Parecer n.º 7/2007, de 12 de Novembro de 2007

Parecer n.o 7/2007

Ordem dos Médicos - Administraçáo autónoma - Deontologia médica - Interrupçáo voluntária da gravidez - Objecçáo de consciência - Regulamento administrativo - Princípio da legali-dade - Unidade do sistema jurídico - Fiscalizaçáo da legali-dade - Fiscalizaçáo da constitucionalidade.

  1. a O Estatuto da Ordem dos Médicos, aprovado pelo Decreto-Lei n.o 282/77, de 5 de Julho, configura esta instituiçáo como uma associaçáo pública, integrada na administraçáo autónoma e destinada ao enquadramento dos médicos na realizaçáo do interesse público inerente ao exercício da sua actividade profissional.

  2. a Aquele Estatuto, à luz do disposto, entre outros, nos seus artigos 4.o, 6.o, 13.o, 79.o e 80.o, dota aquela instituiçáo de uma ampla autonomia que inclui o poder regulamentar necessário à disciplina da actividade médica, no âmbito do qual cabe a aprovaçáo do código deontológico da Ordem dos Médicos.

  3. a Apesar dessa autonomia, nos termos do disposto no artigo 6.o, alíneas c) e d) daquele Estatuto, a Ordem está sujeita ao estrito cumprimento da Lei, estando igualmente obrigada a colaborar na política de saúde e a concorrer para o aperfeiçoamento do Serviço Nacional de Saúde.

  4. a O código deontológico da Ordem dos Médicos, por força da sua natureza regulamentar, deve obediência à lei, náo podendo conter disposiçóes que a contrariem, ou invadir áreas que estejam a coberto de reserva de lei.

  5. a O código deontológico da Ordem dos Médicos, em vigor, publicado na Revista da Ordem dos Médicos, n.o 3, de Março de 1985, náo indica expressamente as normas que definem a competência subjectiva e objectiva para a respectiva emissáo, violando o disposto no artigo 115.o, n.o 6, da Constituiçáo da República, na versáo em vigor na data em que foi publicado - artigo 112.o, n.o 8, da versáo actual da lei fundamental.

  6. a Os n.os 2e3do artigo 47.o e o artigo 48.o do código deontológico da Ordem dos Médicos, referido na conclusáo anterior, sáo contrários ao disposto no artigo 142.o do Código Penal, na redacçáo emergente da Lei n.o 16/2007, de 17 de Abril, e já eram igualmente contrários ao disposto no artigo 140.o do mesmo código, na redacçáo emergente da Lei n.o 6/84, de 11 de Maio.

  7. a O artigo 30.o daquele código, no segmento normativo relativo à interrupçáo voluntária da gravidez, viola o disposto nos artigos 41.o, n.o 6, 165.o, n.o 1, alínea b), e artigo 266.o, n.o 2, da Constituiçáo da República e contraria igualmente o disposto no artigo 6.o da Lei n.o 16/2007, de 17 de Abril, e já violava o disposto no artigo 4.o da Lei n.o 6/84, de 11 de Maio.

  8. a Nos termos dos artigos 72.o, n.o 1, e 73.o, n.o 4, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, cabe ao Ministério Público instaurar acçáo administrativa especial tendente à declaraçáo, com força obrigatória geral, da ilegalidade das normas dos artigos 30.o, 47.o e 48.o do código deontológico da Ordem dos Médicos, referidas nas conclusóes anteriores, bem como das disposiçóes correspondentes (artigos 50.o, n.os 2 e 3, 51.o e 33.o) do código deontológico de 1981.

    Sr. Ministro da Saúde:

    Excelência:

    I

    Em 17 de Abril de 2007 foi publicada no Lei n.o 16/2007, que alterou o artigo 142.o do Código Penal, introduzindo no sistema jurídico português uma nova causa de isençáo de responsabilidade criminal pela prática de aborto, e criou as bases para que aquela actividade possa ser levada a cabo nas condiçóes agora legalmente previstas.

    Confrontado com o desfasamento entre a situaçáo jurídica emergente daquela Lei e o código deontológico da Ordem dos Médicos em vigor, entendeu V. Ex.a dirigir a este Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República um pedido de parecer que parcialmente se transcreve (1):

    Nos termos da alínea a) do artigo 37.o da Lei n.o 47/86, de 15 de Outubro, na redacçáo dada pela Lei n.o 60/98, de 27 de Agosto, venho solicitar a emissáo de parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República sobre a legalidade do código deontológico da Ordem dos Médicos, designadamente dos n.os 1e2do artigo 47.o, segundo os quais:

    '1 - O médico deve guardar respeito pela vida humana desde o seu início.

    2 - Constituem falta deontológica grave quer a prática do aborto quer a prática da eutanásia.'

    A Ordem dos Médicos é uma pessoa colectiva pública, do tipo associaçáo pública, integrada na Administraçáo Pública e, portanto, sujeita a todos os princípios e normas que a esta se aplicam, nomeadamente o princípio da legalidade.

    Uma das mais importantes vertentes do princípio da legalidade é o chamado princípio da preferência ou prevalência de lei, segundo o qual nenhum regulamento administrativo pode contrariar a lei, antes devendo todos os regulamentos administrativos conformar-se, plena e absolutamente, com as leis em vigor, sob pena de ficarem inquinados de ilegalidade e da consequente invalidade.

