Acórdão n.º 14/97, de 21 de Junho de 1997

Acórdão n.º 15/97 Processo n.º 358/96 - 1.' Secção. - Acordam, em plenário das secções cíveis no Supremo Tribunal de Justiça: 1 - O Estado Português, representado pelo Ministério Público, interpôs recurso para o tribunal pleno do Acórdão deste Supremo de 11 de Dezembro de 1995 proferido na revista n.º 87 581 da 1. Secção, em que foi recorrente Organizações Industriais Joaquim de Almeida Lima e Filhos, L.da, e recorrido aquele mesmo Estado e outros, invocando oposição daquele acórdão com o deste mesmo tribunal de 11 de Maio de 1995 proferido na revista n.º 86 544, em que foi recorrente Amorim e Irmãos, L.da, e recorrido o Estado e outros, publicado na Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano III, t. II, p. 78.

Por Acórdão de 21 de Novembro de 1996 do plenário da 2.' Secção, também deste Supremo, foi reconhecida a existência da alegada oposição, tendo por isso o recurso prosseguido a sua ulterior tramitação.

O recorrente terminou a sua alegação com as seguintes conclusões: 1.º O artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 260/77, de 21 de Junho, determina que os adquirentes da cortiça ficam obrigados a depositar na Caixa Geral de Depósitos (CGD), à ordem do Instituto dos Produtos Florestais (IPF), a totalidade do valor da cortiça adquirida; 2.º Só esse depósito libera o adquirente da obrigação do pagamento do preço, de harmonia com o disposto no n.º 2 do mesmo normativo; 3.º Dessas quantias depositadas na CGD, 35% serão entregues pelo IPF à entidade alienante, de harmonia com o artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma; 4.º Aquele artigo 9.º tem carácter imperativo; 5.º Desse modo, pagamentos efectuados directamente à entidade alienante, mesmo cabendo naquela percentagem de 35%, não o liberam da obrigação do depósito da totalidade do valor da cortiça alienada na CGD, a favor do Estado, proprietário da cortiça alienada.

Pelo exposto, deve ser uniformizada a jurisprudência mediante a prolação de acórdão, para o qual se propõe a seguinte redacção: 'Nos prédios nacionalizados ou expropriados nas zonas de intervenção da reforma agrária e relativamente à campanha da cortiça de 1978, os pagamentos efectuados directamente pelo adquirente à entidade alienante, mesmo cabendo na percentagem de 35% a que se refere o artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 260/77, de 21 de Junho, não o liberam do depósito do valor total da cortiça adquirida na CGD, à ordem do IPF, nos termos determinados pelo artigo 9.º, n.º 1 e 2, do mesmo diploma.' Termos em que deve ser revogado, nessa parte, o douto acórdão recorrido.

Não houve contra-alegação da parte contrária.

2 - Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, já que é de manter o acórdão que decidiu da oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento.

2.1 - Face às referenciadas conclusões - delimitativas do objecto do recurso nos termos dos artigos 684.º,n.º 3, e 630.º, n.º 1 e 3, do Código de Processo Civil, atentemos na problemática que encerram.

Sinteticamente alinhada, a questão que nos é posta consiste em saber se o artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 260/77, de 21 de Junho - quando determina que os adquirentes da cortiça ficam obrigados a depositar na CGD, à ordem do IPF, a totalidade do valor da cortiça adquirida -, tem ou não carácter imperativo.

Com efeito, não se vê que o acórdão recorrido - na parte em que altera a decisão da 2.' instância - possa estribar-se noutra perspectiva jurídica que não seja a de que a mencionada norma tenha um carácter meramente facultativo.

Deste modo, se aquela alternância se resolver pela afirmativa - ou seja, pela imperatividade -, afigura-se-nos como impossível defender a tese expendida naquele douto aresto.

