Parecer n.º 1/2018

Data de publicação28 Março 2019
SectionParte D - Tribunais e Ministério Público
ÓrgãoMinistério Público - Procuradoria-Geral da República

Parecer n.º 1/2018

Associação Sindical - Pessoas Coletivas de Utilidade Pública

Liberdade Sindical - Organizações não-governamentais

1.ª O estatuto de utilidade pública é apenas um dos modos de incentivar e promover fundações e associações sem fins lucrativos e cuja atividade seja de interesse geral ou convirja com o interesse geral, constituindo ónus, encargos e deveres sobre as pessoas coletivas reconhecidas como tal, e submetendo-as a um controlo regular, mas estabelece apenas relações de cooperação duradoura e devida, segundo critérios de complementaridade ou subsidiariedade.

2.ª Encontra-se uma notória afinidade entre a vocação do estatuto de utilidade pública (Decreto-Lei n.º 460/77, de 7 de novembro) e as Bases da Economia Social (Lei n.º 30/2013, de 8 de maio), a partir de uma matriz altruística, sem, no entanto, umas e outras entidades terem de identificar-se em absoluto.

3.ª Além do estatuto de utilidade pública, encontram-se na ordem jurídica outros regimes que fomentam a acreditação, a inscrição ou registo de determinadas associações sem fins lucrativos, enquanto pressuposto de uma participação institucional qualificada: organizações não-governamentais, associações de estatuto especial ou regimes de certificação para acesso a apoios financeiros públicos ou a benefícios fiscais.

4.ª A inscrição ou admissão a um registo próprio de certas associações como organizações não-governamentais, bem como o reconhecimento a outras entidades sem fins lucrativos de um regime de participação qualificada em órgãos consultivos da Administração Pública ou de representação internacional, conquanto possa outorgar benefícios e outros direitos especiais deixa tais entidades inteiramente sob o direito privado.

5.ª Por seu turno, as instituições particulares de solidariedade social e as pessoas coletivas de utilidade pública administrativa - nestas se incluindo as pessoas coletivas de utilidade pública desportiva - correspondem a modelos de cooperação reforçada, inculcando o exercício obrigatório de incumbências determinadas, por vezes, de atribuições públicas típicas, e, em certos casos, conferindo poderes públicos de autoridade ou de domínio sobre coisas públicas.

6.ª O reconhecimento de utilidade pública não se reduz à simples acreditação para efeitos de participação, mas por outro lado, não importa o desempenho integral de atribuições do Estado, das regiões autónomas ou das autarquias locais nem investe tais pessoas coletivas na prestação obrigatória de serviços determinados, muito menos na atribuição de poderes públicos.

7.ª Tendo como vocação associar de forma duradoura certas associações e fundações à satisfação de necessidades coletivas assumidas pela comunidade política, o reconhecimento do estatuto de utilidade pública desencadeia a vinculação das pessoas coletivas reconhecidas a certa utilidade pública concreta e diferenciada segundo os fins, objeto e âmbito territorial das entidades.

8.ª O estatuto de utilidade pública, consagrado no Decreto-Lei n.º 460/77, de 7 de novembro, constitui o regime básico comum a várias instituições que podem cumular estatutos diferenciados quanto maior for a vinculação às tarefas públicas: desde as pessoas coletivas de (mera) utilidade pública, às pessoas coletivas de utilidade pública administrativa, nomeadamente as pessoas coletivas de utilidade desportiva, passando pelas instituições particulares de solidariedade social. Por outras palavras, tal regime é o único aplicável às pessoas coletivas de utilidade pública em sentido estrito e revela-se subsidiário para as demais pessoas coletivas de utilidade pública (em sentido amplo).

9.ª Já não se aplica, pelo menos, sem mais, às designadas pessoas coletivas privadas de utilidade pública (em sentido amplíssimo) nem às organizações não-governamentais.

10.ª Às associações sindicais assistem benefícios especiais, designadamente de ordem tributária e no acesso a subvenções públicas, sem contudo ficarem sujeitas a um regime de direito público em parcela alguma da atividade que desenvolvem.

11.ª Os interesses coletivos protagonizados pelas associações sindicais assentam em interesses individuais homogéneos e a defesa que lhes cumpre empreender é, por isso, demarcada em função de um radical subjetivo próprio: os trabalhadores por conta de outrem de uma certa profissão, ramo ou setor produtivo.

12.ª O sindicato, união ou federação de sindicatos que façam prevalecer na sua atividade a prestação de serviços de interesse geral sobre a matriz coletiva do substrato respetivo, deixam de poder identificar-se como associações sindicais, designadamente para os efeitos estatuídos no Código do Trabalho.

13.ª As associações sindicais, pela natureza própria dos seus fins, devem mostrar-se salutarmente parciais e devem poder participar ativamente em conflitos coletivos de trabalho, na dinâmica da concertação social, da contratação coletiva e das formas legítimas de reivindicação, para defesa dos direitos dos trabalhadores, designadamente por melhores salários, benefícios de assistência na doença, horários e condições de trabalho, regimes de reforma ou aposentação. É assim que contribuem para o interesse geral.

