Decreto-Lei n.º 454/80, de 09 de Outubro de 1980

Decreto-Lei n.º 454/80 de 9 de Outubro 1. Encontra-se o cooperativismo, como actividade económica e sócio-cultural livre e independente, profundamente enraizado no sentimento e na prática do povo português.

Quando, em 1867, Andrade Corvo defendeu a Lei Cooperativa, correntemente designada por Lei Basilar, aprovada em 2 de Julho daquele ano, teve o cuidado de sublinhar não pertencer ao Estado tutelar as cooperativas, mas apenas 'fixar as regras gerais que assegurem os interesses dos que se associam e dos que contratam com eles'. Vinha, então, a lei consagrar, ainda timidamente, os fortes primeiros passos já dados pelos cooperadores portugueses na primeira metade do século passado, deixando 'campo largo à iniciativa individual e à liberdade de todos'.

De facto, a iniciativa popular havia feito florescer, em experiências diversas e plenas de vitalidade, embora raramente com a compreensão do poder político, um número significativo de associações, mútuas e cooperativas. Este contexto é testemunhado pelo notável discurso de Alexandre Herculano proferido em 1844, quando da inauguração da Caixa Económica de Lisboa. Lamentando que a Câmara dos Deputados não tivesse ouvido o apelo dos primeiros economistas portugueses em prol destas associações populares, 'oferecendo a lei que as devia regular', acrescentavaHerculano: Até hoje nada fizeram a semelhante respeito aqueles a quem mais que a ninguém esse mister incumbia, e se a existência da primeira Caixa Económica Portuguesa se realizou, deve-se este facto a uma associação particular.

  1. Esta lamentada falta de cobertura legislativa obteve, na segunda metade do século XIX e durante o século XX, resposta algo profusa e bastante difusa.

    Nos últimos cento e treze anos foram publicados cerca de centena e meia de textos legislativos referentes às cooperativas. Os diplomas, promulgados sob diversos regimes políticos e provenientes de diferentes Ministérios, manifestam, contudo, uma acentuada falta de sintonia, a ausência de uma visão de conjunto e, por vezes, um certo pendor circunstancial.

    Uma relativa excepção se pôde verificar no ramo das cooperativas agrícolas, onde os esforços de Oliveira Martins e de D. Luís de Castro não foram totalmente perdidos, graças à legislação relativa às cooperativas de crédito agrícola promovida por Brito Camacho. Todavia, o bem intencionado impulso legislativo registado durante a Primeira República, foi amortecido pelo dirigismo agrícola do regime corporativo e pelas medidas cerceadoras então tomadas, que tiveram especial impacte negativo nas cooperativas de consumo e culturais.

  2. Nestas circunstâncias, a vitalidade associativa das cooperativas foi constrangida com o falso pretexto de uma necessária prioridade da sua função económica, em que o culto da rentabilidade reduzia os associados à situação meramente passiva de consumidores ou produtores.

    Actuando como consciência da grei, António Sérgio verberou esta situação. 'Em meu entender', dizia ele, 'o Estado e os políticos devem auxiliar o cooperativismo, legislativa, cultural e financeiramente: mas de tal maneira que não dirijam nunca, que não obriguem nunca, que nunca tenham a pretensão de comandar, por pouquíssimo que seja. O cooperativismo há-de ser absolutamente voluntário e livre, nada deve nele existir que seja obrigatório.' Não querem tais palavras significar que António Sérgio entendesse não ter o Estado obrigações perante as cooperativas. Entre os diversos aspectos por ele considerados necessários, e de acordo também com a opinião expressa pelos seus contemporâneos Professores Raul Tamagnini e António Maria Godinho, reclamou António Sérgio, sem êxito, a elaboração de um código do cooperativismo português, que harmonizasse as diversas disposições legislativas, eliminando as contradições e lacunasexistentes.

  3. Um outro aspecto feria e fere a sensibilidade dos cooperativistas: a inclusão das disposições referentes às cooperativas no Código Comercial de 1888, que além de representar um retrocesso relativamente à lei proposta por Andrade Corvo, esvaziava aquelas organizações populares do seu conteúdo associativo.

    Esta inclusão gera, à partida, uma certa incompatibilidade doutrinária relativa ao conceito de 'sociedade' cooperativa, face ao anteriormente definido na Lei Basilar.

    Enquanto esta considera que as cooperativas se constituem com o objectivo de 'os seus sócios se auxiliarem mutuamente', o Código Comercial confere-lhes características acentuadamente mercantis, estabelecendo ainda que as cooperativas compram para vender, realizando lucros.

    Esta concepção, elaborada de acordo com a doutrina comercialista da época, contraria o princípio mutualista, base da cooperação humana, onde as noções de lucro e comércio se encontram substituídas pelo ideal de serviço.

