Parecer n.º 35/2018

Data de publicação18 Fevereiro 2019
SeçãoParte D - Tribunais e Ministério Público
ÓrgãoMinistério Público - Procuradoria-Geral da República

Parecer n.º 35/2018

Greve - Greve Self Serviçe - Enfermeiro - Sindicato - Aviso Prévio - Necessidade Social Impreterível - Serviços Mínimos - Faltas Injustificadas - Requisição Civil

1.ª A greve dos enfermeiros, anunciada pela ASPE e pelo SINDEPOR para o período situado entre 22 de novembro e 31 de dezembro de 2018, no respetivo aviso prévio, tem uma configuração típica em que se planeia que o maior número de trabalhadores, simultaneamente, se abstenha de trabalhar, de forma contínua, durante todo o período em que a greve decorre.

2.ª O simples facto de terem sido proferidas declarações publicas, sem que se identifique a sua autoria, que caracterizam aquela greve como "cirúrgica" e que referem que ela permite que todos os enfermeiros possam organizar-se nos serviços e decidir a que serviços fazem greve, em que dias e em que período, não é suficiente para que se possa qualificar esta greve como uma "greve" self-service.

3.ª Na verdade, não sendo o conteúdo destas declarações suficientemente claro e preciso para que se possa antever que aquela greve se vai traduzir numa automovimentação de cada trabalhador segundo o seu livre arbítrio durante aquele período de tempo, e não estando identificada a autoria de tais declarações, não é possível que as mesmas fundamentem uma caracterização da greve.

4.ª Contudo, caso se constate que nesta greve é cada um dos trabalhadores enfermeiros quem decide, o dia, hora e duração do período de greve, numa gestão individual desta forma de luta, deve-se concluir que estamos perante uma "greve" self-service, que corresponde a um movimento de protesto ilícito, sendo consideradas injustificadas as faltas ao trabalho com fundamento no exercício de um direito à greve inexistente, nos termos do artigo 541.º, n.º 1, do Código do Trabalho, aplicável ex vi do artigo 4.º, n.º 1, m), da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas

5.ª O Governo só poderá recorrer à requisição civil dos enfermeiros, nos termos do Decreto-Lei n.º 637/74 de 20 de novembro, caso se verifique um reiterado incumprimento ou cumprimento defeituoso dos serviços mínimos estabelecidos, gerador de perturbações muito graves na prestação de cuidados de saúde essenciais aos cidadãos pelos hospitais abrangidos na declaração de greve decretada pela ASPE e pelo SINDEPOR, ou uma ameaça séria e iminente desse incumprimento, em situações em que exista uma necessidade imperiosa de assegurar, sem quaisquer hiatos temporais, os serviços mínimos, sob pena de não serem satisfeitas necessidades sociais impreteríveis.

Senhora Ministra da Saúde

Excelência:

I. A consulta

Solicita Vossa Excelência que o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, com urgência, tome posição, nos termos do artigo 37.º, a), do Estatuto do Ministério Público, sobre a licitude de uma greve decretada pela Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros e o Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal e sobre a possibilidade de ser decretada a requisição civil dos enfermeiros.

São os seguintes os fundamentos apresentados para esta consulta:

A Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros (ASPE) e o Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal (SINDEPOR), conforme extrato publicado em jornal de expansão nacional, que se anexa, emitiram um aviso prévio de greve dos enfermeiros que terá inicio às 8 horas do dia 22 de novembro de 2018 e termo às 24 horas do dia 31 de dezembro de 2018 (ou seja, todos os turnos que comportam as 24 horas dos dias enunciados), sob a forma de paralisação total do trabalho, tendo como destinatárias cinco entidades públicas empresariais do setor da saúde - Centro Hospitalar e Universitário do Porto, E. P. E., Centro Hospitalar e Universitário de São João, E. P. E., Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, E. P. E., Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Norte, E. P. E. e Centro Hospitalar de Setúbal, E. P. E. - nele estando igualmente indicados os serviços mínimos indispensáveis para ocorrer à satisfação das "necessidades sociais impreteríveis".

Não obstante o que resulta do aviso prévio publicitado, e sublinhando-se que a greve tem uma duração anunciada de 40 dias seguidos, constata-se a existência de declarações que contrariam o respetivo teor - veja-se a reportagem da RTP, disponível on line, efetuada no final de uma reunião realizada no dia 5 de novembro, p.p., pelas 10 horas da manhã, no Ministério da Saúde, em que se caracteriza esta greve como "cirúrgica" permitindo, no âmbito dos cinco hospitais identificados no aviso prévio,"(.) que todos os enfermeiros possam organizar-se nos serviços e decidir a que serviços fazem greve, em que dias e em que períodos. ".

Neste sentido, e perante estas afirmações, que aliás têm tido eco nos órgãos de comunicação social, suscita-se a dúvida sobre se a greve aqui em causa, embora tendo sido decretada segundo a forma de paralisação total e com ausência dos locais de trabalho, num período delimitado - entre 22 de novembro e 31 de dezembro - não virá a permitir, ao invés, uma gestão individual de comportamentos contrária à atitude concertada expressa na formulação do aviso prévio da greve.

