Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 654/2009, de 12 de Fevereiro de 2010

Acórdáo do Tribunal Constitucional n. 654/2009

Processo n. 668/06

Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:

I - Relatório

1 - Um grupo de 25 deputados do Partido Socialista à Assembleia da República requereu, ao abrigo da alínea f) do n. 2 do artigo 281. da Constituiçáo, a apreciaçáo e declaraçáo, com força obrigatória geral, da ilegalidade e da inconstitucionalidade de todas as normas contidas nos seguintes diplomas:

  1. Decreto Legislativo Regional n. 19/99/M, de 1 de Julho (que transforma a Administraçáo dos Portos da Regiáo Autónoma da Madeira na sociedade APRAM - Administraçáo dos Portos da Regiáo Autónoma da Madeira, S. A., e aprova os respectivos estatutos), na redacçáo que lhe é dada pelo Decreto Legislativo Regional n. 25/2003/M, de 23 de Agosto;

  2. Decreto Legislativo Regional n. 18/2000/M, de 2 de Agosto, que cria a Ponta do Oeste - Sociedade de Promoçáo e Desenvolvimento da Zona Oeste da Madeira, S. A. (doravante, sociedade Ponta do Oeste);

  3. Resoluçáo do Governo da Regiáo Autónoma da Madeira n. 190/2004, de 12 de Fevereiro (publicada no Jornal Oficial da Regiáo Autónoma da Madeira, 1.ª série, n. 20, suplemento, de 19 de Fevereiro de 2004), que determina a afectaçáo à sociedade Ponta do Oeste das áreas do domínio público regional afectas à APRAM;

  4. Resoluçáo do Governo da Regiáo Autónoma da Madeira n. 778/2005, de 9 de Junho (publicada no Jornal Oficial da Regiáo Autónoma da Madeira, 1.ª série, n. 69, de 20 de Junho de 2005), que autoriza a desafectaçáo do-minial e a integraçáo no património da sociedade Ponta do Oeste de uma parcela de terreno com a área de 46 500 m2,

    a confinar a norte com a estrada, a sul com o mar, a leste com a estrada e outros e a oeste com a falésia.

    2 - O requerente fundamentou o pedido nos seguintes termos:

    A marina e espaços adjacentes da orla costeira localizados no Lugar de Baixo, freguesia e concelho da Ponta do Sol, Madeira, vulgarmente designados por «marina do Lugar de Baixo», constituem um empreendimento de lazer, cuja concepçáo, promoçáo, construçáo e gestáo foram atribuídos à sociedade Ponta do Oeste. Trata -se de uma parcela de terreno com a área de 46 500 m2, que confina a norte com a estrada, a sul com o mar, a leste com a estrada e outros e a oeste com a falésia;

    O Decreto Legislativo Regional n. 19/99/M transformou a APRAM (até aí, um instituto público dotado de autonomia administrativa, financeira e patrimonial) numa sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos e desafectou do domínio público da Regiáo Autónoma da Madeira (doravante, RAM) os equipamentos e edifícios afectos àquele instituto público, integrando -os no património da sociedade que lhe sucedeu (artigo 2., n. 4);

    O Decreto Legislativo Regional n. 18/2000/M criou a sociedade Ponta do Oeste (sociedade anónima de capital exclusivamente público, mas que pode vir a integrar capitais privados, nos termos previstos no artigo 2., n. 4) e atribui -lhe o direito de utilizar e administrar os bens do domínio público ou privado da Regiáo Autónoma da Madeira que se situem na sua zona de intervençáo (Ribeira Brava, Ponta do Sol e Calheta);

    O Decreto Legislativo Regional n. 25/2003/M alterou o Decreto Legislativo Regional n. 19/99/M, passando este diploma a atribuir competência ao Governo Regional para (i) delimitar, por resoluçáo, as áreas do domínio público da RAM afecto à APRAM sobre as quais a sociedade Ponta do Oeste exerce o direito de utilizaçáo e administraçáo dominial e (ii) autorizar as operaçóes de desafectaçáo dominial e de integraçáo dos bens desafectados no património da sociedade Ponta do Oeste necessárias ao cumprimento dos programas de desenvolvimento aprovados (artigo 2., n. 7);

    Ao abrigo dessa norma, a Resoluçáo do Governo Regional n. 190/2004 transferiu para a sociedade Ponta do Oeste o direito de utilizaçáo e administraçáo de áreas do domínio público regional, incluindo a marina do Lugar de Baixo;

    A Resoluçáo do Governo Regional n. 778/2005 (também ao abrigo do artigo 2., n. 7, do Decreto Legislativo Regional n. 19/99/M, na redacçáo dada pelo Decreto Legislativo Regional n. 25/2003/M) concretizou a desafectaçáo dominial e a integraçáo no património da sociedade Ponta do Oeste da parcela de terreno onde está instalada a marina do Lugar de Baixo e as instalaçóes anexas;

    A marina do Lugar de Baixo pertence ao domínio público marítimo do Estado. Desde logo, o Decreto -Lei n. 468/71, de 5 de Novembro (com as alteraçóes introduzidas pelo Decreto -Lei n. 53/74, de 15 de Fevereiro, pelo Decreto -Lei n. 89/87, de 26 de Fevereiro, e pela Lei n. 16/2003, de 4 de Junho), que define o regime jurídico dos terrenos do domínio público hídrico do continente e ilhas adjacentes, considera pertencerem ao domínio público do Estado os leitos e margens das águas do mar e de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis (artigo 5.).

