Parecer n.º 64/2006, de 19 de Dezembro de 2006

Parecer n.o 64/2006

Perícia médico-legal - Autópsia médico-legal - Meios de prova Autoridade judiciária - Medida cautelar de polícia - Urgência

1.a A realizaçáo de autopsia médico-legal, no contexto da investigaçáo de factos que sejam susceptíveis de ser considerados como integrativos de um crime, mesmo em situaçóes de urgência, depende de decisáo prévia da autoridade judiciária competente - o Ministério Público, nos termos das disposiçóes conjugadas dos artigos 154.o,n.o 1, e 270.o, n.os 1, 2, alínea b), e 3, do Código de Processo Penal e do artigo 3.o,n.o 1, da Lei n.o 45/2004, de 19 de Agosto.

2.a A determinaçáo da realizaçáo de uma autópsia médico-legal, em situaçóes de urgência e de perigo na demora, ao contrário de outras perícias médicas, náo pode ser delegada nas autoridades de polícia criminal, por força do disposto no artigo 270.o,n.o 3, do Código de Processo Penal.

3.a A decisáo referida nas conclusóes anteriores, proferida no contexto da execuçáo das medidas cautelares a que se refere o artigo 249.o do Código de Processo Penal, existe e é operativa a partir do momento em que é proferida, mesmo que naquela situaçáo náo possa, desde logo, ser reduzida a escrito ou integrada imediatamente em suporte material que a documente.

4.a A decisáo de um magistrado do Ministério Público que deter-mina a realizaçáo de uma autópsia, nas condiçóes referidas nas conclusóes anteriores, nomeadamente em situaçóes onde náo exista urgência na efectivaçáo da diligência, pode ser comunicada aos serviços médico-legais pelas formas previstas no artigo 111.o, n.o 3, alínea c), do Código de Processo Penal.

5.a A comunicaçáo a que se refere a conclusáo anterior, quando seja utilizada a via telefónica, pressupóe a identificaçáo clara e precisa de quem a ela procede e de quem a ordenou, bem como o subsequente cumprimento do disposto no n.o 4 do mesmo artigo 111.o do Código de Processo Penal.

Sr. Secretário de Estado Adjunto e da Justiça:

Excelência:

I - O presidente do Instituto Nacional de Medicina Legal solicitou ao Gabinete de V. Ex.a a audiçáo deste Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República sobre a possibilidade de execuçáo de autópsias médico-legais sem a prévia recepçáo da respectiva requisiçáo escrita, oriunda dos serviços do Ministério Público (1).

A pretendida audiçáo deste Conselho é fundamentada por aquele Instituto nas seguintes consideraçóes:

Existem por vezes situaçóes em que por circunstancialismos diversos náo é possível o recebimento da ordem escrita do Ministério Público para execuçáo da autópsia médico-legal (fim-de-semana, 29 428 avaria de fax, greve de funcionários administrativos do tribunal, etc.). Nestas situaçóes tem-se admitido a possibilidade, a título absolutamente excepcional, da execuçáo da mesma na sequência da ordem transmitida por magistrado do Ministério Público, devendo ficar assinalado no processo o dia e a hora em que essa ordem foi transmitida, quem a emitiu e quem a recebeu e devendo a mesma ser posteriormente (re)confirmada por escrito com a maior brevidade possível, documento este que será também anexado ao processo. Estas situaçóes pontuais deveráo ser sempre do conhecimento do director da delegaçáo ou coordenador do gabinete médico-legal, só sendo admissíveis quando visarem evitar atrasos significativos na realizaçáo da perícia susceptíveis de comprometer os objectivos da mesma (intoxicaçáo por tóxico volátil, por exemplo) e ou quando visem evitar um injustificável prolongamento do compreensível sofrimento dos familiares.

Afigura-se que a própria Lei n.o 45/2004, de 19 de Agosto, que regulamenta as perícias médico-legais e forenses, náo estabelece a necessidade de tal ordem revestir a forma escrita.

Existe todavia quem considere que a autópsia médico-legal só deverá ter lugar na sequência de ordem escrita, nomeadamente com o argumento de se terem verificado algumas situaçóes (diga-se que muito pontuais) em que, tendo sido dada ordem verbal, acabou posteriormente por náo ser remetida a ordem escrita.

Pretende, assim, aquela entidade parecer «que esclareça qual o posicionamento a tomar, isto é, se será de manter aquele que vem sendo seguido pelos serviços médico-legais, se apenas deverá ser concretizada a autópsia após o efectivo recebimento da ordem escrita, ou se será de perspectivar qualquer outro».

A resposta às questóes suscitadas exige uma análise do regime das perícias médico-legais, decorrente da Lei n.o 45/2004, de 19 de Agosto, e da sua articulaçáo com o regime da perícia consagrado no Código de Processo Penal.

Para além disso, exige também a ponderaçáo de alguns aspectos do regime dos actos processuais consagrado naquele Código.

Cumpre, pois, emitir o solicitado parecer (2).

II-1-As perícias médico-legais e forenses têm hoje o seu regime fixado na Lei n.o 45/2004, de 19 de Agosto.