Ora, se tal vier a suceder, e estando em causa comportamentos admitidos e até aceites pelas associações sindicais que declararam greve, tais ações individuais, por não serem suscetíveis de uma adequada previsibilidade, podem, em última instância, pôr em causa o cumprimento dos deveres daquelas associações, sobre quem, nos termos da lei, recai a responsabilidade pela gestão e coordenação da greve decretada, competindo-lhe, nomeadamente, designar os trabalhadores adstritas à prestação de serviços mínimos e, deste modo, originar a ilegalidade, pelo menos subsequente, da greve aqui em causa.

Inerente à dúvida acabada de expor, e na medida em que a obrigação de apresentar um aviso prévio de grave, neste caso, com a antecedência mínima de 10 dias úteis, não constitui uma mera formalidade, antes assumindo um significado relevante no procedimento de exercício da greve, coloca-se uma outra, que se prende com o conteúdo do próprio aviso prévio da greve.

Como efeito, e como se retira do Parecer do Conselho Consultivo dessa Procuradoria-Geral da República n.º 1/1999, de 18 de janeiro, «Embora a lei não contenha qualquer referência especifica, a natureza e as finalidades da exigência de pré-aviso impõem que este tenha um conteúdo mínimo essencial: a declaração de greve deve indicar a data e a hora de início de greve e a sua duração - certa ou ilimitada, e a delimitação do âmbito dos setores a abranger; o pré-aviso deve conter todas as indicações necessárias, segundo o princípio da boa-fé, para assegurar as objetivos que estão pressupostos na imposição desta formalidade do processo de greve.

O pré-aviso pretende, assim, evitar as designadas greves surpresa, que produzem um impacto negativo na opinião pública e apresentam consequências desproporcionadas na afetação dos interesses dos empregadores ou, no caso de serviços essenciais, também na multiplicidade dos necessários utilizadores de tais serviços.

A lei, impondo a obrigação de pré-aviso nos estritos termos em que a faz, com a cominação de efeitos penalizadores para os trabalhadores em caso de incumprimento, assume de forma bem marcada a opção pelas exigências de boa-fé, equilíbrio e proporcionalidade nos danos e consequências, de "fair balance" que devem estar presentes no exercício do direito de greve.

Neste sentido, se a intenção subjacente à greve decretada, ao invés de um comportamento coletivo e concertado na recusa da prestação de trabalho, tiver como objetivo permitir que durante o período que medeia entre o inicio e o fim da greve, se insira na esfera jurídica de cada trabalhador enfermeiro o direito a decidir, individualmente, o dia, a hora e o tempo em que a ela vai aderir, pese embora a aparente legalidade da greve, será legítimo que se se questione a bondade do aviso prévio, desde logo, por desrespeito ao princípio da boa-fé, o que permitirá concluir que a greve é, em si mesma, ilegal.

Conclui Vossa Excelência pela formulação das seguintes questões:

a) Pese embora o teor do aviso prévio aqui em causa, face à informação generalizada de que a greve decretada, permite, no âmbito dos cinco hospitais identificados no aviso prévio,"(.) que todos os enfermeiros possam organizar-se nos serviços e decidir a que serviços fazem greve, em que dias e em que período", podemos entender que, só por esse facto, a greve é ilegal?

b) Não podendo retirar-se a ilação acima expressa, tendo por base, apenas, informações/declarações veiculadas através de órgãos de comunicação social, caso a realidade venha a demonstrar que, ao invés do comportamento coletivo, é cada um dos trabalhadores enfermeiros quem decide, o dia, hora e duração do período em que adere à greve, podemos entender esse comportamento como representando um desvio à legalidade, tendo como consequência a ilegalidade subsequente desta mesma greve e, neste caso, incorrendo os respetivos trabalhadores que adotem tal conduta em faltas injustificadas?

c) Caso se venha a verificar que esta greve, sendo legal, é geradora de perturbações particularmente graves no âmbito do direito de acesso à saúde, não apenas pela sua duração (40 dias seguidos), mas também pelo período do ano em que vai ocorrer (um dos momentos em que se verifica uma maior pressão na procura de cuidados de saúde, devido à atividade sazonal da gripe), poderá tal circunstancialismo justificar, do ponto de vista legal, a requisição civil?

Antes de nos debruçarmos sobre cada uma destas questões é útil relembrar, sumariamente, alguns aspetos que caracterizam o direito de greve na nossa ordem jurídica, tendo sobretudo em consideração o disposto no capítulo II, do título III, da parte III, na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (1), dado que a presente consulta respeita a uma greve de trabalhadores com vínculo de emprego público, reproduzindo aqui o consignado em recentíssimo parecer deste Conselho Consultivo (2) sobre uma greve decretada pelo Sindicato...

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