Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2009, de 19 de Março de 2009

Acórdáo do Supremo Tribunal de Justiça n. 5/2009

Processo n. 2807/08-5 - Uniformizaçáo de jurisprudência

1 - O Ministério Público interpôs recurso, extraordinário para uniformizaçáo de jurisprudência, do Acórdáo de 20 de Maio de 2008 do Tribunal da Relaçáo de Lisboa (processo n. 2472/08 -5), invocando como fundamento o Acórdáo da Relaçáo de Coimbra de 7 de Março de 2007 (processo n. 15/04.OGAVGS.C1).

Por Acórdáo de 8 de Outubro de 2008, da 5.ª Secçáo, teve o Supremo Tribunal de Justiça por verificada a oposiçáo operativa de julgados quanto à questáo da qualificaçáo jurídica da conduta daquele que, tendo sido nomeado depositário de um veículo automóvel, apreendido ao abrigo do disposto no artigo 162., n. 2, alínea f), do Código da Estrada, o conduz: crime de desobediência qualificada do artigo 22., n. 2, do Decreto -Lei n. 54/75, de 12 de Fevereiro, ou crime de desobediência simples do artigo 348., n. 1, alínea b), do Código Penal.

Cumprido o disposto no artigo 442. do CPP, veio o

Ministério Público neste Tribunal produzir detalhadas alegaçóes escritas em que concluiu:

1 - Entendendo -se que o aresto recorrido deverá ser revogado e que o conflito que se suscita há -de resolver -se fixando -se jurisprudência no sentido do decidido no aresto fundamento.

2 - Propóe -se, para tal efeito, a seguinte redacçáo:

O depositário que utiliza um veículo automóvel, apreendido por falta de seguro obrigatório, comete, verificados os respectivos elementos constitutivos, o crime de desobediência simples do artigo 348., n. 1, alínea b), do Código Penal, por náo ser tal conduta enquadrável nas disposiçóes contidas no artigo 22., n.os 1 e 2, do Decreto -Lei n. 54/75, de 12 de Fevereiro.

Colhidos os vistos e realizada a conferência em plenário das secçóes criminais, cumpre conhecer e decidir.

2.1 - E conhecendo.

Continua a entender -se, como decidiu o acórdáo da secçáo sobre a questáo preliminar, que se verificam os necessários pressupostos da uniformizaçáo de jurisprudência, designadamente a oposiçáo de julgados quanto à mesma questáo de direito: se o depositário que utiliza um veículo automóvel apreendido ao abrigo do disposto no artigo 162., n. 2, alínea f), do Código da Estrada, comete o crime de desobediência qualificada, previsto no artigo 22., n. 2, do Decreto -Lei n. 54/75, de 12 de Fevereiro, ou um crime de desobediência simples do artigo 348., n. 1, alínea b), do Código Penal, por náo ser tal conduta enquadrável nas disposiçóes contidas naquele artigo 22., n.os 1 e 2.

Com efeito, ambos os acórdáos (fundamento e recorrido) se pronunciam sobre a questáo já identificada em termos opostos.

O acórdáo fundamento (de 7 de Março de 2007 da Relaçáo de Coimbra, processo n. 15/04.OGAVGS.C1), publicado na íntegra na respectiva base de dados, tem aí o seguinte sumário:

I - As disposiçóes contidas no artigo 22. do Decreto -Lei n. 54/75 têm aplicabilidade no âmbito específico do registo de propriedade de veículos e respectivos documentos, náo abrangendo as situaçóes de falta de documentos que titulem a existência de seguro obrigatório.

II - Quem circular com veículo apreendido por náo ter apresentado, no prazo legal, os documentos relativos ao seguro obrigatório comete o crime de desobediência simples e náo o de desobediência qualificada.

E, na verdade, escreve -se nesse aresto:

Contudo, náo estabelece qualquer cominaçáo, designadamente a de desobediência qualificada para a circulaçáo do veículo apreendido.

Por sua vez o artigo 162., n. 1, alínea f), do Código da Estrada, na redacçáo do Decreto -Lei n. 265 -A/2001, de 28 de Setembro, dispóe que o veículo deve ser apreendido pelas autoridades de investigaçáo criminal ou fiscalizaçáo ou seus agentes quando náo tenha sido efectuado seguro de responsabilidade civil nos termos da lei.

Depois o n. 4 deste artigo limita -se a prever que o proprietário pode ficar, como ocorreu nos autos, como fiel depositário do veículo apreendido, náo estabelecendo também qualquer cominaçáo.

No sentido de que quem conduzir ciclomotor apreen-dido por falta do respectivo seguro de responsabilidade civil comete o crime de desobediência simples nos termos acima apontados, decidiram o Acórdáo da Relaçáo do Porto de 19 de Novembro de 2003, t. V, p. 225, e Acórdáo da Relaçáo de Lisboa 7 de Dezembro de 2004, t. V, p. 142.

Assim sendo, pelos motivos acima mencionados, deve concluir -se que náo existe norma que estabeleça a cominaçáo, designadamente, de desobediência qualificada e

que por isso bem andou o tribunal recorrido na sua douta e bem fundamentada sentença ao condenar o arguido pela prática de um crime de desobediência simples, previsto e punido pelo artigo 348., n. 1, alínea b), do CP.