14.ª Tais conflitos coletivos de trabalho prestar-se-iam a extrema obliquidade, caso as associações sindicais interviessem respaldadas pelo estatuto de utilidade pública, de modo especial em questões controvertidas de emprego público, em que o Estado, as regiões autónomas, as autarquias locais e outras pessoas coletivas públicas são as entidades empregadoras.

15.ª O reconhecimento do estatuto de utilidade pública a associações sindicais, por outro lado, brigaria com a liberdade sindical, ora na proteção interna garantida pelo artigo 55.º da Constituição ora ao nível da Organização Internacional do Trabalho, por meio da Convenção n.º 87, de 17 de junho de 1948 (cf. n.º 2 do artigo 3.º).

16.ª Representaria uma manifestação de corporativismo de Estado, cuja valia terminou na ordem jurídica portuguesa com a abolição da Constituição Política de 1933, vincularem-se as associações sindicais à prestação de contas, de relatórios e de outras informações à Administração Pública, sob pena de verem revogado o reconhecimento e, assim, perderem benefícios fiscais e o acesso a fundos públicos.

17.ª Não obstante o Decreto-Lei n.º 213/2008, de 10 de novembro, ter reconhecido estatuto equiparado ao de utilidade pública às confederações sindicais e patronais com lugar na Comissão Permanente de Concertação Social, tal medida legislativa, não apenas se assumiu absolutamente excecional, como, por outro lado, circunscreveu a equiparação a aspetos do Decreto-Lei n.º 460/77, de 7 de novembro, que não pusessem em causa a liberdade de tais atores institucionais.

18.ª O referido decreto-lei, em face do regime particularíssimo que instituiu para o efeito, vem justamente confirmar a incompatibilidade entre o reconhecimento do estatuto de utilidade pública e a liberdade das associações sindicais.

Senhora Ministra da Presidência e da Modernização Administrativa,

Excelência,

Vossa Excelência pretende ver esclarecido qual «o âmbito pessoal de aplicação do Decreto-Lei n.º 460/77, de 7 de novembro, alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 391/2007, de 13 de dezembro, designadamente no que respeita à atribuição do estatuto de utilidade pública a associações sindicais».

Assim, pediu a este corpo consultivo que prolatasse parecer, exercendo a faculdade que lhe concede o disposto na alínea a) do artigo 37.º do Estatuto do Ministério Público (1).

A solicitação (2) vem acompanhada pela informação n.º DADJ/444/2017, da Direção de Serviços Jurídicos e Documentação da Presidência do Conselho de Ministros, de 30 de novembro de 2017.

Começaremos por caracterizar o estatuto de utilidade pública e o seu reconhecimento por parte do Governo, identificando, em seguida, a natureza jurídica e espécies das pessoas coletivas compreendidas em tal categoria ou suas afins. Adota-se igual metodologia para com as associações sindicais. Só então estaremos em condições de conferir a compatibilidade entre ambas e, assim, pronunciarmo-nos sobre a questão submetida a consulta.

Cumpre-nos, pois, emitir parecer.

1 - Pessoas coletivas de utilidade pública e colaboração com o Estado, regiões autónomas e autarquias locais.

As pessoas coletivas de utilidade pública são fundações e associações constituídas por iniciativa particular (3) que colaboram com o Estado, as regiões autónomas ou as autarquias locais no desempenho das incumbências respetivas (4).

Colaboração especialmente intensa, a ponto de o Governo reconhecer-lhes um estatuto jurídico qualificado, de modo a fomentar a sua atividade e, deste modo, ampliar e melhorar a satisfação de necessidades coletivas de bem-estar, segurança (v.g. prevenção de certos riscos) cultura e ambiente.

Contudo, o reconhecimento do estatuto de utilidade pública traz também consigo a vinculação a normas de direito público, a alguns ónus e deveres para as pessoas coletivas que obtêm tal estatuto.

Com efeito, «podem na sua atividade ser sujeitas a normas de Direito administrativo em virtude de colaborarem na realização de fins próprios da Administração Pública ou receberem mesmo desta funções especiais» (MARCELLO CAETANO (5)).

Porque os seus fins revelam estreita afinidade - por vezes, complementaridade - com atribuições públicas, o reconhecimento do estatuto de utilidade pública vem associar tais pessoas coletivas à função administrativa do Estado, concretizando, na linha dos princípios constitucionais da democracia social, económica e cultural, a participação ativa dos cidadãos e das coletividades por si criadas na construção de uma sociedade mais justa e solidária.

Do mesmo passo, privilegia-se o princípio da subsidiariedade, na sua dimensão horizontal (6) - pelo menos, um princípio de complementaridade, nas palavras de JORGE MIRANDA (7) - pois confia-se ao protagonismo comunitário e cívico o desempenho de determinadas tarefas públicas ao seu alcance, em detrimento de uma intervenção direta do Estado ou de outras...

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