Acórdão n.º 474/2002, de 18 de Dezembro de 2002

Acórdão n.º 474/2002 Processo n.º 489/94 1 - O Provedor de Justiça veio, fundado no n.º 1 do artigo 283.º da Constituição, requerer a este Tribunal que apreciasse e verificasse a inconstitucionalidade resultante da falta das medidas legislativas necessárias para conferir plena exequibilidade, no que aos trabalhadores da função pública diz respeito, à norma contida na alínea e) do n.º 1 do artigo 59.º da lei fundamental.

Para tanto, invoca, em síntese: A localização sistemática da norma vertida na alínea e) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição, no capítulo I do título III da sua parte I, poderia levar a concluir que o direito dos trabalhadores à assistência material, quando involuntariamente se encontrem em situação de desemprego, gozaria, tão-só, do regime dos direitos económicos, sociais e culturais, não lhe sendo, consequentemente, aplicável o regime constitucionalmente consagrado para os direitos, liberdades e garantias constante do título I, nos quais se incluem os direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores a que se reporta o capítulo III dessetítulo; Contudo, o facto de, nominalmente, se tratar de um direito económico e, estruturalmente, de um direito a uma prestação, não impede que possa ser-lhe reconhecida, em parte, natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, beneficiando do regime destes, nos termos do artigo 17.º da Constituição, já que o direito dos trabalhadores à assistência material reclama, pela sua ligação indissociável, um tratamento analógico com o direito fundamental - que é condição prévia da existência de todos os outros direitos das pessoas singulares e condição primeira da dignidade humana -, justamente o direito à vida; Não podendo considerar-se o direito ao trabalho como tendo natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, nada permite deixar, sem mais, de admitir essa natureza ao direito dos trabalhadores à assistência material quando involuntariamente se encontrem em situação de desemprego, como forma residual de assegurar as condições mínimas de subsistência necessárias para a salvaguarda do direito à vida; Por isso, não será difícil concluir que decorre da Constituição a obrigatoriedade para o legislador de estabelecer uma assistência material mínima para todos os trabalhadores que involuntariamente se encontrem em situação de desemprego, o que será encontrado através do referencial das condições mínimas de subsistência, que corporizam, assim, a concreta imposição legiferante do legislador constituinte ao legislador ordinário, desta arte se fundando a atribuição de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias ao direito dos trabalhadores à assistência material quando involuntariamente se encontrem desempregados, direito esse que, aliás, é reconhecido a todos os trabalhadores no proémio do artigo 59.º da Constituição; A noção constitucional de trabalhador, por seu turno, deverá abranger todo aquele que trabalha ou presta serviço por conta e sob a direcção e autoridade de outrem, independentemente da categoria deste (actividade privada ou pública) e da natureza jurídica do vínculo (contrato de trabalho privado, função pública, etc.), pelo que em tal noção se abrangerão os funcionários públicos; A estes, por conseguinte, há-de reconhecer-se constitucionalmente o direito à assistência material quando involuntariamente se encontrem em situação de desemprego; A concretização legislativa ordinária de tal direito encontra-se plasmada no Decreto-Lei n.º 79-A/89, de 13 de Março, ao instituir o designado 'subsídio de desemprego', beneficiando desta prestação unicamente os trabalhadores vinculados pelo regime jurídico privado decorrente do contrato individual de trabalho, motivo pelo qual o âmbito de aplicação deste diploma, no qual se esgota a disciplina da assistência material aos trabalhadores quando se encontrem involuntariamente em situação de desemprego, não abrange os funcionários e agentes da Administração Pública, e isso porque a sua relação jurídica de emprego não é regulada pelo regime jurídico privado do contrato individual de trabalho, mas por regimes jurídicos específicos; Se, no que respeita aos indicados funcionários e agentes, há casos em que as causas de extinção da relação jurídica de emprego não permitem configurar situações de desemprego involuntário - caso da exoneração -, não deixam de ocorrer, em número apreciável, situações que não mereceram a atenção do legislador no sentido de obter um desenvolvimento adequado à plena exequibilidade do direito contido no artigo 59.º, n.º 1, alínea e), da Constituição; São os casos de admissão de exoneração, por despacho da entidade que tiver nomeado o funcionário, no decurso do período probatório, sem prejuízo do regime do estágio de ingresso, previsto no n.º 10 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro; de funcionários e agentes a quem seja aplicada a pena disciplinar de demissão [que é configurável como situação de desemprego involuntário, em termos idênticos à dos trabalhadores vinculados por contrato individual de trabalho, cujo desemprego decorrente de despedimento com justa causa é considerado, nos termos do artigo 3.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 79-A/89, de 13 de Março, como involuntário]; de funcionários e agentes considerados pessoal disponível, nos termos do Decreto-Lei n.º 247/92, de 7 de Novembro, em que a necessidade de opção por alguma das medidas excepcionais de descongestionamento da função pública previstas no artigo 6.º desse diploma pode vir a conduzir à extinção inelutável da relação jurídica de emprego público, na medida da impossibilidade prática da activação, em cada caso concreto, da totalidade das alternativas ali elencadas; dos agentes administrativos, isto é, do pessoal cuja relação jurídica de emprego nasce da celebração com a Administração Pública de um contrato administrativo de provimento, em que são previstas, quer a caducidade de tal contrato (dada a sua natureza transitória, como expressamente se reconhece no artigo 15.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro), quer a extinção da relação jurídica de emprego por simples denúncia da entidade empregadora, sem que se reconheça qualquer elemento de voluntariedade por parte do agente administrativo [artigo 30.º, n.º 1, alínea b)]; do regime especial definido no Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 139-A/90, de 28 de Abril, a propósito das situações de nomeação provisória, período probatório e contrato administrativo (artigos 30.º, 32.º e 33.º, respectivamente); Deverá concluir-se, assim, que, para estes casos, e porque aos mesmos não é aplicável o Decreto-Lei n.º 79-A/89 nem qualquer outro regime normativo concretizante de dação de assistência material quando os respectivos trabalhadores e agentes da Administração Pública se encontrem involuntariamente em situação de desemprego, o direito conferido no artigo 59.º, n.º 1, alínea e), da Constituição não encontra concretização legislativa, apesar de nada permitir um tratamento desigual face aos trabalhadores vinculados pelo regime jurídico privado do contrato individual de trabalho; Estando em causa um direito fundamental de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, não será possível que o legislador ordinário goze de total margem de livre decisão no tocante à oportunidade de concretização do direito, por isso se não está em face de um direito sob reserva do possível facto que autorizaria o poder legislativo ordinário a diferir a sua concretização ou desenvolvimento de acordo com uma opção que tomasse relativamente à afectação de recursos disponíveis; Configura-se, desta sorte, uma omissão inconstitucional das medidas legislativas necessárias a tornar exequível a norma constante do artigo 59.º, n.º 1, alínea e), do diploma básico.

