Acórdão n.º 336/2006/T, de 29 de Junho de 2006

Acórdáo n.o 336/2006/T. Const. - Processo n.o 901/2005. - Acordam na 2.a Secçáo do Tribunal Constitucional:

A- Relatório. - 1 - José Machado de Almeida e Álvaro Santos Legoinha, identificados nos autos, foram julgados e condenados, por sentença proferida pelo 6.o Juízo, 1.a Secçáo, do Tribunal Criminal de Lisboa, no processo comum (com tribunal singular)

n.o 8086/02.7TDLSB, como co-autores de um crime de abuso de informaçáo, previsto e punido pelo artigo 378.o, n.o 1, com referência ao n.o 4, do Código de Valores Mobiliários, nas penas de 180 dias de multa à taxa diária de E 300 cada um deles e o último recorrente, ainda também, pela prática de igual crime, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de E 300, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 260 dias de multa à referida taxa diária de E 300.

2 - Desta decisáo, os arguidos recorreram para o Tribunal da Relaçáo de Lisboa, que, todavia, pelo Acórdáo, agora recorrido, de 20 de Abril de 2005, negou provimento aos seus recursos.

Ao contrário, o acórdáo do Tribunal da Relaçáo de Lisboa concedeu provimento ao recurso que o Ministério Público também interpusera, com o sentido de ver alterada a decisáo da 1.a instância no que toca ao facto de náo haver declarado perdidas a favor do Estado, nos termos do artigo 111.o, n.o 2, do Código Penal, as vantagens económicas ilegitimamente obtidas pelos arguidos através da prática dos respectivos crimes, pelos quais foram condenados.

3 - Dizendo-se inconformados com esta decisáo da 2.a instância, os arguidos recorreram para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.o 1 do artigo 70.o da Lei n.o 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versáo (LTC), pretendendo, ambos, a apreciaçáo da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 111.o do Código Penal, na interpretaçáo segundo a qual o mesmo é «aplicável como consequência da prática dos factos integrantes do "crime de abuso de informaçáo", por que o[s] recorrente[s] foi [foram] condenado[s], previsto e punível, em 25 de Janeiro de 2000, "pelo artigo 666.o, n.o 1, alínea a), com referência aos n.os 4 e 5 do Código do Mercado dos Valores Imobiliários e [. . .] [após 1 de Março de 2000] pelo artigo 378.o, n.o 1, com referência ao n.o 4, do Código de Valores Mobiliários"».

O recorrente José Machado de Almeida pediu, ainda, a apreciaçáo da inconstitucionalidade da norma constante dos artigos 358.o e 359.o do Código de Processo Penal, numa acepçáo que definiu.

Todavia, pelo Acórdáo n.o 81/2006, disponível em www.tribunal-constitucional.pt, que indeferiu reclamaçáo deduzida contra despacho de delimitaçáo do objecto do recurso proferido pelo relator, o Tribunal Constitucional decidiu náo tomar conhecimento desta última questáo de inconstitucionalidade, por haver entendido, em síntese, que o recorrente pretendia sindicar náo a constitucionalidade de tal norma mas o mérito da decisáo judicial em si mesma e que, mesmo a entender-se o contrário, sempre esse conhecimento se tornaria inútil por o acórdáo recorrido se haver fundado em um outro fundamento autónomo, náo controvertido pelo recorrente.

4 - Alegando, no Tribunal Constitucional, sobre o objecto do recurso delimitado nos termos acima precisados, concluíram os recorrentes do seguinte jeito a argumentaçáo expendida:

1.a Jamais, anteriormente ao recurso do Ministério Público para a Relaçáo - tanto na acusaçáo, como em julgamento, como na sentença a questáo da "perda das vantagens" do crime foi versada no processo.

2.o Contra o disposto no artigo 32.o, n.o 5, da Constituiçáo da República Portuguesa, a omissáo de audiçáo dos arguidos sobre essa questáo frustrou-lhes o direito de se pronunciarem sobre os argumentos com que posteriormente vieram a ser confrontados.

3.a A norma do artigo 111.o do Código Penal, na interpretaçáo e na aplicaçáo que o acórdáo do Tribunal da Relaçáo de Lisboa (de 20 de Abril de 2005) dela fez, é inconstitucional, por actuaçáo dos princípios vazados no artigo 32.o, n.o 5, da Constituiçáo da República Portuguesa.

4.a O direito penal económico prevê específicos crimes e consequências jurídicas deles, distintos dos que se encontram no Código Penal; é autónomo em relaçáo ao direito penal (clássico, primário ou de justiça) patrimonial.

5.a Para a determinaçáo da pena aplicável e das medidas postuladas pelo ilícito previsto no artigo 378.o do Código dos Valores Mobiliários, apenas se pode recorrer à previsáo vazada nesta norma; náo a outra disciplina, designadamente à constante do artigo 111.o do Código Penal.

6.a A decidir-se que a "perda de vantagens" a que se refere o artigo 111.o,n.o 2, do Código Penal pode ser ordenada contra os agentes do facto iIícito típico (autores e comparticipantes), ainda que as náo tenham auferido, cria-se uma "providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança".

7.a A definiçáo das medidas de segurança e respectivos pressupostos é matéria "da exclusiva competência da Assembleia da República [. . .], salvo autorizaçáo ao Governo" [artigo 165.o, n.o 1, alínea c), da Constituiçáo da República Portuguesa].