Já no acórdáo recorrido (da Relaçáo de Lisboa de 20 de Maio de 2008, processo n. 2472/08 -5), foi decidido, diversamente, que o depositário que utiliza um veículo automóvel apreendido ao abrigo do disposto no artigo 162., n. 2, alínea f),do Código da Estrada, comete um crime de desobediência qualificada por se encontrar tal conduta contemplada no artigo 22., n. 2, do Decreto -Lei n. 54/75, de 12 de Fevereiro.

Finalmente, no intervalo da prolaçáo dos dois acórdáos, náo ocorreu modificaçáo legislativa que interfira directa ou indirectamente na resoluçáo da questáo controvertida.

Importa, pois, entrar na questáo controvertida, com vista à desejada uniformizaçáo de jurisprudência.

2.2 - Essa questáo, a de saber se aquele que, tendo sido nomeado depositário de um veículo automóvel apreen-dido ao abrigo do disposto no artigo 162., n. 2, alínea f), do Código da Estrada, o conduz, comete um crime de desobediência simples ou de desobediência qualificada, tem tido desencontradas soluçóes por parte dos tribunais superiores.

Assim:

No sentido de que comete o crime de desobediência simples, do artigo 348., n. 1, alínea b), do Código Penal, pronunciaram -se os seguintes acórdáos:

Da Relaçáo do Porto: Acórdáos de 16 de Abril de 1997, processo n. 9740164 (1), de 19 de Novembro de 2003, processo n. 4510/03, de 6 de Abril de 2005, processo n. 0510023, e de 19 de Outubro de 2005, processo n. 0511904;

Da Relaçáo de Coimbra: Acórdáos de 7 de Março de

2007, processo n. 15/04.0GAVGS.C1 (2), de 7 de Novembro de 2007, processo n. 676/06.5TAGRD.C1, e de 9 de Janeiro de 2008, processo n. 711/06.7TAACB.C1, e o acórdáo fundamento de 7 de Março de 2007, processo n. 15/04.OGAVGS.C1;

Da Relaçáo de Lisboa: Acórdáos de 13 de Outubro de

1998, processo n. 0038485 (3), de 7 de Outubro de 2004, processo n. 4883/04, e de 18 de Janeiro de 2005, processo n. 7988/04 -5;

Da Relaçáo de Évora: Acórdáo de 19 de Dezembro de

2006, processo n. 1752/06 -1 (4).

Já no sentido de que esse comportamento corporiza o crime de desobediência qualificada, do artigo 22., n. 2, do Decreto -Lei n. 54/75, de 12 de Fevereiro, pronunciaram -se os seguintes acórdáos:

Da Relaçáo do Porto: Acórdáos de 17 de Junho de 1998, processo n. 9840440 (5), de 21 de Outubro de 1998, processo n. 9810715 (6), de 5 de Abril de 2000, processo n. 9941372 (7), e de 12 de Julho de 2000, processo n. 0040286 (8);

Da Relaçáo de Coimbra: Acórdáo de 16 de Julho de 2008, processo n. 480/07.3GAMLD (9);

Da Relaçáo de Lisboa: Acórdáos de 25 de Janeiro de 1994, processo n. 0021345 (10), e de 26 de Fevereiro de 2004, processo n. 10196/03 -9 (11), e o acórdáo fundamento de 20 de Maio de 2008.

1764 O Supremo Tribunal de Justiça foi chamado a pronunciar -se no Acórdáo de 26 de Abril de 1989, processo n. 39903 (12),

e fê -lo no primeiro sentido:

Comete o crime de desobediência simples - artigos 43., § 2, do Código da Estrada, e 388., n. 1, do Código Penal - aquele que conduz na via pública um veículo que fora apreendido por intervençáo num acidente sem que nessa data estivesse seguro, embora posteriormente a apreensáo o arguido tivesse procedido ao seguro do veículo, uma vez que tal apreensáo ainda náo tinha sido levantada pelo tribunal.

2.3 - Isto posto, analisemos, entáo, a disciplina legal a atender, ou seja, o regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil, os artigos 150. e 162. do Código da Estrada, 348. do Código Penal e 22. do Decreto -Lei n. 54/75, de 12 de Fevereiro.

2.3.1 - A obrigatoriedade do seguro de responsabili-dade civil automóvel e o respectivo regulamento foram estabelecidas pelo Decreto -Lei n. 165/75 e pelo Decreto n. 166/75, ambos de 28 de Março, diplomas que, no entanto, viram a sua entrada em vigor adiada e, depois, a própria execuçáo adiada sine die (13).

Só com o Decreto -Lei n. 408/79, de 25 de Setembro, que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1980, foi real-mente instituído o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel: um sistema de transiçáo que estabelecia a obrigatoriedade do seguro da responsabilidade civil que pudesse resultar da sua utilizaçáo para os veículos terrestres a motor, seus reboques e semi -reboques, que circulassem na via pública, ou em locais públicos ou privados abertos ao público ou a certo número de pessoas com o direito de os utilizar (artigo 1.).

Previu -se entáo, no domínio da fiscalizaçáo e penalidades, a obrigatoriedade de exibiçáo, pelos condutores ou pessoas abrangidas pelo seguro, do documento comprovativo da efectivaçáo do seguro sempre que solicitado pelas autoridades competentes (artigo 23.), implicando a falta da sua exibiçáo (certificado de seguro ou cartáo de responsabilidade civil) no prazo de cinco dias a imediata apreensáo do veículo, a manter -se enquanto náo fosse feita prova de ter sido efectuado o seguro obrigatório (artigo...

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