Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2008, de 04 de Abril de 2008

Acórdáo do Supremo Tribunal de Justiça n. 4/2008

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I - Grupo SM - CDM, L.da, intentou, em 21 de Março de 2002, na 6.ª Vara Cível de Lisboa, acçáo declarativa de condenaçáo, sob a forma ordinária, contra o Banco AA, S. A. (actualmente Banco BST, S. A.), pedindo que este fosse condenado a pagar -lhe a quantia de € 97 175,38, correspondendo € 88 573,74 a capital e € 8601,64 a juros de mora vencidos, acrescida de juros de mora vincendos até efectivo e integral pagamento.

Para tanto alegou, em síntese:

É dona e legítima portadora de 20 cheques, todos sacados por FFC sobre a conta n. 200000000000 do Banco

AA, por si titulada.

Tais cheques foram entregues à A., para pagamento de uma dívida da sociedade VS - Vestuário e Bijuterias, L.da

Apresentados a pagamento nos oito dias posteriores à data da respectiva emissáo foram todos devolvidos com a indicaçáo de cheque revogado por justa causa - falta vício na formaçáo da vontade ou simplesmente cheque revogado - falta vício na formaçáo da vontade.

Esta devoluçáo ocorreu em consequência de o sacador ter dado ao Banco R. ordem de revogaçáo dos cheques, o que este veio a aceitar e a cumprir, razáo pela qual a

  1. nunca recebeu as quantias tituladas pelos cheques, estando, por conseguinte, desembolsada da quantia de € 88 573,74, correspondente ao somatório dos 20 cheques.

    Contestou o R., pugnando pela improcedência da acçáo.

    A A. replicou.

    O R. deduziu intervençáo acessória provocada do sacador e da sociedade devedora. Admitida a intervençáo, após audiçáo da A. que náo se opôs, informando que os chamados haviam sido declarados falidos.

    Foram os intervenientes citados nas pessoas dos liquidatários judiciais, mas náo constituíram mandatário nem contestaram.

    Foi proferido despacho saneador, onde se fixaram os factos assentes e a base instrutória, tendo sido formuladas reclamaçóes parcialmente atendidas.

    Realizado o julgamento em sede de 1.ª instância, foram fixados os factos provados, sem qualquer reclamaçáo e, a final, foi proferida sentença que julgou a acçáo parcialmente procedente e condenou o R. a pagar à autora a quantia de € 88 573,74, acrescida de juros de mora, desde a data de citaçáo.

    A 1.ª instância fundamentou a decisáo, no essencial, deste modo:

    Náo obstante a justificaçáo escrita no verso dos cheques se referir a revogaçáo com justa causa, nenhum facto foi alegado e muito menos provado que a consiga fundamentar. Ao contrário, o réu admitiu que houve uma mera ordem de revogaçáo.

    A recusa operada foi ilegítima, face ao disposto no artigo 32. da LUC, pelo que, nos termos dos artigos 14., segunda parte do Decreto n. 13 004 e 483. do Código Civil, o réu terá de responder por perdas e danos, caso se verifiquem os demais pressupostos da responsabilidade civil.

    E, mais à frente (fl. 224):

    [O] réu ao aceitar ilicitamente a revogaçáo dos cheques (uma vez que este foi apresentado a pagamento

    no prazo legal), impediu que se verificasse o facto que implicava a obrigaçáo de notificaçáo do sacador para regularizar a situaçáo dentro dos 30 dias referidos no artigo 1. do Decreto -Lei n. 316/97, de 19 de Novembro, e comunicaçáo ao Banco de Portugal.

    E concluiu (ibidem):

    [O] Banco sacado é responsável extracontratualmente, para com o portador do cheque, pelos danos resultantes do náo pagamento do cheque na data da apresentaçáo e pela sua náo devoluçáo, com indicaçáo do motivo nele aposto, durante o mesmo prazo de apresentaçáo a pagamento.

    No caso, «o dano corresponde aos montantes dos cheques que a autora náo recebeu da sacadora, acrescido de juros a contar da citaçáo».

    Inconformado, o R. interpôs da referida decisáo recurso de revista - recurso per saltum -, requerendo o julgamento ampliado, visando a uniformizaçáo da jurisprudência.

    O R. conclui, em síntese, as suas alegaçóes do seguinte modo:

    1 - O Tribunal a quo considerou que o BST praticou um facto ilícito, por ter aceite uma ordem de revogaçáo dos cheques juntos aos autos.

    2 - Contrariamente ao defendido na decisáo da

    1.ª instância e à jurisprudência maioritária subsequente ao assento n. 4/00, de 17 de Fevereiro, entendemos que o Decreto n. 13 004, de 1927, foi integralmente revogado com a ratificaçáo por Portugal da Convençáo de Genebra que aprovou a Lei Uniforme do Cheques.

    3 - Tal entendimento, tem sido defendido, entre outros, pelo Dr. Fílinto Elísio [...], Prof. Ferrer Correia e Dr. António Caeiro [...] e mais recentemente pelo Prof. Germano Marques da Silva [...] e sempre foi o entendimento maioritário da jurisprudência dos nossos tribunais superiores até à publicaçáo do citado assento.

    4 - Face ao que decorre da LUC (artigos 40., 4., e 25.), o Banco sacado náo é obrigado cambiário e náo pode aceitar ou avalizar um cheque, pelo que náo responde perante o beneficiário.

    5 - Por outro lado, náo intervêm na relaçáo cartular estabelecida entre o sacador e o beneficiário, pelo que náo pode ser atingido pelo cumprimento de uma ordem emanada pelo sacador, que ordena o náo pagamento de um cheque que pôs a circular.

