Parecer n.º 14/2006, de 14 de Novembro de 2006

Parecer n.o 14/2006

Licença sem vencimento - Licença para acompanhamento de cônjuge colocado no estrangeiro - Funcionário do serviço diplomático - Militar - Direitos fundamentais - Família

  1. a O estatuto jurídico dos militares, constante do Estatuto dos Militares das Forças Armadas (EMFAR), aprovado pelo Decreto-Lei n.o 236/99, de 25 de Junho, para além de tendencialmente totalizante quanto às matérias que regula, é fechado em matéria de licenças, em termos de só consentir aquelas nele reguladas ou, nos termos da alínea i) do seu artigo 93.o, outras de natureza específica estabelecidas nele ou em legislaçáo especial.

  2. a A alínea i) do artigo 93.o do EMFAR náo consente interpretaçáo que permita a atribuiçáo aos militares de carreira do direito à licença sem vencimento para acompanhamento de cônjuge diplomata colocado no estrangeiro, regulada pelo Decreto-Lei n.o 519-E1/79, de 29 de Dezembro.

  3. a A falta de legislaçáo específica que reconheça esse direito aos militares náo constitui restriçáo de qualquer direito fundamental e também náo constitui omissáo legislativa constitucionalmente censurável.

  4. a Náo viola o princípio da igualdade a subsistência de legislaçáo aplicável aos militares que náo prevê uma licença sem vencimento específica para acompanhamento de cônjuge diplomata colocado no estrangeiro e que náo confere, em consequência, o direito à mesma.

    Sr. Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros:

    Excelência:

    I

    Dignou-se o antecessor de V. Ex.a solicitar a este corpo consultivo a emissáo de parecer urgente (1) sobre a aplicabilidade ao militar de carreira, marido de funcionária diplomática a colocar no estrangeiro, do regime da licença sem vencimento para acompanhamento do cônjuge, prevista no Decreto-Lei n.o 519-E1/79, de 29 de Dezembro.

    Em determinado procedimento, entenderam os serviços do Minis-tério da Defesa Nacional que a referida licença náo integra o âmbito das licenças que possam ser concedidas a um militar, enquanto, da parte dos serviços do Ministério dos Negócios Estrangeiros, foi sus-

    tentado que a lei própria do pessoal das Forças Armadas deverá ser interpretada de modo a admitir o deferimento da pretensáo. Na documentaçáo apresentada ao anterior titular da pasta dos Negócios Estrangeiros sugere-se a solicitaçáo de consulta com vista a «náo necessariamente acomodar a pretensáo da requerente, mas certamente resolver futuros casos semelhantes, de modo genérico e abstracto» (parecer DAJ/PR-E/2005/184, do Departamento de Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, de 23 de Novembro de 2005, n.o 57).

    Entendeu o antecessor de V. Ex.a por bem que as questóes suscitadas merecem ser esclarecidas.

    Cabe emitir o solicitado parecer.

    II

    1 - Na situaçáo que dá ocasiáo à consulta, determinada funcionária diplomática poderá ser colocada no estrangeiro (2) por aplicaçáo do regime de colocaçóes e transferências nos serviços externos do Minis-tério dos Negócios Estrangeiros, a coberto da figura da colocaçáo ordinária prevista no artigo 51.o do Decreto-Lei n.o 40-A/98, de 27 de Fevereiro (estatuto da carreira diplomática), e náo é questionada a falta de legitimidade da interessada para requerer a concessáo de uma licença de que pretenderia que beneficiasse o seu marido.

    Em questáo encontra-se, sim, a aplicabilidade a este do que dispóe o Decreto-Lei n.o 519-E1/79, de 29 de Dezembro. Trata-se de um diploma que foi editado tendo presente, em primeira linha, de acordo com o que se encontra lavrado no respectivo preâmbulo, que «a colocaçáo no estrangeiro por períodos prolongados de tempo de funcionários do serviço diplomático ou equiparados e, ainda, de funcionários dos quadros administrativo e auxiliar do Ministério dos Negócios Estrangeiros pode, em alguns casos, prejudicar legítimos interesses dos cônjuges que exerçam actividades remuneradas». Assim, «no que se refere aos cônjuges que trabalham em serviços públicos ou no sector empresarial do Estado, cumpre proteger, na medida do possível, situaçóes menos justas originadas por razóes de serviço e de representaçáo oficial de Portugal no estrangeiro». A estas situaçóes se aplicam os artigos 1.o a 4.o do diploma. Este também admite a extensáo do seu âmbito de aplicaçáo com vista a «acautelar interesses idênticos de outros funcionários e agentes administrativos ou ainda quaisquer entidades que de algum modo assegurem no estrangeiro a representaçáo de interesses sectoriais do País». A estes últimos casos se aplica o artigo 5.o do citado decreto-lei (3).

    Nos termos do artigo 1.o, os cônjuges dos funcionários diplomáticos colocados no estrangeiro por períodos de tempo indeterminado mas superiores a 90 dias, «caso sejam funcionários públicos ou agentes administrativos em geral, teráo direito à concessáo de licença sem vencimento», em termos que mais à frente se apuraráo.