Este diploma revogou a parte do Decreto-Lei n.o 11/98, de 24 de Janeiro, que ainda se encontrava em vigor relativa ao regime destas perícias, completando a ruptura com o sistema tradicional que integrava aquele regime no âmbito do diploma relativo aos serviços médico-legais, soluçáo que ainda fora adoptada naquele decreto-lei (3).

A Lei n.o 45/2004, de 19 de Agosto, abrange apenas o regime de base daquelas perícias, sendo os serviços médico-legais objecto de um diploma autónomo - o Decreto-Lei n.o 96/2001, de 26 de Março (4), que criou o Instituto Nacional de Medicina Legal, e aprovou os respectivos estatutos (5).

A definiçáo do regime global das perícias médico-legais depende também do tratamento processual deste meio de prova, quer no Código de Processo Penal, quer no Código de Processo Civil (6).

2 - O Código de Processo Penal enquadrou a perícia no âmbito dos meios de prova, referindo no seu artigo 151.o que «a prova pericial tem lugar quando a percepçáo ou apreciaçáo dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos».

A perícia surge, assim, como um meio de prova auxiliar, facultando à entidade responsável pela decisáo a proferir elementos de que esta careça e que sejam necessários à percepçáo ou apreciaçáo dos factos.

No entender de Germano Marques da Silva (7), «a qualificaçáo que melhor cabe à perícia é efectivamente a de meio de prova pessoal», sendo seu objecto «a percepçáo dos factos ou a sua valoraçáo», uma vez que «o perito pode descobrir meios de prova, recorrendo a métodos científicos únicos a permitirem a sua apreensáo ou pode exigir-se ao perito náo a descoberta dos factos probatórios, mas apenas a sua apreciaçáo».

Manuel de Andrade (8) referia que a perícia: «Traduz-se na percepçáo, por meio de pessoas idóneas para tal efeito designadas, de quaisquer factos presentes, quando náo possa ser directa e exclusivamente realizada pelo juiz, por necessitar de conhecimentos científicos ou técnicos especiais, ou por motivos de decoro ou de respeito pela sensibilidade (legítima susceptibilidade) das pessoas em quem se verificam tais factos; ou na apreciaçáo de quaisquer factos (na determinaçáo das ilaçóes que deles se possam tirar acerca doutros factos), caso dependa de conhecimentos daquela ordem, isto é, de regras de experiência que náo fazem parte da cultura geral ou experiência comum que pode e deve presumir-se no juiz, como na gene-ralidade das pessoas instruídas e experimentadas.»

3 - O Código de Processo Penal separou formal e materialmente a perícia dos exames que tratou como meio de obtençáo de prova, nos artigos 171.o e seguintes, cortando com o regime de tratamento unitário que resultava dos artigos 175.o e seguintes do Código de Processo Penal de 1929.

Apesar da separaçáo dos enquadramentos processuais, a perícia e os exames encontram-se intimamente ligados, criando a soluçáo adoptada algumas dificuldades práticas a que a lei tem vindo progressivamente a dar resposta.

De facto, os exames foram enquadrados no âmbito dos meios de obtençáo de prova e concebidos como a forma através do qual se individualizam os vestígios da prática de um crime. Desempenham, assim, uma funçáo instrumental, tal como os demais meios de obtençáo de prova, relativamente à identificaçáo de vestígios ou de outros meios de prova do crime.

Refere-se, com efeito, no artigo 171.o, n.o 1, daquele Código, que: «Por meio de exames das pessoas, dos lugares e das coisas inspeccionam-se os vestígios que possa ter deixado o crime e todos os indícios relativos ao modo como e ao lugar onde foi praticado, às pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometido.»

A verdade é que muitas vezes a própria identificaçáo e individualizaçáo dos vestígios exige a intervençáo no exame de perito especializado, nomeadamente na área médico-legal, e essa intervençáo é considerada essencial ao bom êxito de uma investigaçáo.

Essa intervençáo na identificaçáo dos vestígios é também considerada relevante como base para a própria realizaçáo da perícia subsequente porque permite a orientaçáo da sua realizaçáo, especificando o respectivo âmbito.

Tal como referia Karl Zbinden (9): «Uma vez encontrados e fixados os vestígios, impóe-se interpretá-los: averiguar a sua proveniência e estabelecer as conclusóes que o vestígio concreto permite tirar, na sua qualidade de indício, em relaçáo ao acto que o deixou. Há vestígios que náo suscitam quaisquer problemas e que o investigador ou o juiz podem interpretar sem mais verificaçóes. Mas há outros vestígios que náo podem ser interpretados por qualquer pessoa náo especializada. É ao técnico que compete interpretar estes vestígios e náo qualquer diletante, pois há que proceder de acordo com métodos estritamente científicos. As ciências naturais prestam valiosos serviços à ciência de investigaçáo moderna pelo desenvolvimento das ciências limítrofes.»

Apesar desta proximidade de facto entre as duas figuras, o seu regime processual apresenta diferenças significativas que relevam no âmbito do presente parecer.

Assim, a realizaçáo da perícia depende de despacho da autoridade judiciária competente, por força do disposto no artigo 154.o do Código de...

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