2.2 - Antes de entrar na análise do problema, será de relembrar a oposição interpretativa entre os dois acórdãos que conduziu ao presente recurso:

  1. As disposições aplicadas a ambos os casos - e com básico interesse para a solução do recurso - foram os citados artigos 9.º e 10.º daquele mesmo diploma, por força dos quais os adquirentes das partidas de cortiça ficaram obrigados a depositar na CGD, à ordem do IPF, a totalidade do valor da cortiça adquirida (artigo 9.º), devendo este IPF, posteriormente, entregar à entidade alienante 35% daquele mesmo valor (artigo 10.º); b) Perante tais normativos, e aplicando-os, o acórdão recorrido entendeu, relativamente à campanha de 1978, que, como o IPF tinha de entregar à entidade alienante os ditos 35%, o montante que, prévia e directamente, fora entregue pelo adquirente àquela alienante entraria já por conta do pagamento, devendo, por isso, ser deduzido ao preço global da cortiça vendida desde que se contivesse dentro daquela mesma percentagem; por seu turno, c) O acórdão fundamento, relativamente aos mesmos factos, entendeu, face às mesmas disposições, que qualquer entrega directa do valor do preço pelos adquirentes à alienante nunca seria liberatória, antes devendo todo aquele valor ser obrigatoriamente depositado na CGD, nos sobreditos termos, sendo o IPF que, posteriormente, entregaria à alienante a referida percentagem de 35%.

    Foi dentro destes precisos limites que se verificaram as soluções opostas nos acórdãos em apreço.

    E não será despiciendo relembrá-las porque sobre situações como a presente vem pairando a ideia de clamar pelo abuso de direito para corrigir eventuais excessos no seu exercício (artigo 332.º do Código Civil).

    Ora - mesmo admitindo a possibilidade de conhecimento oficioso do instituto acabado de anunciar -, a verdade é que a questão da sua aplicação não pode inserir-se no âmbito deste acórdão pelo seguinte: aquela oficiosidade não dispensa um objecto sobre o qual se pronuncie e tal objecto, nos acórdãos uniformizadores - em casos de recursos para o tribunal pleno abrangidos pelo n.º 3 do artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 320-A/95, de 12 de Dezembro, como é o presente -, está estrita e perfeitamente balizado no artigo 732.º-A do Código de Processo Civil, na redacção do citado decreto-lei e no citado artigo 17.º, dos quais resulta que o acórdão a proferir tem de circunscrever-se à resolução em concreto do conflito com os efeitos uniformizadores daí decorrentes. Não se trata, pois, de resolver o caso concreto, mas antes e muito diferentemente de resolver o concreto conflito.

    Como assim e como não há nos acórdãos em estudo qualquer conflito relativo ao abuso de direito - bem pelo contrário, ambos são coincidentes quanto à exclusão da sua aplicação e assim o decidiram -, não pode agora este acórdão debruçar-se sobre esse ponto sob pena de, desvirtuando os objectivos que lhe são permitidos, violar frontalmente aqueles dispositivos legais.

    3 - Assim reequacionada a questão e definido o seu núcleo essencial, entremos na sua análise.

    3.1 - Diga-se, antes de mais, que, para além da mera terminologia classificatória que temos vindo a denominar como 'de imperatividade', o que interessa fundamentalmente é saber se a norma em apreço poderá ou não ser afastada pela vontade dos sujeitos, nomeadamente no que concerne ao princípio da liberdade contratual que o artigo 405.º do Código Civil consagra e que, in casu, aqueles se quiseram arrogar. E dizemos assim porque, como se sabe, nem todos os autores usam a denominação de 'imperativas' para classificar as normas cogentes - as que impõem deveres -, antes lhes chamando 'regras injuntivas', precisamente para evitar confusões com a imperatividade que, no fundo, assiste a todas as regras jurídicas justamente por ser um dos elementos integrantes da jurisdicidade, isto sem embargo de a própria 'imperatividade' se apresentar como uma caracterização duvidosa para outros autores, dada a conotação voluntarista ligada ao vocábulo, conotação esta que há que ultrapassar. (Na linha do que acabámos de referir pode ver-se, v. g., O. Ascensão, O Direito - Introdução e Teoria Geral, 2.' ed., pp. 205 e segs., e B. Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pp. 91 e segs.) A consciência das aludidas oscilações conceituais não poderá, pois, deixar de servir para nos orientar no percurso essencial a percorrer, que, como se aludiu, não pode ser outro que não o de ir ao encontro da essência normativa do referenciado preceito, entendida esta enquanto susceptibilidade de poder ou não poder ser afastada pela vontade das partes. Isto, sem embargo de, não só por comodidade discursiva mas também por ir nesse sentido a doutrina dominante, se usar do referenciado termo classificatório denominado de imperatividade.

    3.2 - Nesta linha de raciocínio logo se vê, todavia, como, antes de se aplicar aprioristicamente uma classificação às normas em apreço, haverá que seguir uma hermenêutica das mesmas no sentido de que, tendo em vista o particular caso decidendo, venha a...

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