    Entretanto, pelo Despacho Normativo n.o 1/85, de 30 de Novembro de 1984, do Ministro da Defesa Nacional, publicado no Diário da República, 1.a série, n.o 1, de 2 de Janeiro de 1985, foi determinada a extensáo do regime constante do Decreto-Lei n.o 519-E1/79 aos «militares ou funcionários e agentes administrativos que, por períodos de tempo superiores a 90 dias, assegurem no estrangeiro funçóes no âmbito da defesa nacional», por invocaçáo do disposto no artigo 5.o, com o alcance de que os cônjuges destes poderiam requerer aquela licença.

    O Decreto-Lei n.o 519-E1/79 já entreabria, neste artigo 5.o, a possibilidade de extensáo do regime da licença sem vencimento nele contemplada a outros sectores da funçáo pública. Com a entrada em vigor do regime de férias, faltas e licenças dos funcionários da Administraçáo Pública, constante do Decreto-Lei n.o 497/88, de 30 de Dezembro, procedeu-se à generalizaçáo do regime. Nessa conformi-dade, o artigo 108.o, n.o 1, deste último diploma determina expressamente a revogaçáo do artigo 5.o do Decreto-Lei n.o 519-E1/79, de 29 de Dezembro, do que resultou a imediata caducidade do Despacho Normativo n.o 1/85, citado.

    No novo decreto-lei foi regulada a figura da licença sem vencimento para acompanhamento do cônjuge colocado no estrangeiro «por período de tempo superior a 90 dias ou indeterminado» - artigos 84.o e seguintes. No artigo 84.o foi conferido o direito a essa licença ao cônjuge abrangido pelo campo de aplicaçáo pessoal do diploma, que é definido por referência aos funcionários e agentes da administraçáo central, regional e local, incluindo os institutos públicos que revistam a natureza de serviços personalizados ou de fundos públicos, nos termos do respectivo artigo 1.o

    O Decreto-Lei n.o 100/99, de 31 de Março, veio revogar o Decreto-Lei n.o 497/88 (artigo 107.o) e continuou a manter esta figura da licença sem vencimento no seu artigo 84.o, mas referindo que a mesma poderá ser requerida para acompanhamento do cônjuge colocado no estrangeiro por período de tempo superior a 90 dias ou indeterminado. Na sequência da apreciaçáo parlamentar a que foi submetido nos termos do artigo 169.o da Constituiçáo, o decreto-lei foi alterado pela Lei n.o 117/99, de 11 de Agosto, em vários dos seus artigos, um dos

    25 468 quais o artigo 84.o Nesta parte, a alteraçáo consistiu em passar a ficar consignado o direito do funcionário ou agente à referida licença.

    No âmbito das Forças Armadas, rege a matéria das licenças o Estatuto dos Militares das Forças Armadas (EMFAR), aprovado pelo Decreto-Lei n.o 236/99, de 25 de Junho, com as alteraçóes nele introduzidas posteriormente (4). O diploma dedica às licenças o título VIII

    e procede ao elenco das que podem ser concedidas no artigo 93.o, reguladas cada uma de per si nos artigos seguintes, salvo a categoria residual das outras licenças «de natureza específica estabelecidas neste Estatuto ou em legislaçáo especial» [alínea i) do artigo]. Náo prevê o EMFAR a modalidade de licença sem vencimento que vimos referindo, embora regule situaçóes de licença sem remuneraçáo, como se verá a seu tempo.

    É este o enquadramento legal dentro do qual se moverá a apreciaçáo da questáo suscitada. Em síntese brevíssima, poderá dizer-se que, na perspectiva do Ministério da Defesa Nacional, o artigo 93.o do

    EMFAR cria um quadro fechado de figuras de licença, enquanto o estudo produzido no Ministério dos Negócios Estrangeiros vê na alínea i) do artigo 93.o uma abertura ao reconhecimento de outras figuras de licença e convoca ainda a disciplina constitucional das restriçóes aos direitos, liberdades e garantias, no caso, ao direito à família, casamento e filiaçáo, consagrado no artigo 36.o da Constituiçáo, que, sem esse reconhecimento, estaria a ser desproporcionadamente restringido.

    Trata-se de aspectos pertinentes mas que ganharáo em ser inseridos em contexto mais vasto. Começar-se-á, assim, por abordar aspectos relativos à carreira diplomática, passando logo depois ao regime geral da funçáo pública, seguidamente conexionado com o regime consagrado pelo apontado Decreto-Lei n.o 519-E1/79, globalmente confrontados com o regime adoptado nesta matéria pelo EMFAR. Os elementos recolhidos serviráo para, a final, enfrentar o problema que é apresentado a este corpo consultivo.

    2 - A natureza das funçóes desempenhadas pelos diplomatas, cujo conteúdo é definido no n.o 1 do artigo 4.o do respectivo Estatuto, exige a permanência e residência destes fora do País por períodos mais ou menos prolongados - embora desempenhem «indistintamente as suas funçóes em Portugal e no estrangeiro» (n.o 1 do artigo 5.o do Estatuto) (5), devem residir na área do posto ou serviço em que exerçam o seu cargo (artigo 58.o, n.o 1). A importância acrescida da representaçáo externa do Estado, por sua vez, explicará que, no desenvolvimento da sua carreira, a permanência nos serviços externos do Ministério, mais do que factor de ponderaçáo, seja requisito de promoçáo. A carreira diplomática estrutura-se, com efeito, nos moldes típicos da funçáo pública, ou seja, por promoçáo da categoria anterior à categoria superior (6), com progressáo dentro de cada categoria por...

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