Acórdão n.º 207/2002, de 25 de Junho de 2002

Acórdão n.º 207/2002 Processo n.º 110/93.

Acordam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional: I 1 - O Provedor de Justiça veio, no uso da competência que o artigo 281.º, n.º 2, alínea d), da Constituição da República Portuguesa lhe confere, reproduzida pelo artigo 20.º, n.º 4, da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril (Estatuto do Provedor de Justiça), requerer ao Tribunal Constitucional a fiscalização da constitucionalidade: I) Das normas contidas nos artigos 120.º, n.os 1 e 2, 122.º, 123.º, 124.º, n.º 1, 125.º, n.os 1 e 2, 126.º, n.º 1, e 127.º, em toda a sua extensão e conteúdo, do Regulamento de Disciplina Militar, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/77, de 9 de Abril, com a redacção que aqueles preceitos receberam do artigo 2.º do Decreto-lei n.º 226/79, de 21 de Julho; II) Das normas contidas nos artigos 138.º e 145.º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 465/83, de 31 de Dezembro; III) Da norma contida no artigo 59.º, n.º 4, segunda parte, da Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas (Lei n.º 29/82, de 11 de Dezembro).

Alega em síntese:

  1. Introdutoriamente, em geral: 2 - O artigo 120.º, n.º 1, do Regulamento de Disciplina Militar [aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/77, de 9 de Abril (doravante RDM)] estabelece a competência do Supremo Tribunal Militar para o contencioso administrativo disciplinar relativamente aos actos praticados pelos chefes dos estados-maiores(CEM).

    O artigo 126.º, n.º 1, do RDM opera uma remissão genérica para o direito processual militar [Código de Justiça Militar (CJM), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 141/77, de 9 de Abril], relativamente aos recursos contenciosos daqueles actos.

    Isto significa que, no tocante aos actos disciplinares para cuja definitividade e executoriedade seja necessária decisão proferida pelos CEM, há lugar a recurso de anulação para a jurisdição militar, nos termos do processo previsto noCJM.

    O exercício do poder disciplinar militar, no entanto, não foi exclusivamente confiado aos CEM.

    Com efeito, o artigo 37.º do RDM, completado por quadro anexo ao diploma, apresenta um sistema desconcentrado de competências em matéria disciplinar.

    Em traços gerais, estão presentes dois critérios nesta distribuição: um primeiro, no sentido de à gravidade da pena disciplinar corresponder, proporcionalmente, uma competência punitiva situada em nível mais elevado da hierarquia militar; um segundo, fazendo depender da qualidade do infractor (oficial, sargento, cabo ou outras praças) a competência punitiva, da mesma escalahierárquica.

    Do acto de punição disciplinar cabe reclamação - aliás, necessária para efeitos de impugnação (cf. o artigo 114.º, n.º 1, do RDM) - e recurso hierárquico 'para o chefe imediato da autoridade que o puniu' (artigo 114.º, n.º 1).

    A decisão então proferida confere definitividade vertical ao acto punitivo, de modo a tornar-se contenciosamente recorrível.

    No entanto, para conhecer do recurso contencioso desse acto (cuja definitividade seja alcançada em nível inferior aos dos CEM) é competente não a jurisdição militar mas a jurisdição contenciosa administrativa.

    Este é o entendimento que resulta da interpretação conforme à Constituição do artigo 119.º, n.º 2, do RDM, fixada pelo Acórdão n.º 90/88 do Tribunal Constitucional (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º vol., pp. 391 e 404-406).

    Esta matéria encontra-se, assim, sob uma dualidade de regimes, a qual, como se afirma no referido aresto, parte 'da entidade que haja proferido a decisão recorrida'.

    A Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas (Lei n.º 29/82, de 11 de Dezembro, a seguir LDNFA) não é, de todo, alheia a esta situação, na medida em que admite o recurso para o Supremo Tribunal Militar de actos disciplinares praticados pelos CEM (cf. artigo 59.º, n.º 4).

    E afirma-se que o admite porquanto, no tocante ao recurso contencioso de anulação de tais actos, deixa a atribuição da competência aos termos da lei (cf. o artigo 59.º, n.º 4, idem).

    Lei essa que é, de momento, o RDM nos seus artigos 120.º e seguintes.

    A LDNFA admite, assim, a impugnação contenciosa de actos dos CEM, em matéria disciplinar, junto do Supremo Tribunal Militar, tanto quanto o permitam as leis definidoras das competências daquele Tribunal - o Código de Justiça Militar e, neste ponto, o artigo 120.º, n.º 1, do RDM.

    A norma contida no artigo 120.º (em ambos os seus números), bem como todas as outras normas do RDM supra-enunciadas, as quais pressupõem a validade da primeira, violam o disposto nos artigos 214.º, n.º 3, e 215.º, n.º 3, em articulação com o artigo 113.º, n.º 2, e violam ainda o direito garantido no artigo 268.º, n.º 4, sem encontrarem cobertura nas normas e princípios do artigo 18.º, todos da Constituição.

    Deve, a título subsidiário, aduzir-se que o artigo 127.º do RDM, pelas limitações que introduz ao conhecimento do objecto do recurso, viola acrescidamente o preceituado no artigo 268.º, n.º 4, da Constituição.