8.a Ao "ler" no artigo 378.o do Código dos Valores Mobiliários que o mesmo, além de prever a pena aplicável pelo ilícito previsto, admite a actuaçáo da disciplina do artigo 111.o, n.o 2, do Código Penal, o acórdáo do Tribunal da Relaçáo de Lisboa (de 20 de Abril de 2005) náo interpretou o citado preceito com um mínimo de correspondência com a letra da lei, exigível para o efeito, segundo o disposto no artigo 9.o,n.o 2, do Código Civil.

9.a Assim, e por virtude do princípio constante do artigo 29.o da Constituiçáo, a norma do artigo 111.o, n.o 2, do Código Penal, na inter-pretaçáo e aplicaçáo que dela fez o acórdáo do Tribunal da Relaçáo de Lisboa (de 20 de Abril de 2005) é inconstitucional.

5 - Por seu lado, o procurador-geral-adjunto, no Tribunal Constitucional, contra-alegou, dizendo em conclusáo do seu discurso:

1 - Náo é inconstitucional a norma do artigo 111.o do Código Penal, quando interpretada no sentido de ser aplicável como consequência da condenaçáo pela prática do crime [previsto e punido pelo artigo 378.o, n.o . . . - quis dizer-se 4 do Código dos Valores Mobiliários], náo assumindo, por outro lado, a perda das vantagens do crime natureza análoga à da medida de segurança.

2 - Deverá, assim, improceder o presente recurso.

6 - Na parte útil ao conhecimento da questáo de inconstitucionalidade, o acórdáo recorrido discorreu do seguinte modo:

a) Do crime de abuso de informaçáo privilegiada. - Contrariamente ao que possa pensar-se, este tipo de ilícito náo é - mais um - "filho" da globalizaçáo - também - económica, que parece omnipresente nos dias de hoje, mas antes, como se disse, se mostrava já previsto entre nós nos artigos 449.o e 524.o do Código das Sociedades Comer-ciais de 1987 - sendo tido entáo, já também, como "um problema actual" (1).

O primeiro referido - no domínio das sociedades anónimas - previa, como sançáo para o mesmo, o dever de "indemnizar os prejudicados - ou a sociedade, se estes náo pudessem ser identificados - pagando-lhes quantia equivalente ao montante da vantagem patrimonial realizada", qualificando-o, o segundo, como crime punível com prisáo e multa.

Universalmente punível hoje em dia no domínio de qualquer mercado bolsista, no âmbito do novel e cada vez mais insaciável direito penal económico, lembra-nos, avisadamente, o excelente estudo de Frederico de L. da Costa Pinto que "o seu desvalor intrínseco náo é, no entanto, imediatamente apreensível, pois as condutas em causa apelam a valoraçóes específicas e regras de funcionamento do mercado que sáo normalmente estranhas à experiência comum e ao quotidiano judicial", adiantando desde logo que, "por outro lado, a sua danosidade real náo é imediatamente visível, como acontece em geral com a criminalidade económica mais sofisticada", pelo facto de se tratar

9448 de práticas que surgem num "contexto lícito" (a negociaçáo no mercado de valores mobiliários), ao contrário da generalidade dos crimes comuns, que originam proveitos económicos e que se revelam ab initio num contexto "originariamente ilícito" (caso dos furtos, roubos, lenocínio, tráfico de estupefacientes, etc.) (2).

Daí que o bem jurídico tutelado pela incriminaçáo, visando assegurar o regular funcionamento do mercado financeiro, seja complexo e diversificado, como o sáo a "igualdade entre os investidores, a confiança destes no mercado, o seu património, os pressupostos essenciais de um mercado eficiente ou a funçáo negocial da informaçáo e a justa distribuiçáo do risco dos negócios", defendendo-se por isso que se trata de uma infracçáo "pluri-ofensiva" (3).

Comprovando-o, aí está, como se disse, a sua expressa previsáo constitucional - artigo 201.o da Constituiçáo da República Portuguesa.

Diz ainda mais Hurtado Pozo: "O ilícito em causa náo se destina a proteger apenas um bem jurídico. Simultaneamente, e ainda que a um nível diferente, protege também a própria empresa contra a violaçáo do dever de lealdade das pessoas que recebem a informaçáo em razáo das funçóes que desempenham dentro dela, já que necessariamente também conduzem a consequências negativas sobre a sua reputaçáo. Para além disso, quando a pessoa informada compra barato as acçóes daquela de que é accionista e as vende logo a seguir, necessariamente, por maior preço, enriquece-se tanto à custa da mesma empresa como em detrimento dos accionistas que náo se encontravam igualmente informados. Daí que ao prejuízo causado à reputaçáo da empresa se junta também um prejuízo patrimonial em detrimento da mesma."

Constituem assim elementos típicos do ilícito quer "as qualidades típicas dos agentes", a posse e o conhecimento da informaçáo privilegiada, a "relaçáo entre a posse da informaçáo e as condutas proibidas" - artigo 378.o,n.os 1 a 4, em tudo igual ao anterior artigo 666.o, n.os 1, 3 e 4 - e o elemento subjectivo, que tem de ser doloso - artigo 13.o do Código Penal.

Estes poderáo ser levados a cabo com a finalidade de...

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