Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 214/2011, de 16 de Maio de 2011

TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 214/2011 Processo n.º 283/11 Acordam em plenário no Tribunal Constitucional: I — Relatório 1 — O Presidente da República requereu, nos termos do disposto no artigo 278.º, n.º 1, da Constituição da Repú- blica Portuguesa (CRP) e nos artigos 51.º, n.º 1, e 57.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), que o Tribunal aprecie preventivamente a constitucionalidade de toda as normas constantes do Decreto n.º 84/XI da Assembleia da República, recebido na Presidência da República no dia 31 de Março de 2011, para ser promulgado como lei. 2 — O pedido de fiscalização de constitucionalidade apresenta a seguinte fundamentação: «1.º Pelo Decreto n.º 84/XI, a Assembleia da Repú- blica aprovou a ‘suspensão do actual modelo de avalia- ção do desempenho de docentes’ através da revogação do Decreto Regulamentar n.º 2/2010, de 23 de Junho. 2.º No artigo 1.º do mesmo decreto determinou que o ‘Governo deve iniciar o processo de negociação sindical tendente à aprovação do enquadramento legal e regu- lamentar que concretize um novo modelo de avaliação do desempenho de docentes, produzindo efeitos a partir do início do próximo ano lectivo’. 3.º Estabeleceu, ainda, um regime transitório nos termos do qual, até à entrada em vigor do novo modelo de avaliação, são aplicáveis os procedimentos previs- tos no despacho n.º 4913 -B/2010, de 18 de Março, no âmbito da apreciação intercalar, até ao final de Agosto de 2011’. 4.º Dispõe -se no artigo 4.º que ‘a presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação’. 5.º Coloca -se, em primeiro lugar, a questão de saber se será conforme à Constituição a revogação do Decreto Regulamentar n.º 2/2010, de 23 de Junho, operada pela norma contida no artigo 3.º do decreto em análise. 6.º Com efeito, a norma em apreço limita -se a de- terminar a revogação do decreto regulamentar sem que tenha procedido à revogação da respectiva norma ha- bilitante. 7.º Na verdade, o referido decreto regulamentar foi emitido ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 40.º do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário, aprovado pelo Decreto -Lei n.º 139 -A/90, de 28 de Abril, alterado pelos Decretos -Leis n. os 105/97, de 29 de Abril, 1/98, de 2 de Janeiro, 35/2003, de 27 de Fevereiro, 121/2005, de 26 de Julho, 229/2005, de 29 de Dezembro, 15/2007, de 19 de Janeiro, 35/2007, de 15 de Fevereiro, 270/2009, de 30 de Setembro, e 75/2010, de 23 de Junho. 8.º Deste modo, a revogação do regulamento pelo acto legislativo sem que haja também sido retirada da ordem jurídica a norma habilitante poderá constituir uma apropriação indevida da esfera de actuação do poder administrativo. 9.º De acordo com o disposto na citada norma do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário, ‘a regu- lamentação do sistema de avaliação do desempenho estabelecido no presente Estatuto é definida por decreto regulamentar’. 10.º O citado Estatuto atribuiu, assim, expressa- mente ao poder administrativo a tarefa de regulamentar o sistema de avaliação do desempenho dos docentes.

Tratando -se de matéria que se integra nas funções de gestão escolar, entendeu -se que a concretização dos pro- cedimentos tendentes a essa avalização só poderia caber à Administração. 11.º Ora, na revogação agora operada, como ficou afirmado, não se contesta esta decisão do legislador uma vez que ficou intocada a norma de remissão para decreto regulamentar. 12.º Deste modo, sem cuidar de revogar o quadro legal aplicável, o diploma agora aprovado interfere di- rectamente no âmbito do regulamento, revogando -o. 13.º Não se questiona a possibilidade, no quadro da hierarquia de normas, de, em abstracto, uma lei revogar um regulamento.

Tão -pouco deve atender -se à existên- cia, em geral, de uma reserva de regulamento.