    Ainda que, por hipótese, as restantes normas que admitem ou pressupõem a competência do Supremo Tribunal Militar em matéria de contencioso administrativo militar não se encontrassem feridas de inconstitucionalidade, sempre a norma do artigo 127.º haveria de ter-se como inválida.

    Quanto às normas do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 465/83, de 31 de Dezembro, doravante EMGNR), cuja constitucionalidade se pretende ver fiscalizada, dir-se-á que, quanto à primeira (a do artigo 138.º), colide com as garantias do recurso contencioso de anulação (artigo 268.º, n.º 4, da Constituição), a menos que seja interpretada em conformidade à Constituição em sentido idêntico ao que recebeu o artigo 119.º, n.º 2, do RDM pelo Acórdão n.º 90/88 do Tribunal Constitucional.

    Por seu turno, a norma do artigo 145.º do EMGNR, ao admitir o recurso contencioso de certos actos administrativos para os tribunais militares, viola os artigos 214.º, n.º 3, 215.º, n.º 3, e 268.º, n.º 4, da Constituição.

  2. Em especial quanto à violação da norma do artigo 215.º, n.º 3, da Constituição pelas normas dos artigos 120.º do RDM, 59.º, n.º 4, segunda parte, da LDNFA e 145.º do EMGNR: 3 - O requerente centra a atenção no artigo 120.º do RDM, pois as normas dos artigos 122.º, 123.º, 124.º, 125.º e 126.º, bem como, de resto, a do artigo 59.º, n.º 4, da LDNFA e a do artigo 145.º do EMGNR, fazem depender a sua conformidade constitucional da validade da primeira.

    O vício de inconstitucionalidade apontado a tal norma (artigo 120.º do RDM) resulta do facto de não poder resultar do n.º 3 do artigo 215.º da Constituição, eliminado na revisão de 1997, a competência dos tribunais militares em matéria de contencioso administrativo disciplinar.

    O que se retira da interpretação literal do referido n.º 3 do artigo 215.º da Constituição é, tão-só, a faculdade concedida ao legislador ordinário de levar a cabo uma jurisdicionalização da aplicação de medidas disciplinares.

    Tendo presente, por um lado, o rigor dos deveres disciplinares castrenses [artigo 4.º do RDM, aplicável, também, aos militares da Guarda Nacional Republicana (GNR) ex vi do artigo 4.º do EMGNR] e, por outro, a imperiosa necessidade da sua observância estrita, pode compreender-se a gravosidade de algumas penas disciplinares, nomeadamente a pena de prisão (artigos 27.º e 28.º do RDM), reconhecida, aliás, pela Constituição [artigo 27.º, n.º 3, alínea c), actualmente alínea d) pela revisão de 1997].

    Quanto à competência jurisdicional, recorde-se a situação excepcional dos tribunais militares face à proibição da existência de tribunais com competência exclusiva para o julgamento de certas categorias de crimes, do artigo 211.º, n.º 4, hoje artigo 209.º, n.º 4, da Constituição.

    Se a competência dos tribunais militares é definida por regra excepcional, ela deve como tal ser interpretada.

    Não pode ser esquecido, por sua vez, que as normas em matéria de competência dos tribunais militares terão de observar o disposto no artigo 113.º, n.º 2, hoje artigo 110.º, n.º 2, da Constituição (reserva de constituição).

    Por ocasião da segunda revisão constitucional, a propósito das propostas de alteração (e até de supressão) do artigo 215.º, salienta-se uma intervenção do deputado Miguel Galvão Teles, a qual, de algum modo, ilustra a origem do preceito: 'Alguns passos se deram no sentido de cingir os tribunais militares a certo domínio, seja o que resultou da interpretação do Tribunal Constitucional, no sentido de que tinha, na revisão de 1982, sido impedido que os tribunais militares funcionassem como tribunais de contencioso administrativo'. (Diário da Assembleia da República, 2.' série-RC, n.º 49, de 22 de Outubro de 1988, p. 1525; itálico nosso.) Não se diga em desfavor do entendimento aqui propugnado do artigo 215.º, n.º 3, que o artigo 27.º, n.º 3, alínea c), a tanto obsta.

    Aqui se prevê que da aplicação de uma medida de prisão disciplinar se possa recorrer para o tribunal competente.

    O seu alcance é imediato se - ou enquanto - o legislador não lançar mão da faculdade prevista no artigo 215.º, n.º 3, no sentido de o acto administrativo disciplinar das Forças Armadas ceder o lugar ao acto jurisdicional.

    Nesses termos, a referida norma constitucional pretende traduzir uma garantia de recurso contra acto praticado pela administração militar, dos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, ambos da Constituição. O tribunal competente a que se refere não pode deixar de ser um tribunal administrativo.

    Ainda que se assista à jurisdicionalização do procedimento disciplinar militar, o n.º 3 do artigo 27.º sempre garantirá o recurso para o tribunal competente - em tal caso, um tribunal militar.

    Fica-lhe reservado o sentido de admitir uma medida disciplinar preventiva de prisão 'pelo tempo e nas condições que a lei determinar' (artigo 27.º, n.º 3).

    A interpretação defendida supra do artigo 215.º, n.º 3, em nada faz perder o conteúdo útil da regra contida no artigo 27.º, n.º 3, alínea c), observando-se, mais uma vez, a harmonia no...

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