  4. A necessidade de alterar este panorama, concedendo ao sector cooperativo o papel que lhe compete no desenvolvimento harmónico da sociedade portuguesa, assumiu particular significado após a entrada em vigor da Constituição da República Portuguesa de 1976.

    Considera a Constituição ser dever do Estado: estimular e apoiar as iniciativas conducentes à criação de novas cooperativas (n.º 1 do artigo 61.º), não fazendo depender de qualquer autorização a sua constituição e funcionamento (n.º 3 do artigo 84.º), assim como fomentar a actividade das já existentes (n.º 1 do artigo 84.º); facilitar a sua integração em organismos de grau superior (n.º 2 do artigo 84.º); definir através de diploma legislativo os benefícios fiscais e outros a conceder (n.º 4 do artigo 84.º), e promover a completude do sector cooperativo, com vista ao desenvolvimento da propriedade social (n.º 3 do artigo 89.º e n.º 1 do artigo 90.º).

    Decorrido quase um lustre sobre a promulgação destes imperativos constitucionais, era imprescindível dar-lhes cumprimento e atender também à necessidade de compatibilizar a restante legislação existente.

    No seu conjunto, os ditames constitucionais visam o fomento, a estruturação, a consolidação e a autonomização do sector cooperativo. Entende o Governo que tal faixa de actividades não deverá ficar contida entre as que não são desejadas pelo sector privado, por falta de rentabilidade, ou as que não interessam ao sector público pela sua onerosa especificidade. Pelo contrário, entende dever facilitar a integração ascendente e descendente das cooperativas, por forma a poderem constituir-se num sector apertadamente entretecido, onde se torne possível a promoção económica e social dos cooperadores, num esforço de quotidiana participação democrática. Tal sector, que António Sérgio denominava 'completo', será constituído pela interligação das cooperativas de diversos ramos, mutualidades, caixas económicas e outras associações de índole cooperativa, contribuindo assim fortemente para o desenvolvimento da propriedade social.

  5. Mas não basta reconhecer o sector cooperativo igual em importância aos sectores público e privado e atribuir-lhe idêntica dignidade constitucional. Importa também dotá-lo de instrumentos legislativos, financeiros e técnicos, adequados à realização dos seus fins, de modo a compatibilizar na prática os imperativos constitucionais com a realidade social.

    Na execução dessa tarefa urgente, é essencial ter em conta a evolução do sector cooperativo depois de 25 de Abril de 1974. Desde então, o número das cooperativas existentes quase quadriplicou, e, embora não se encontre ainda concluído o inquérito levantado ao conjunto do sector, pode, desde já, afirmar-se que a mudança não se limita aos aspectos quantitativos, pois se verificou também um acentuado salto qualitativo, cujas consequências não podem ser ignoradas.

    Para além de terem surgido em Portugal novas zonas de actividade cooperativa (pescas, construção civil, serviços de assistência técnica, educação, teatro, cinema, etc.), outras já existentes (como as das cooperativas de produção e agrícolas) ganharam significado diferente, devido à sua diversidade e expansão.

    O quadro seguinte resume elucidativamente as alterações operadas nos últimos anos: (ver documento original) 7. As profundas mudanças evidenciadas pelo desenvolvimento do cooperativismo no decurso destes últimos seis anos tiveram inegáveis reflexos nas próprias cooperativas e na sociedade portuguesa. As cooperativas, especialmente de produção operária, deram um indiscutível contributo à luta contra o desemprego, pela capacidade demonstrada na manutenção e criação de postos de trabalho; reanimaram actividades em crise, como a da produção artesanal, e desenvolveram outras de interesse para o País, de que a pesca é exemplo relevante; participaram na construção de habitações económicas destinadas às classes de menores recursos; colaboraram na luta contra a inflação e actividades especulativas, pela correcta e judiciosa distribuição de géneros através das cooperativas de consumo e distribuição; aceitaram o desafio do Mercado Comum aumentando a produção agrícola nacional e organizando unidades de segundo grau, convenientemente dimensionadas e tecnicamente equipadas; estimularam o aforro e, especialmente através das caixas de crédito agrícola mútuo, diminuíram a dependência em relação ao Estado, pela geração de fundos próprios e indispensáveis para uma progressiva autonomização do sector; desenvolveram e estreitaram as relações com as autarquias locais, inserindo-se no esforço comum com vista à melhoria da qualidade de vida e consequente fixação de populações.

    Um tão válido contributo não é devido apenas ao aumento do número de cooperativas existentes, mas também à renovação de aspectos fundamentais dinamizadores da sua capacidade de intervenção na sociedade portuguesa. Perante a espontânea adesão das populações, foi, em vários casos, derrubado o anquilosamento mantido pelo caciquismo local, restabelecida a participação democrática, nomeadamente nas cooperativas em que a qualidade de associado e de trabalhador é coincidente; renovada a capacidade de iniciativa e o aproveitamento de recursos comuns; iniciada...

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