

Acordam na 2.ª Secçáo do Tribunal Constitucional:

Relatório. - Maria José Canastra Cataláo veio requerer nos autos de falência de J. Mendes & Gonçalves, L.da, a correr termos no Tribunal Judicial de Ansiáo (processo n. 65/03.3TBANS), que o liquidatário cumprisse o contrato -promessa de compra e venda de imóvel que a sociedade falida havia celebrado consigo, outorgando a respectiva escritura.

O liquidatário respondeu, alegando que o referido contrato -promessa se extinguiu com a decretaçáo da falência.

Foi proferido despacho indeferindo o requerido.

Deste despacho recorreu a requerente para o Tribunal da Relaçáo de Coimbra, que, por acórdáo proferido em 17 de Abril de 2007, negou provimento ao recurso.

Deste acórdáo recorreu a requerente para o Supremo Tribunal de Justiça, que náo admitiu o recurso interposto.

Recorreu entáo a requerente do acórdáo proferido pelo Tribunal da Relaçáo de Coimbra para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n. 1 do artigo 70. da LTC, nos seguintes termos:

1 - Pretende ver -se apreciada a inconstitucionalidade do artigo 164. -A do CPREF, na interpretaçáo seguida pelo Tribunal da Relaçáo de Coimbra, segundo a qual a declaraçáo de falência faz extinguir os direitos estabelecidos no artigo 830. do Código Civil apenas quanto à parte náo falida, podendo a parte falida, na pessoa do Liquidatário, exercê -los livremente e sem quaisquer limitaçóes.

Na verdade, entendeu o Tribunal da Relaçáo de Coimbra que ao interesse de uma das partes se contrapóe o interesse de várias partes, interesse(s) este(s) último(s) cuja protecçáo está a cargo do Liquidatário, sendo sempre de considerar precária a natureza do contrato promessa 'quando confrontado com a problemática das dívidas da massa falida'.

Tal interpretaçáo do referido artigo 164. -A do CPREF, viola os princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da adequaçáo e da boa fé, designadamente viola os artigos 12., 13., 18. e

20. n. 1 da Constituiçáo da República Portuguesa.

[...]

2 - Pretende ainda ver -se apreciada a inconstitucionalidade do

artigo 164. -A do CPREF, na interpretaçáo seguida pelo Tribunal da Relaçáo de Coimbra, segundo a qual o Liquidatário Judicial náo tem obrigaçáo de tomar posiçáo sobre os créditos de que tem conhecimento em virtude da análise da documentaçáo da falida que lhe é entregue, nem tem obrigaçáo de tomar posiçáo sobre as obrigaçóes que impendem sobre a falida, decidindo sobre o seu cumprimento, ou náo.

Entendeu a 1.ª instância, confirmada pelo Tribunal da Relaçáo de Coimbra que o Sr. Liquidatário náo tem o dever de comunicar à promitente compradora a decisáo de náo cumprimento do contrato, nem de considerar como existente o seu crédito, que consiste na devoluçáo em dobro do sinal por si prestado, apesar de o mesmo constar da contabilidade da empresa falida.

Tal interpretaçáo da norma do artigo 164. -A do CPREF, viola os princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da adequaçáo e da boa fé, designadamente viola os artigos 12., 13., 18. e 20. n. 1 da Constituiçáo da República Portuguesa.

[...]

3 - Pretende ainda ver -se apreciada a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 164. -A, quando conjugada com o artigo 755. do Código Civil, na interpretaçáo seguida pelo Tribunal da Relaçáo de Coimbra, segundo a qual náo assiste direito de retençáo ao promitente comprador de uma fracçáo autónoma se, à data da declaraçáo de falência do promitente vendedor, náo estiver já aferido o incumprimento deste, devendo o crédito do promitente comprador ser considerado como comum e náo privilegiado.

A interpretaçáo dada à conjugaçáo daqueles dois artigos vai no sentido de que, com a declaraçáo de falência, caduca, automaticamente, o direito de retençáo do promitente adquirente de fracçáo autónoma e as garantias dele decorrentes.

Ora, a alínea f) do n. 1 do artigo 755. do Código Civil estabelece o direito de retençáo a favor do beneficiário de promessa de transmissáo pelos créditos resultantes do náo cumprimento do contrato imputável à outra parte, pelo que sempre teria de aferir -se se tal incumprimento existia, ou náo e desde quando.

Tal interpretaçáo da conjugaçáo dos artigos 755. do Código Civil e 164. -A do CPREF, viola os princípios da legalidade, da proporcionalidade, da adequaçáo e da boa fé, designadamente viola os artigos 12., 13., 18. e 20. n. 1 da Constituiçáo da República Portuguesa.

[...]

4 - Pretende ainda ver -se apreciada a inconstitucionalidade das

normas constantes dos artigos 188., 164. -A e 205. do CPREF, na interpretaçáo seguida pelo Tribunal da Relaçáo de Coimbra, se-

gundo a qual, os prazos aí estabelecidos se contam a partir da data da publicaçáo da sentença no Diário da República e do trânsito em julgado da sentença que declara a falência e náo a partir da data em que o Liquidatário opte pelo cumprimento ou náo cumprimento do contrato.