    O código deontológico da Ordem dos Médicos, emanado por esta no exercício dos poderes públicos que lhe sáo conferidos pelo respectivo Estatuto, é uma norma emitida ao abrigo de disposiçóes de direito administrativo, ou seja, é um regulamento administrativo, por ser proferido pelos órgáos próprios de uma associaçáo pública, para ser aplicado aos respectivos membros. Daí que também este Código esteja, em todos e cada um dos seus preceitos, sujeito ao princípio da legalidade e ao seu corolário, o princípio da preferência ou prevalência da lei.

    Náo está em causa a objecçáo de consciência que qualquer médico individualmente poderá suscitar em relaçáo à interrupçáo voluntária da gravidez por opçáo da mulher.

    O que releva é a possibilidade de os médicos, náo objectores de consciência, poderem ser sancionados por uma associaçáo pública que tem o poder e o dever de os perseguir disciplinarmente por violaçáo do respectivo código deontológico.

    E a censura disciplinar fundamenta-se, ainda, no Estatuto da Ordem dos Médicos, que prescreve que constituem deveres dos médicos cumprir as normas deontológicas da profissáo.

    Por outro lado, o Código Penal náo pune a interrupçáo voluntária da gravidez quando, em determinados prazos ou em circunstâncias específicas, seja realizada por um médico ou sob a sua direcçáo.

    A redacçáo actual do artigo 142.o do Código Penal, ao permitir a interrupçáo voluntária da gravidez por opçáo da mulher, nas primeiras 10 semanas, afasta-se, mais ainda do que a redacçáo anterior, das situaçóes de interrupçáo voluntária da gravidez permitidas pelo código deontológico da Ordem dos Médicos.

    32 744 Assim, solicito a V. Ex.a que o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República emita parecer sobre as seguintes questóes colocadas sobre a matéria acima exposta e que assumem enorme relevância prática:

    1) Os artigos 47.o e 48.o do código deontológico da Ordem dos Médicos, na parte referente ao aborto, sáo ilegais desde a versáo de 1984 do artigo 142.o do Código Penal e, agora, de forma mais intensa, na sequência da publicaçáo da Lei n.o 16/2007, de 17 de Abril, que ampliou as causas de náo punibilidade da interrupçáo voluntária da gravidez às situaçóes em que esta é realizada por opçáo da mulher, nas primeiras 10 semanas da gravidez?

    2) A náo adequaçáo do código deontológico da Ordem dos Médicos, designadamente dos artigos 47.o e 48.o, à nova versáo do Código Penal constitui uma náo emanaçáo de normas que devem ser emitidas ao abrigo de disposiçóes de direito administrativo, nomeadamente ao abrigo do disposto na alínea e) do artigo 6.o do Estatuto da Ordem dos Médicos:

    'A Ordem dos Médicos tem por finalidades essenciais:

    [...]

    e) Velar pelo exacto cumprimento da lei, do presente Estatuto e respectivos regulamentos;

    [...]'

    e do próprio princípio da legalidade, que obriga à conformidade plena e absoluta dos regulamentos administrativos com a lei?

    3) Em caso de resposta afirmativa às questóes referidas nos n.os 1)

    e 2), deve o Ministério Público propor, junto do tribunal administrativo e fiscal competente, uma acçáo administrativa especial cumulando os pedidos de declaraçáo de ilegalidade das referidas normas do código deontológico da Ordem dos Médicos - enquanto norma regulamentar emitida ao abrigo de disposiçóes de direito administrativo - de declaraçáo de ilegalidade por omissáo, pela náo adequaçáo do código deontológico à nova versáo do Código Penal - enquanto náo emanaçáo de uma norma que deve ser emitida ao abrigo de disposiçóes de direito administrativo, e de fixaçáo de prazo para que a omissáo seja suprida, nos termos do disposto no artigo 4.o, nas alíneas c) e d) do n.o 2 do artigo 46.o e no n.o 2 do artigo 77.o, todos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos?

    4) O código deontológico da Ordem dos Médicos, em particular o seu artigo 3.o, será inconstitucional, designadamente por violaçáo do direito fundamental à liberdade de consciência dos médicos (artigo 41.o, n.o 1, da Constituiçáo), bem como pela violaçáo do princípio da legalidade (artigo 266.o, n.o 2, da Constituiçáo), na sua modalidade de preferência ou prevalência de lei, que impóe a subordinaçáo absoluta do regulamento à lei?

    Cumpre, pois, emitir o parecer solicitado, com carácter urgente.

    II

    1 - A administraçáo do Estado social faz apelo crescente a diferentes formas de colaboraçáo dos administrados para obter uma maior eficiência ou racionalidade na sua actividade e na realizaçáo dos seus objectivos (2).

    A complexidade e a diversidade da acçáo administrativa e sobretudo a multiplicidade de áreas em que aquela administraçáo é chamada a intervir sáo factores determinantes da adopçáo de formas e estruturas de participaçáo dos administrados nas tarefas administrativas que inte-gram a matriz da chamada administraçáo associativa.

    Tal como refere Jorge Miranda, «conhecem-se ainda as vantagens desta administraçáo associativa: a proximidade das pessoas e dos problemas, o apelo à sua dedicaçáo voluntária e interessada, a adaptabilidade dos recursos disponíveis. Assim como os seus inconvenientes e riscos: fluidez das estruturas jurídicas, a volubilidade das decisóes, a...

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