    Além disso, o Decreto -Lei n. 52/85, de 1 de Março, que regula os direitos de soberania do Estado português sobre o mar territorial, consagra bens dominiais naturais que pertencem ao domínio público marítimo do Estado, neles incluindo os leitos das águas territoriais da RAM;

    Esses bens pertencem ao domínio público necessário do Estado e náo é constitucionalmente possível integrá -los no domínio público da RAM (cf. Eduardo Paz Ferreira, «Domínio público e privado da Regiáo», in A Autonomia como Fenómeno Cultural e Político, Angra do Heroísmo, 1987, p. 75, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituiçáo da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., 1993, p. 413, bem como o Acórdáo do Tribunal Constitucional n. 330/99). E o domínio público marítimo pertence ao conjunto de bens que interessam à defesa nacional (cf. o Parecer da Comissáo Constitucional n. 26/80, os Acórdáos do Tribunal Constitucional n.os 280/90 e 330/99, e os Pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria -Geral da República n.os 10/82, 92/88 e 16/91), estando excluído do domínio público regional (artigo 144., n. 2, do Estatuto Político -Administrativo da Regiáo Autónoma da Madeira - doravante EPARAM);

    O Decreto -Lei n. 468/71 admite o uso privativo de parcelas do domínio público, mediante atribuiçáo de licença ou concessáo (artigos 17. e 18.), incluindo as regióes autónomas entre as entidades competentes para esse efeito (artigo 36.). Todavia, esse diploma náo atribui competência às regióes autónomas para a desafectaçáo de bens do domínio público marítimo do Estado;

    Em face do exposto, conclui -se que a área onde se encontra a marina do Lugar de Baixo faz parte do domínio público marítimo do Estado e, como tal, náo podia ser alvo de desafectaçáo dominial e consequente integraçáo no património da sociedade Ponta do Oeste. Essa situaçáo consubstancia uma violaçáo da reserva legislativa da Assembleia da República constante do artigo 165., n. 1, alínea v), da Constituiçáo - porquanto se trata de matéria relativa ao regime dos bens do domínio público - e, consequentemente, uma violaçáo do limite negativo do poder legislativo regional consagrado no artigo 112., n. 4, e no artigo 227., n. 1, alínea b), da Constituiçáo;

    Da conjugaçáo do artigo 165., n. 1, alínea v), com o artigo 84., n. 2, ambos da Constituiçáo, resulta que é a lei parlamentar que estabelece o regime e condiçóes de utilizaçáo dos bens que constituem o domínio público do Estado e de outras entidades públicas susceptíveis de serem titulares de bens dominiais públicos, como é o caso das regióes autónomas;

    Os actos normativos objecto do pedido também sáo ilegais, uma vez que extravasam o conceito de interesse específico resultante da alínea mm) do artigo 40. do EPARAM, a partir do qual o artigo 46. do EPARAM define o âmbito material da competência legislativa da RAM. Com efeito, o artigo 40., alínea mm), do EPARAM estabelece que a «orla marítima» constitui matéria de interesse específico da RAM, mas náo parece possível que, ao abrigo dessa norma, se possa desafectar uma parcela dos bens do domínio marítimo do Estado, pois tal excede, em muito, a finalidade da norma.

    Conclui o requerente que as normas constantes do Decreto Legislativo Regional n. 19/99/M (na redacçáo dada pelo Decreto Legislativo Regional n. 25/2003/M) e do Decreto Legislativo Regional n. 18/2000/M, e das Resoluçóes do Governo da RAM n. 190/2004 e n. 778/2005

    440 padecem de inconstitucionalidade, por violaçáo do disposto nos artigos 165., n. 1, alínea v), 112., n. 4, e 227., n. 1, alínea b), todos da Constituiçáo, e padecem de ilegalidade, por violaçáo do disposto nos artigos 40., alínea mm), e

    46. do EPARAM.

    3 - Uma vez que o objecto do processo integra dois

    decretos legislativos regionais da Assembleia Legislativa da Madeira e duas resoluçóes do Governo Regional da Madeira, foram estes dois órgáos notificados para se pronunciarem, querendo, sobre o pedido, nos termos do artigo 54. da Lei n. 28/82, de 15 de Novembro (Lei de Organizaçáo Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional - LTC). A argumentaçáo aduzida nas duas respostas é coincidente, vindo a resposta do Governo Regional acompanhada de um parecer jurídico, elaborado por dois professores universitários.

    Na sua resposta, os órgáos autores das normas referiram, em suma, o seguinte:

    O pedido confunde domínio público portuário com domínio público marítimo, ignorando a correspondente diferença entre domínio público regional e domínio público estadual, e confunde a competência legislativa para definir o regime jurídico da matéria do domínio público com a competência normativa relativa à gestáo e administraçáo dos bens dominiais;

    O artigo 84. da Constituiçáo garante a existência de um domínio público estadual, regional e local, acolhendo um princípio de descentralizaçáo. Da articulaçáo do artigo 165., n. 1, alínea v), com o artigo 84., n. 2, ambos da Constituiçáo, resulta que estáo reservadas à Assembleia da República a identificaçáo dos bens do domínio público e a delineaçáo do respectivo regime jurídico;

    Náo existe no ordenamento jurídico português uma lei parlamentar que estabeleça um regime geral dos bens do domínio...

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