Salienta -se que a declaraçáo de falência náo faz caducar automaticamente os contratos promessa existente, náo sendo, nesse aspecto, definitiva, uma vez que o Liquidatário pode optar pelo cumprimento do contrato ou pela execuçáo específica (e náo poderia, se estivesse caduco), devendo entender -se que deve fazê -lo, iniciando -se o prazo a partir dessa sua declaraçáo.

Tal interpretaçáo viola aqueles artigos 188., 164. -A e 205. do CPREF e os princípios da legalidade, da proporcionalidade, da adequaçáo e da boa fé, designadamente, viola os artigos 12., 13., 18. e 20. n. 1 da Constituiçáo da República Portuguesa.

As partes foram notificadas para apresentarem alegaçóes, com a mençáo que deveriam pronunciar -se sobre a possibilidade do recurso náo ser conhecido relativamente às questóes enunciadas no requerimento de interposiçáo, sob os n. 1, 2 e 3.

A recorrente apresentou alegaçóes, que concluiu do seguinte modo:

1) Em 16 de Fevereiro de 2001, em Coimbra, foi validamente celebrado, entre a recorrente Maria José Canastra Cataláo, como promitente compradora e a falida J. Mendes & Gonçalves, Lda. como promitente vendedora, um Contrato -Promessa Bilateral de Compra e Venda que teve como objecto a fracçáo autónoma correspondente a um apartamento T2, sito no primeiro andar, lado Sul, com garagem, em construçáo, sito na Rua Mendes de Remédios, Lote 2, Coimbra.

2) Tal contrato, celebrado por escrito, estava contabilizado e era evidenciado pela documentaçáo contabilística e escrita da falida, sendo portanto do conhecimento do Sr. Liquidatário Judicial, o qual, aliás, nessas condiçóes, tinha obrigaçáo de o conhecer e de o considerar para efeitos de reclamaçáo de créditos e para efeitos do disposto no artigo 164. -A do CPREF, ou seja, tinha obrigaçáo de tomar posiçáo quanto ao cumprimento ou incumprimento do mesmo pela falida e comunicá -lo à ora recorrente.

3) Nos finais do ano de 2001, a falida, em momento em que ainda náo estava declarada falida, entregou o andar/apartamento à recorrente que dela o recebeu e passou a deter as respectivas chaves e aí passou a residir, habitual e consecutivamente até hoje.

4) Aí instalando as suas mobílias, objectos de utilidade doméstica, roupas e vestuário e aí passando a dormir, descansar, comer, confeccionar refeiçóes, receber visitas e correspondência, aí, afinal, tendo instalado a sua casa morada de família, daí saindo todos os dias para os seus afazeres profissionais e aí regressando diariamente e tudo o mais fazendo do que é habitual qualquer pessoa fazer na sua própria habitaçáo e residência e tendo, nomeadamente, requerido o fornecimento de água e gás que consome e paga.

5) Apenas a recorrente e apenas ela tem as respectivas chaves e apenas ela e só ela ocupa e utiliza, com exclusáo da falida e quaisquer outras pessoas, desde os finais de 2001 até hoje, diária e consecutivamente, sem qualquer interrupçáo, o referido apartamento, em seu único e exclusivo proveito e sem oposiçáo de quem quer que seja e à vista de toda a gente.

6) A promitente vendedora, ora falida, foi declarada nesse estado por sentença de 08/06/2004, já transitada em julgado e até 18/07/2006, o Sr. Liquidatário Judicial náo tomou qualquer posiçáo quanto ao cumprimento ou incum primento do contrato, nem nada comunicou à recorrente, a qual, aliás, até hoje, náo foi perturbada, por qualquer modo, na posse que exerce sobre a fracçáo, nem no seu direito de retençáo que vem exercendo.

7) A recorrente, náo reclamou o seu crédito nem propôs a acçáo prevista no artigo 205. do CPREF, sendo certo que sempre esteve, como está, interessada no cumprimento do contrato, só a tendo intentada em 11/12/2006.

8) Face à referida posiçáo do Sr. Liquidatário e ao tempo entretanto decorrido - quase dois anos - a ora recorrente, por requerimento dirigido àquele de 26/05/2006, pediu que o mesmo optasse pela conclusáo do contrato prometido, de acordo com o preceituado no artigo 164. -A do CPREF, celebrando a escritura pública de venda a favor da recorrente.

9) O Sr. Liquidatário optou pelo náo cumprimento do contrato, do que a ora recorrente tomou conhecimento através da decisáo de primeira instância que recaiu sobre o requerimento de 26/05/2006, invocando os fundamentos de facto e de direito que aqui se dáo por reproduzidos.

10) Ao contrário, porém, do que se diz na douta sentença e no douto acórdáo recorrido, que a confirmou, a recorrente está em tempo de exercer o seu direito à execuçáo específica do contrato, obtendo sentença que produza os efei tos da declaraçáo negocial da parte faltosa.

11) Com efeito, o disposto no artigo 164. -A quanto à extinçáo do contrato refere -se apenas àqueles em que a falida é promitente adquirente e náo alienante, estando, neste último caso, sempre obrigada à celebraçáo do contrato prometido e, portanto, sempre podendo a recorrente exigir da massa falida a celebraçáo do contrato ou recorrer à execuçáo específica, nos termos dos artigos 410., 442. e 830. do Código Civil, regime este que náo é, nem pode ser afastado, pelo simples facto do promitente...

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