Mesmo que, por hipótese, se considerasse não estarmos perante um direito fundamental de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, caso em que seria deixada ao legislador significativa margem de livre decisão quanto à oportunidade da sua concretização, ainda assim se verificaria, em todo o caso, uma omissão inconstitucional relativa [pois que a concretização do direito à assistência material consagrado naquela alínea e) do n.º 1 do artigo 59.º não abrange uma parte dos trabalhadores destinatários daquela forma de protecção]; Esta não abrangência viola o princípio da igualdade consignado no artigo 13.º da Constituição e concretizado no proémio do n.º 1 do seu artigo 59.º, ao prever expressamente que todos os trabalhadores detêm a totalidade dos direitos consagrados neste último articulado, violação que não é menos evidente por, eventualmente, se considerar estar em causa um direito fundamental sem natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, pois que, como é sustentado doutrinalmente, se o legislador actua voluntariamente criando uma certa disciplina legal, então ele ficará obrigado a não deixar inconsiderados os casos essencialmente iguais aos previstos naquela disciplina; Neste ponto, até poderia parecer indicado recorrer aos mecanismos de fiscalização por acção, cumulando uma inconstitucionalidade por acção, a partir da violação do princípio da igualdade, com inconstitucionalidade parcial poromissão; Porém, o que resulta como necessário e conforme à Constituição, neste caso, não é extinguir a assistência material aos trabalhadores vinculados por contrato individual de trabalho, mas estender essa assistência aos restantes trabalhadores por conta de outrem que não estejam abrangidos, através da formulação de medidas legislativas adequadas, o que até já foi reconhecido pelo Tribunal Constitucional quando, em sede de fiscalização abstracta sucessiva, se debruçou sobre esta questão no Acórdão n.º 423/87, ao admitir que a concretização de direitos fundamentais em violação do princípio da igualdade deve ser subestimada relativamente à extensão do seu regime...

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