Acórdão n.º 80/86, de 09 de Setembro de 1986

Acórdão n.º 80/86 Processo n.º 148/84 Acordam no Tribunal Constitucional: I - Enquadramento da questão 1 - O Provedor de Justiça, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 281.º da Constituição e do artigo 51.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, veio requerer a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas dos artigos 5.º, n.º 1, e 6.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 233/80, de 18 de Julho.

Aduziu, como suporte do pedido, no essencial, o seguinte conjunto de razões: A aprovação do estatuto dos funcionários de justiça, utilizando a terminologia da parte preambular do Decreto-Lei n.º 450/78, de 30 de Dezembro, visou, além do mais, uniformizar e equiparar situações de vária ordem que se verificavam nos diferentes tribunais; Assim, o próprio Decreto-Lei n.º 233/80 anunciou a necessidade de reparar uma situação atentatória do princípio legal da equiparação criada naquele estatuto, estabelecendo no seu artigo 1.º que os funcionários das secretarias dos tribunais administrativos têm as categorias, direitos, deveres, incompatibilidades, vencimentos e outros abonos que competem aos funcionários de justiça; Todavia, o regime de promoção excepcional a escrivão de direito de 1.' classe definido nos artigos 5.º e 6.º do Decreto-Lei n.º 233/80 afasta-se completamente do princípio da equiparação consagrado no diploma que reestruturou as carreiras dos funcionários de justiça, sem que, para tanto, sejam conhecidas razões aceitáveis nos planos da legalidade e da justiça; Tal situação, constituindo tratamento discriminatório em relação aos demais escrivães de direito, envolve inconstitucionalidade material dos preceitos em causa, por ofensa ao princípio da igualdade consignado no artigo 13.º da Constituição.

2 - Notificado o Governo, como órgão autor da norma, nos termos do artigo 54.º da Lei n.º 28/82, apresentou a sua resposta portadora das seguintes conclusões: O Tribunal Constitucional é competente em razão da matéria para conhecer da inconstitucionalidade ou ilegalidade de normas enquanto comandos imperativos, dotados de generalidade e abstracção, típicas das normas jurídicas; As normas dos artigos 5.º, n.º 1, e 6.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 233/80 contêm e dão execução apenas a um acto materialmente administrativo, transitório, que se esgotou imediatamente no tempo ao aplicar-se a um só caso concreto, perfeitamente identificado à partida e que determinou a providência correlativa; Não possuindo a essencialidade e a tipicidade das normas jurídicas, aqueles preceitos são materialmente insusceptíveis de apreciação pelo Tribunal Constitucional em processo de fiscalização abstracta sucessiva; Assim, deverá abster-se de pronúncia sobre o pedido vertente.

3 - Tendo em atenção o exposto, cumprirá apreciar, desde logo, a questão prévia suscitada na resposta produzida pelo Primeiro-Ministro para, de seguida, na eventualidade do seu desatendimento, considerar então o fundado da questão de constitucionalidade posta no pedido do Provedor de Justiça.

II - A questão prévia 1 - A solução do problema assim colocado depende, primária e essencialmente, do conceito constitucional de norma para efeitos de fiscalização de constitucionalidade. Importa, pois, apurar os precisos contornos desse conceito para, em seguida, verificar se os preceitos cuja constitucionalidade foi posta em crise são ou não subsumíveis ao juízo do TribunalConstitucional.

2 - A questão em apreço foi já objecto de ampla indagação na nossa jurisprudênciaconstitucional.

Desde logo a Comissão Constitucional dela se ocupou explicitamente em diversas ocasiões, nomeadamente nos pareceres n.os 3/78, 6/78 e 13/82 (Pareceres, vol. 4.º, pp. 221 e 303 e segs., e vol. 19.º, pp. 149 e segs.).

E pode dizer-se que aquela Comissão firmou doutrina no sentido de que o conceito de 'norma', para o efeito de fiscalização da constitucionalidade, não abrange apenas os preceitos gerais e abstractos, mas também todo e qualquer preceito, ainda que de carácter individual e concreto, contido em diploma legislativo, mesmo quando constitua materialmente puro acto administrativo.

No parecer n.º 3/78, depois de se afirmar que os preceitos das chamadas leis medida ou leis providência também estão abrangidos na fiscalização da constitucionalidade por serem ainda 'normas jurídicas', pondera-se: Dúvida mais consistente reporta-se a uma espécie de normas contidas em diplomas do género mencionado (leis medida ou leis providência) constituída por aquelas normas que contenham actos administrativos [...] (leis pessoais em sentido estrito e rigoroso).