Já não pode deixar de relevar o respeito devido pelo legislador à margem própria de intervenção administrativa. 14.º Com efeito, afirmou o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 24/98: ‘também para quem entenda que, podendo haver, em determinadas situações, reservas específicas de regulamentação detidas pelo Governo, mas que, porém, ainda nelas não é totalmente vedada uma actuação legislativa por parte da Assembleia da República, contanto que o Parlamento, ao efectuá -la, re- vogue, derrogue ou abrogue, directa ou implicitamente, a competência de regulamentação que, nessas situações, se encontrava deferida ao Governo [...]’ 15.º Ora, ao contrário do que havia sucedido no caso em análise no acórdão citado, o presente decreto não procedeu à revogação do regime que deferia ao Governo a competência para a regulamentação. 16.º Tal actuação pode configurar um quadro difuso de exercício dos poderes, permitindo ao legislador in- terferir na função administrativa ao revogar o regula- mento, determinando, simultaneamente, a adopção de um regime intercalar, de idêntica natureza. 17.º Ao fazê -lo, o decreto pode enfermar de incons- titucionalidade material por violação do princípio da separação de poderes. 18.º Afirma Paulo Otero (Legalidade e Administra- ção Pública — O Sentido da Vinculação Administra- tiva à Juridicidade, Coimbra, 2003, pp. 753 e 754) que ‘se o princípio da separação de poderes [...] garante à Administração Pública um espaço de execução nor- mativa da lei, a verdade é que também deverá inibir o legislador de se transformar em executor individual e concreto das próprias leis: a Assembleia da Repú- blica encontra -se proibida, precisamente por carecer de competência administrativa externa, de se substituir ao Governo’. 19.º O decreto em apreciação vai mais longe e, na norma contida no artigo 1.º, determina que o Governo inicie ‘o processo de negociação sindical tendente à aprovação do enquadramento legal e regulamentar que concretize um novo modelo de avaliação do desempe- nho de docentes, produzindo efeitos a partir do início do próximo ano lectivo’. 20.º Esta norma reforça o sentido assumido pelo le- gislador segundo o qual o Governo é o órgão competente para elaborar e aprovar a regulamentação concretizadora de um novo modelo de avaliação de desempenho de docentes, uma vez que lhe cabe o poder negocial.

Torna- -se, assim, ainda mais evidente a invasão do campo de actuação do poder administrativo. 21.º O legislador não se limita, pois, a reconhecer esta competência do Governo — facto que, em si mesmo, não seria inconstitucional — mas aprova uma injunção ao Governo para que actue em determinado prazo. 22.º O início de um procedimento negocial é matéria de natureza administrativa uma vez que envolve juízos de mérito e de oportunidade.

Admitir -se -ia, em tese, a previsão legislativa de um prazo para a aprovação do qua- dro regulamentar.

Já mais duvidosa é a imposição de um prazo para dar início e concluir os mecanismos negociais sobre os quais só à Administração cabe decidir. 23.º Por fim, a norma contida no artigo 2.º prevê um regime transitório por recurso à aplicação do ‘despacho n.º 4913 -B/2010, de 18 de Março, no âmbito da aprecia- ção intercalar, até ao final de Agosto de 2011’. 24.º Mais uma vez, não está em causa a possibilidade de a lei operar a recepção do conteúdo normativo de um regulamento, atribuindo -lhe força de lei.

Tal pode justificar -se, desde logo, por razões práticas e de eco- nomia de meios. 25.º Todavia, o conteúdo do mencionado despacho emitido pelo Secretário de Estado Adjunto e da Edu- cação não parece ter sido concebido para ser aplicado a um universo mais vasto de situações por lhe faltar, claramente, um princípio de generalidade subjacente.

Com efeito, estava ali em causa, para um universo bem delimitado de destinatários, num período concreto, a aplicação das regras transitórias de progressão na car- reira. 26.º A propósito daquele princípio de generalidade, afirma Jorge Miranda (Manual de Direito Constitucio- nal, t.

V , Coimbra, 2010, p. 147) que só são admissí- veis as leis individuais ‘contanto que, por detrás deste ou daquele comando aplicável a certa pessoa, possa encontrar -se uma prescrição ou um princípio geral e que não se criem privilégios ou discriminações’. 27.º Dificilmente poderá o legislador, sem invasão da esfera administrativa, transformar o conteúdo do despa- cho num princípio geral, aplicável a todos os docentes, em substituição de um regulamento administrativo cuja norma habilitante não revoga. 28.º Tal substituição concita ainda uma dúvida de conformidade constitucional que importa, a final, di- lucidar. 29.º De acordo com o disposto no artigo 4.º do de- creto, ‘a presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação’. 30.º Porém, estando o regime, agora revogado, em vigor desde 24 de Junho de 2010, pode argumentar -se que os seus destinatários modularam os seus compor- tamentos para o ano lectivo em curso em função do ali disposto. 31.º De igual modo, estando o ano lectivo a aproximar- -se do fim, podem os docentes ter firmado as suas legí- timas expectativas de carreira em função destas regras e da avaliação que delas resultaria. 32.º Ora, a revogação pura e simples do regime e a sua substituição por um outro, intercalar, que não foi concebido para os mesmos efeitos, com eficácia retroac- tiva ou, ao menos, retrospectiva é susceptível de afectar a confiança dos destinatários da norma, 33.º Tal afectação pode configurar uma violação in- constitucional do princípio da protecção da confiança, previsto no artigo 2.º da Constituição, ínsito ao princípio do Estado de direito. 34.º Conclui -se, pois, que, entre outros eventuais fundamentos de inconstitucionalidade, designadamente de natureza formal ou procedimental, pode legitima- mente questionar -se a constitucionalidade material das normas objecto do pedido, por violação do princípio da separação de poderes, previsto nos artigos 2.º e 111.º da Constituição, da esfera de intervenção da Administra- ção, prevista na alínea

  1. do artigo 199.º da Constitui- ção e do...

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