Recomendação n.º 5/2020

Data de publicação20 Novembro 2020
SectionSerie II
ÓrgãoEducação - Conselho Nacional de Educação

Recomendação n.º 5/2020

Sumário: Recomendação sobre «A Cidadania e a Educação Antirracista».

Cidadania e Educação Antirracista

Preâmbulo

No uso das competências que por lei lhe são conferidas, e nos termos regimentais, após apreciação do projeto de Recomendação elaborado pelas Conselheiras Relatoras Isabel Menezes; Joana Brocardo e Luisa Malhó o Conselho Nacional de Educação, em reunião plenária de 6 de novembro de 2020, deliberou aprovar o referido projeto, emitindo a presente Recomendação.

Entendeu o Conselho Nacional de Educação (CNE), por iniciativa da sua Presidente em outubro de 2019, que era o momento de produzir uma reflexão sobre a cidadania e a educação antirracista. Os acontecimentos recentes vieram mostrar que esta foi uma decisão avisada pois, como afirmou o historiador Francisco Bethencourt, num texto de opinião no jornal Público(1), em Portugal "temos claramente um problema educativo". O racismo persiste e manifesta-se através de formas subtis ou implícitas, um "racismo que se esconde em justificações e legitimações socialmente aceitáveis" (Vala, 2015a, p. 18), que continua a marcar o comportamento social e as instituições, mas também, como têm revelado estudos que envolvem crianças e jovens de grupos racializados, através de um racismo quotidiano, explícito e sistemático, inclusive em contextos educacionais (Araújo, 2007; Doutor, Marques & Ambrósio, 2018; Kilomba, 2019; Machado, 2001). Ainda assim, a relativa "invisibilidade das minorias raciais", até na investigação educacional, tem contribuído para uma relativa "cegueira institucional à discriminação" (Vala, 2015a, p. 19). Mesmo admitindo a bondade das posições que defendem que a "raça", não sendo uma categoria cientificamente válida do ponto de vista genético ou biológico (Rutherford, 2020), não deve ser usada como critério de categorização das pessoas e/ou grupos, importa retomar aqui a exortação de Ibram X. Kendi (2019):

"a estratégia pós-racial bem-intencionada não faz sentido no nosso mundo racista. A raça é uma miragem, mas uma miragem em torno da qual a humanidade se organizou de formas bem reais. [...] o mito pós-racial de que falar de raça constitui racismo, ou de que se pararmos de nos identificar atravé s da raça, o racismo miraculosamente desaparece. [...] falha em reconhecer que, se deixarmos de usar categorias raciais, não seremos capazes de identificar a desigualdade racial" (p. 53).

O relatório de 2018 da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI) sobre Portugal(2), ainda que reconhecendo importantes avanços nacionais no que concerne ao reconhecimento de direitos e ao combate à discriminação, sublinha a intensidade de desigualdades e discriminação educacionais com ampla tradução em fenómenos de abandono, insucesso e dificuldades na progressão escolar de crianças e jovens afrodescendentes e de origem cigana, mas também a manutenção de uma visão heroica e unilateral de acontecimentos históricos relacionados com a expansão marítima, a colonização e a escravatura. Vale a pena, a este propósito, atender à recomendação de Francisco Bethencourt (2015):

"A abordagem eurocêntrica ignora quaisquer projetos dos povos nativos, a capacidade local de negociação política, económica e social e a intervenção permanente que, em muitos locais, definiu novas configurações para as sociedades coloniais que não seguiam experiências europeias anteriores ou tradições locais. As realidades locais modelaram as experiências europeias em outros continentes, obrigando a diferentes práticas, colónias e configurações étnicas. [...] Esta visão crítica é de suma importância caso pretendamos clarificar um campo complicado pelos preconceitos nacionais e raciais" (p. 220).

Importa reconhecer que a despolitização do racismo (Araújo, 2007; Monteiro, 2013) é, não só um erro, como especialmente problemática num país como Portugal em que a "pedagogia da legitimidade do colonialismo" (Vala, 2015b, p. 193) foi muito intensa durante o regime ditatorial - embora o precedesse (Marques, 2007) -, levando a que seja ainda incipiente o reconhecimento institucional do papel histórico do país, por exemplo, na exploração e comércio de pessoas escravizadas(3), pese embora a posição pública do Senhor Presidente da República no Senegal(4), em 2017, ou iniciativas recentes da Assembleia da República, como a exposição "O direito sobre si mesmo: 150 anos da abolição da escravatura no império português"(5). Assim, é essencial que os problemas do racismo e da educação antirracista sejam vistos no contexto da educação para a cidadania, na medida em que se trata de ameaças à qualidade da vida democrática de toda/os a/os cidadã/os naquilo que são os seus fundamentos essenciais: liberdade, pluralismo, igualdade. A recente mobilização de jovens em manifestações, um pouco por todo o país, é disso mesmo sinal.

A atualidade do fenómeno do racismo em Portugal é visível na investigação que o tem abordado enquanto fenómeno social (Cabecinhas, 2007; Machado, 2001; Marques, 2007; Ramos, Pereira & Vala, 2020; Vala, Brito & Lopes, 1999; Vala & Pereira, 2012) e atendido às suas implicações educacionais (Araújo, 2008; Casa-Nova, 2006: França, 2017; Roldão, 2015; Seabra et al., 2016). Em geral, é possível concluir "como em vários países europeus se tem vindo a assistir a uma redução do racismo baseado na biologia e na ideia de raça para um racismo baseado na cultura, ambos ativos nestas sociedades, mas apenas o último agora legitimado socialmente. [...] O recurso a medidas implícitas permitiu mostrar que as crenças racistas e os estereótipos mais flagrantes continuam ativos nas nossas memórias e continuam a marcar o nosso comportamento." (Vala, 2015a, p. 20).

Ora, mesmo reconhecendo que "a integração escolar precedeu a integração social nas políticas públicas portuguesas" (Seabra et al., 2016, p. 189), os dados disponíveis revelam que "os afrodescendentes realizam trajetos no ensino básico e secundário menos lineares, pautados por mais reprovações, desempenhos escolares menos positivos e são esmagadoramente encaminhados para vias profissionalizantes no ensino secundário" (p. 191), mesmo quando se controlam os efeitos da classe social. Nas últimas décadas, de forma consistente e recorrente, estudos em contexto escolar mostram a persistência de discriminação e racismo junto de jovens afrodescendentes e de origem cigana (Abrantes et al., 2016; Araújo & Maeso, 2016; Candeias, 2016; Casa-Nova & Palmeira, 2008; Damasceno, 2019; França, 2017; Guerra & Rodrigues, 2019; Mateus, 2019; Rodrigues, Monteiro & Rutland, 2010; Roldão, 2015; Seabra et al., 2016). Estas...

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