Acórdão n.º 409/2008, de 24 de Setembro de 2008

Acórdáo n. 409/2008

Processo n. 361/08

Acordam na 2.ª Secçáo do Tribunal Constitucional:

1 - Relatório. - José Manuel Valdez da Silva Cepeda foi condenado, por sentença de 19 de Abril de 2007 do Tribunal Judicial da Comarca de Ovar, como autor de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 24., n.os 1 e 5, do Regime Jurídico das Infracçóes Fiscais Náo Aduaneiras (RJIFNA), aprovado pelo Decreto -Lei n. 20 -A/90, de 15 de Janeiro, na redacçáo do Decreto-Lei n. 394/93, de 24 de Novembro, na pena de 1 ano e 6 meses de prisáo, suspensa pelo período de 3 anos, com a obrigaçáo de o arguido pagar, durante o período da suspensáo, ao Estado Português a quantia de € 35 333,33.

Desta sentença interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relaçáo do Porto, suscitando na respectiva motivaçáo, para além do mais (prescriçáo do procedimento criminal, errado enquadramento legal dos factos praticados, violaçáo dos artigos 40. e 70. do Código Penal e verificaçáo de circunstâncias que imporiam a atenuaçáo especial da pena), questóes relativas: (i) à nulidade da decisáo por violaçáo do artigo 2., n. 2, do Código Penal; (ii) à nulidade da decisáo por da acusaçáo náo constarem factos suficientes para condenar o arguido e por violaçáo do princípio do acusatório, por a condenaçáo ter sido proferida com base em factos náo compreendidos naquela peça processual e ocorridos após a sua prolaçáo; e (iii) à violaçáo do princípio da legalidade - com base em argumentaçáo sintetizada nas seguintes conclusóes:

1.ª Foi o recorrente condenado como autor de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, em pena de prisáo de um ano e seis meses, suspensa na sua execuçáo, e subordinada à condiçáo do pagamento da quantia de € 35 333,33.

2.ª Sucede, no entanto, que náo só deveria o arguido ser absolvido da prática de tal crime, como também enferma a douta sentença em recurso de nulidade insanável.

3.ª De facto, a 1 de Janeiro de 2007 entrou em vigor a Lei n. 53 -A/2006, de 29 de Dezembro, que veio introduzir alteraçóes ao RGIT.

40236 4.ª A alteraçáo em causa incidiu sobre o n. 4 do artigo 105. do invocado diploma legal, através do acrescento de uma nova alínea b).

5.ª Confrontando o regime legal resultante da invocada alteraçáo com o regime legal anterior, constata -se entáo que, para que se verifique a ocorrência de um crime de abuso de confiança fiscal é sempre necessário que ocorra uma notificaçáo para que o agente, em 30 dias, proceda ao pagamento da prestaçáo tributária em falta, acrescida dos juros e eventual coima.

6.ª Tal alteraçáo consubstancia uma verdadeira despenalizaçáo dos factos que, face à anterior lei, constituía crime de abuso de confiança fiscal.

7.ª Na verdade, no regime anteriormente vigente, o tipo de ilícito reconduzia -se a uma mora qualificada no tempo, sendo a mora simples punida como contra -ordenaçáo, ilícito de menor gravidade.

8.ª Presentemente, o legislador aditou uma circunstância que, por referir -se ao agente, encontra -se no cerne da conduta proibida.

9.ª Com efeito, na nova lei, impóe -se agora que o agente náo entregue à Administraçáo Tributária, total ou parcialmente, prestaçáo tributária, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigada a entregar, pelo prazo superior a 90 dias sobre o termo do prazo legal da entrega da prestaçáo e desde que náo tenha procedido ao pagamento da prestaçáo comunicada à Administraçáo Tributária, através da correspondente declaraçáo, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificaçáo para o efeito.

10.ª E, deste modo, o legislador até agora criminalizava uma mora qualificada relativamente a um objecto material do crime, o imposto, atendendo aos fins deste. Actualmente, pretende estabelecer como crime uma mora específica e um contexto relacional qualificado.

11.ª Ora, de acordo com o artigo 2., n. 2, do Código Penal, o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número de infracçóes.

12.ª Assim, ao náo determinar a extinçáo do procedimento criminal, e, ao invés, ao ter condenado o aqui recorrente em pena de prisáo, violou a douta sentença o disposto no referido artigo 2., n. 2, do Código Penal.

Sem conceder, 13.ª Mesmo que se náo entenda que ocorreu despenalizaçáo dos factos imputados ao recorrente, o que é certo é que nunca a douta sentença ora em recurso deveria ter condenado o arguido, enfermando a mesma de nulidade.

14.ª Assim, mesmo que se entenda que a nova alteraçáo veio, náo configurar despenalizaçáo, mas sim acrescentar uma nova condiçáo de punibilidade, o que é certo é que da acusaçáo náo constavam factos suficientes para que, mesmo que provada, viesse o procedimento criminal a terminar, tal como terminou, na condenaçáo do arguido aqui recorrente.