    6 - Sem prejuízo do anteriormente concluído [...] o sacado responde, nos termos gerais da responsabili-dade extracontratual, mas náo por força do que dispóe a segunda parte do artigo 14. do Decreto n. 13 004, de 1927, que se encontra revogado.

    7 - Mas mesmo que se entenda que a segunda parte do artigo 14. do Decreto n. 13 004, de 1927, está em vigor, náo pode o mesmo deixar de ser lido em articulaçáo com o n. 2 do artigo 1170. do Código Civil, pelo que, em situaçóes de justa causa, a revogaçáo do cheque deve admitir -se.

    8 - Com a alteraçáo introduzida pelo Decreto n. 316/97, de 19 de Novembro, no artigo 1., n. 2, do Decreto -Lei n. 454/91, de 28 de Fevereiro, algo se alterou nas relaçóes sacado/sacador, quanto ao princípio da livre revogabilidade, na medida em que os Bancos, desde a entrada em vigor do referido Decreto--Lei n. 316/97, só podem aceitar ordens de revogaçáo, sustentadas em justa causa.

    9 - Ao passo que antes o sacado podia aceitar livremente uma ordem de revogaçáo, com a publicaçáo do referido Decreto -Lei n. 316/97, tal faculdade ficou limitada [...]

    10 - Com a alteraçáo da redacçáo do artigo 1., n. 2, levada a cabo pelo Decreto -Lei n. 316/97, de 19 de Novembro, houve uma alteraçáo significativa: onde se lia "saque ou participa na emissáo de um cheque sobre uma conta cujo saldo náo apresente provisáo suficiente" passou a ler -se "verificada a falta de pagamento".

    11 - A redacçáo actual "verificada a falta de pagamento" é mais abrangente e refere -se às várias hipóteses do cheque que apresentado a pagamento náo é pago: falta de provisáo, saque irregular, revogaçáo, conta cancelada, etc.

    12 - A redacçáo introduzida pelo Decreto -Lei n. 316/97 conduz a um resultado de que o sacado náo se pode desviar: obriga o sacado, perante uma situaçáo de falta de pagamento (e náo exclusivamente por falta de provisáo, como ocorria antes da alteraçáo da lei), a notificar o sacador para proceder à regularizaçáo do cheque náo pago, no prazo de 30 dias após a notificaçáo para o efeito (artigos 1., n. 2, e 1. -A, n. 1, do Decreto-Lei n. 454/91).

    13 - Ora existindo um dever imposto ao sacado, decorrente de norma expressa, de notificar o sacador para regularizar, em 30 dias, o cheque náo pago [...], náo é de admitir que o sacado aceite uma ordem de revogaçáo.

    14 - Se aceitar uma ordem de revogaçáo, entra em contradiçáo: por um lado, o Banco sacado conforma -se com a ordem, mediante a aposiçáo de um carimbo, no verso do cheque, com a indicaçáo de "cheque revogado"; por outro lado, está obrigado, por lei, a notificar o sacador para vir regularizar o cheque, cuja ordem para náo pagar aceitou como válida.

    15 - Dito isto, o Banco, náo pode acatar uma ordem de revogaçáo, pois se o fizer está potencialmente a incorrer em responsabilidade civil extracontratual (n. 1, segunda parte, do artigo 483. do CC).

    16 - Mas como encontrar o ponto de equilíbrio entre este entendimento e as hipóteses em que o sacador tem razóes (justa causa) para ordenar a revogaçáo de um cheque que pôs a circular ou foi posto a circular (por exemplo, furto) contra sua vontade?

    17 - Pelo apelo à natureza jurídica das relaçóes sacado/sacador (contrato do cheque) - mandato sem representaçáo conferido no interesse do mandante e do mandatário - pode limitar -se a aceitaçáo da revogaçáo aos casos de "justa causa", nos termos do artigo 1170., n. 2, do Código Civil.

    18 - A responsabilizaçáo do sacado náo decorre, como já se viu, da lei cambiária - que a náo admite! - nem de qualquer relaçáo jurídica entre o sacado e o portador - que inexiste! - nem de se mostrar em vigor a segunda parte do artigo 14. do Decreto n. 13 004, mas de norma expressa que impede a observância de uma instruçáo de revogaçáo (artigos 1., n. 2, e 1. -A, n. 1, do Decreto -Lei n. 454/91), que é, todavia, afastada, em situaçóes de justa causa, por força do que dispóe o n. 2 do artigo 1170. do CC.

    19 - Náo é juridicamente aceitável defender -se a responsabilizaçáo civil, por aceitaçáo de uma ordem

    de revogaçáo, durante o período de apresentaçáo a pagamento, existindo fundamento jurídico (justa causa) para o náo pagamento [...] - ora é o que parece resultar do assento n. 4/00, onde se defende a irrevogabilidade total do cheque, durante o período de apresentaçáo a pagamento.

    20 - Defender -se posiçáo diferente - ou seja, a total irrevogabilidade durante o período de apresentaçáo a pagamento - é atentar contra o n. 2 do artigo 1170. do Código Civil.

    21 - A relaçáo Banco/sacador traduz um mandato sem representaçáo, uma vez que o Banco actua em nome próprio [...]

    22 - Mas o mandato é também conferido no interesse do mandatário, uma vez que há interesse por parte do Banco no negócio de atribuiçáo de cheques a clientes que previamente lhe confiam o dinheiro [...]

    23 - Hoje, é o conjunto de serviços prestados pelo Banco, a respectiva qualidade, associada à confiança de que o Banco concederá crédito, em caso de necessidade e de acordo com a capacidade...

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