Tais normas limitar-se-iam a aplicar certa norma anterior, do mesmo ou de outro diploma, tal como faria a Administração ou a jurisdição por acto separado, só com a diferença de se conter dentro de um acto de força formalmente superior. Não seriam, portanto, normas jurídicas, mas actos administrativos ou jurisdicionais; não faria sentido declarar com força obrigatória geral um acto que, por si, não dispunha desta eficácia, mas de uma eficácia pessoal ou individual; e não se veria a utilidade que tal declaração pudesse vir a ter.

Estão argumentação não procede.

Já vimos que o facto de o acto administrativo (se é que assim pode qualificar-se) se conter em norma com força legal e, portanto, geral (com eficácia erga omnes e não apenas inter partes) é suficiente para lhe conferir o carácter de norma para o efeito do n.º 1 do artigo 281.º da Constituição.

[Pareceres, cit., p. 229. Itálicos originários.] Esta doutrina, a doutrina, em suma, de que, para o efeito da fiscalização da constitucionalidade, havia de se fazer apelo a um conceito formal e não a um conceito material de norma, acha-se especialmente sancionada e desenvolvida no parecer n.º 13/82. A esse respeito, aí se escreveu, com referência ao artigo 281.º, n.º 1, da versão originária da Constituição: Antes de mais, é esse o significado mais corrente ou imediato da expressão aquele que a associa (abstraindo agora das normas de direito não escrito) à representação de um 'preceito' ou 'disposição' estabelecido por acto do poder legislativo ou de um poder regulamentar, e constante do diploma que incorpora esse acto. E esta consideração terá maior valimento se puder dizer-se que a nossa Constituição não fornece 'qualquer apoio para uma definição material de lei, como acto legislativo geral e abstracto', e quando a própria distinção entre os conceitos de lei em sentido material e lei em sentido formal se revela em crise na doutrina.

E logo a seguir: Seja como for, é decerto seguro e indiscutível que a Constituição, ao prever o controle da constitucionalidade das 'normas' jurídicas e ao fazê-lo quer no artigo 281.º quer no seguinte, teve em vista não toda a actividade dos poderes públicos, mas apenas um sector dela, a saber, o que se traduz na emissão de regras de conduta ou padrões de valoração de comportamentos (i. e., de 'normas'): deste modo, fora deste específico controle ficam os puros actos de aplicação dessas regras ou padrões, que são os actos jurisdicionais e os actos administrativos, stricto sensu.

Mas de imediato se contrapunha: Simplesmente - e este outro argumento será, em nosso modo de ver, decisivo -, cumpre atentar em que um preceito legal que rege para um caso concreto, e que nessa medida se apresenta com uma eficácia equivalente à de um acto administrativo, nunca é um puro acto de 'aplicação' do direito preexistente, pois que simultaneamente se traduz num acto de 'criação' de direito novo: é que nele estabelece-se também a regra aplicável ao caso, regra que muitas vezes (se não normalmente) constitui um desvio ou uma excepção às que de outro modo seriam aplicadas, mas que justamente se torna necessária para conferir à providência administrativa adoptada o seu mesmo fundamento (de validade 'legal', claro).

E em nota esclarecia-se e reforçava-se aquela asserção: De todo o modo, ainda quando o preceito em causa não representa qualquer desvio ao direito anterior, e nada lhe acrescenta prima facie, não deixa ele de produzir também um efeito normativo: o de tornar de antemão certo e indiscutível esse direito, no caso concreto.

De tudo isto se concluía que mesmo um preceito ou disposição legal de conteúdo individual e concreto e com eficácia consumptiva contém implícita uma 'norma' que não deve ser subtraída à possibilidade de controle previsto no artigo 281.º, n.º 1, da Constituição.

3 - Também o Tribunal Constitucional, depois de haver tratado incidentalmente a questão (cf. os Acórdãos n.os 11/84 e 38/84, Diário da República, 2.' série, de 8 de Maio de 1984, e Diário da República, 1.' série, de 7 de Maio de 1984), desenvolveu-a com especial incidência no Acórdão n.º 26/85, Diário da República, 2.' série, de 16 de Abril de 1985.

Aqui se acentuou, com marcada nitidez, uma linha de rumo semelhante à traçada pela Comissão Constitucional, destacando-se agora, por mais significativos, os pontos seguintes: a) Se é inquestionável que todo o sistema de fiscalização da constitucionalidade só pode ter por objecto normas (cf. o teor dos artigos 277.º e seguintes da Constituição), não é menos verdade que na averiguação e determinação do que seja 'norma', para esse efeito, não pode partir-se de uma noção material, doutrinária e aprioristicamente estabelecida. E...

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