15.ª De facto, náo obstante náo ter ocorrido qualquer alteraçáo ao conteúdo da acusaçáo, nos termos do disposto no artigo 358. do Código de Processo Penal, o que é certo é que, já após a realizaçáo da audiência de julgamento, o tribunal notificou o arguido para efectuar o pagamento dos tributos em causa, acrescido da respectiva coima e encargos legais, sendo que, após tal notificaçáo, e após ter ultrapassado o prazo sem que o pagamento se verificasse, veio a douta sentença a incluir tais factos e assim veio a condenar o recorrente.

16.ª Ora, a inclusáo destes factos, que no fundo traduzem os factos consubstanciadores das novas condiçóes de punibilidade, viola a lei, consubstanciando nulidade.

17.ª Na verdade, de acordo com o disposto no n. 3 do artigo 311. do Código de Processo Penal, a acusaçáo considerar -se -á infundamentada quando náo contenha a narraçáo dos factos ou quando os factos náo constituírem crime.

18.ª Por outro lado, e de acordo com o disposto no n. 1 do artigo 379. do Código de Processo Penal, a sentença será considerada nula quando condene por factos diversos dos descritos na acusaçáo ou na pronúncia ou quando o tribunal conheça ou se pronuncie sobre questóes de que náo podia tomar conhecimento.

19.ª Ora, conforme decorre do exposto, o tribunal, de facto, conheceu de factos náo constantes da douta acusaçáo, e concretamente avaliou e ponderou a falta de pagamento dos tributos por parte do arguido, no prazo de 30 dias.

20.ª Com efeito, face à lei actual, os prazos que ora sáo consignados fazem parte integral do ilícito penal do crime de abuso de confiança fiscal, pois que para que se verifique o crime de abuso de confiança fiscal é sempre necessário, para além do decurso do prazo legal da entrega da prestaçáo, existir o náo pagamento na sequência de uma notificaçáo para que o agente, em 30 dias, proceda ao pagamento da prestaçáo comunicada à Administraçáo Fiscal, acrescida de juros e do valor da coima aplicável.

21.ª Ora, se as novas condiçóes de punibilidade respeitantes ao tipo de ilícito em causa se náo encontram na acusaçáo, náo pode

o Tribunal substituir -se ao Ministério Público, ou à Administraçáo Fiscal, aditando os elementos em falta.

22.ª Consequentemente, náo só, no caso em apreço, a acusaçáo se demonstrava infundada, como também o tribunal se pronunciou sobre factos náo constantes na mesmíssima acusaçáo.

23.ª Como tal, enferma a douta sentença de nulidade de acordo com o preceituado nas alíneas b) e c) do n. 1 do artigo 379. do CPP.

24.ª Por outro lado, viola ainda a douta sentença o princípio do acusatório, já que tal sentença condenatória foi proferida com base na falta de pagamento dos tributos no prazo de 30 dias após notificaçáo efectuada pelo Tribunal, sendo que, náo só tais factos se náo compreendiam na acusaçáo, como, inclusivamente, sáo factos posteriores à prolaçáo de tal acusaçáo e mesmo, até, da audiência de julgamento.

25.ª Para além de violar o princípio do acusatório, violou também a sentença em causa o princípio da legalidade.

26.ª Com efeito, ao substituir -se o Tribunal ao Ministério Público, e deste modo à Administraçáo Fiscal, notificando o ora recorrente para efectuar o pagamento dos tributos e demais acréscimos, ofendeu os ditames constitucionais consagrados nos artigos 202. e 219. da Constituiçáo da República Portuguesa, incorrendo deste modo em interpretaçáo inconstitucional do preceito legal resultante da nova redacçáo introduzida pelo artigo 95. da Lei n. 53 -A/2006, de 29 de Dezembro, ao n. 4 do artigo 105. do RGIT.

Por acórdáo do Tribunal da Relaçáo do Porto, de 12 de Dezembro de 2007, foi concedido parcial provimento ao recurso, ficando o recorrente condenado, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punível pelo artigo 105., n. 1, do Regime Geral das Infracçóes Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n. 15/2001, de 5 de Junho (cujo regime foi considerado mais favorável para o arguido que o constante do artigo 24., n. s 1 e 5, do RJIFNA), na pena de 14 meses de prisáo, com suspensáo da sua execuçáo pelo período de 14 meses, subordinada à condiçáo de o arguido pagar ao Estado a quantia de € 35 333,33 durante o período de suspensáo. Relativamente às questóes suscitadas nas conclusóes da motivaçáo atrás transcritas, expendeu o referido acórdáo:

II - Nulidade da decisáo recorrida por violaçáo do artigo 2., n. 2, do Código Penal.

O arguido imputa à decisáo recorrida a violaçáo do artigo 2.,

n. 2, do Código Penal, isto porque com a entrada em vigor da Lei n. 53 -A/2006, de 29 de Dezembro, ocorreu uma verdadeira despenalizaçáo dos factos que, face à lei anterior, integravam o tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal.

O artigo 105. do Regime Geral das Infracçóes Tributárias contém a previsáo do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal. Nos termos do seu n. 1, 'quem náo entregar à administraçáo tributária, total ou parcialmente, prestaçáo tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisáo até três anos ou multa até 360 dias'.

E dispóe o actual n. 4: 'Os factos descritos nos...

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