Acórdão n.º 108/88, de 25 de Junho de 1988

Acórdão n.º 108/88 Processo n.º 221/88 Acordam no Tribunal Constitucional (T. Const.): I Introdução 1 - Ao abrigo do disposto nos artigos 278.º, n.os 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 51.º, n.º 1, e 57.º, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, veio o Presidente da República requerer ao T. Const. que apreciasse preventivamente a constitucionalidade das normas dos artigos 1.º, 2.º, n.º 1, 4.º, 7.º, n.º 2, 8.º e 9.º do Decreto n.º 83/V da Assembleia da República (AR), diploma que disciplina a 'transformação das empresas públicas em sociedades anónimas'.

Fundamenta nos seguintes termos o pedido de intervenção do T. Const: o artigo 1.º do Decreto n.º 83/V vem permitir que as empresas públicas, ainda que nacionalizadas, se transformem, nos termos da CRP e dos artigos subsequentes do diploma, e mediante decreto-lei, em sociedades anónimas de capitais públicos ou de maioria de capitais públicos.

Por seu turno, o artigo 2.º, n.º 1, ao prescrever que na transformação de uma empresa pública em sociedade anónima devem ser imperativamente salvaguardados certos princípios [os constantes das suas alíneas a), b) e c)], apenas proíbe, no que toca às empresas nacionalizadas, a privatização do capital nacionalizado, tornando, assim, possível a transferência para o sector privado - após a transformação da empresa em sociedade anónima - das partes sociais representativas de capital social que exceda aquele que existia à data da nacionalização.

Ora, o disposto no artigo 1.º, conjugado com o estatuído no artigo 2.º, n.º 1, pode suscitar, e suscitou, efectivamente dúvidas, que convém remover, quanto ao respeito da norma do artigo 83.º, n.º 1, da CRP, isto se se tiver em conta, e muito particularmente, que a grande maioria das nacionalizações efectuadas depois de 25 de Abril de 1974 se referiram a empresas - envolvendo a sucessão universal nos seus direitos e obrigações -, e não, ou ao menos não directamente, a partes sociais. As dúvidas apontadas reforçam-se nos casos em que o capital superveniente houver resultado de incorporação de reservas.

Acresce que pode ainda estar em causa o respeito pelo artigo 85.º, n.º 3, da CRP, uma vez que o citado artigo 1.º não salvaguarda expressamente a delimitação de sectores vedados à iniciativa privada.

As dúvidas referidas estendem-se, pelas mesmas razões, e no que toca a empresas nacionalizadas após o 25 de Abril de 1974, por um lado, ao artigo 9.º, que prevê aumentos de capital abertos a entidades não públicas e por via dos quais estas poderão vir a participar de direitos relativos àquelas empresas, e, por outro lado, aos artigos 4.º e 8.º Por último, o n.º 2 do artigo 7.º, na medida em que prevê que as receitas e despesas relativas ao processo de alienação do capital público de certas empresas sejam escrituradas em operações extra-orçamentais, eventualmente regularizáveis no ano seguinte à sua efectivação, levanta dúvidas quanto ao acatamento das regras da anualidade e da plenitude orçamental, consagradas, respectivamente, nos artigos 93.º, alínea c), e 108.º, n.os 1 e 5, da CRP.

2 - Notificado, nos termos e para os efeitos do artigo 54.º da Lei n.º 28/82, veio o Presidente da AR a oferecer o merecimento dos autos e a fazer juntar um parecer da Auditoria Jurídica da AR, no qual, em resumo, se sustenta o seguinte: na busca do exacto sentido do princípio da irreversibilidade das nacionalizações, impõe-se que preliminarmente se acentuem as seguintes ideias: a) As nacionalizações, a que se refere o artigo 83.º, n.º 1, da CRP, foram, todas elas, efectuadas por empresas, e não por sectores de actividade; b) O princípio da irreversibilidade das nacionalizações, consignado no artigo 83.º, n.º 1, da CRP, não abrange a totalidade das empresas públicas, antes se confina às empresas cuja nacionalização foi objecto de um acto administrativo concreto, ainda que sob a forma de lei; c) O preceito constitucional em causa tem alcance temporal limitado: reporta-se exclusivamente às nacionalizações feitas entre 25 de Abril de 1974 e 25 de Abril de 1976; d) Tais nacionalizações incidiram sempre sobre o capital ou sobre a titularidade da empresa, mas nunca sobre o seu património.

Dada esta particular incidência das nacionalizações, nacionalizações que apenas em tal dimensão o artigo 83.º, n.º 1, da CRP salvaguarda, configura-se como indubitável que o artigo 1.º do Decreto n.º 83/V, em conjugação com o artigo 2.º, n.º 1, não viola, de qualquer modo, aquele preceito constitucional.

Também se não pode considerar violado o artigo 85.º, n.º 3, da CRP, por um lado, porque o mesmo não salvaguarda expressamente a delimitação de sectores vedados à iniciativa privada e, por outro lado, porque não só as nacionalizações operadas não atingiram os sectores, como acontece que a definição dos sectores vedados à iniciativa privada é da competência do legislador ordinário, como, aliás, resulta desse mesmo artigo 85.º, n.º 3.

Desta forma, pode perfeitamente o legislador ordinário ordenar a transferência de sector relativamente a uma empresa, sem que daí resulte qualquer inconstitucionalidade.

De igual modo se não verifica a inconstitucionalidade dos artigos 4.º, 8.º e 9.º do diploma em questão, simples corolários dos artigos 1.º e 2.º Por outro lado, e passando a apreciar a questão da (in)constitucionalidade do artigo 7.º, n.º 2, do Decreto n.º 83/V, convém notar, antes de mais, e quanto às regras da unidade e da universalidade, integrantes do princípio da plenitude orçamental, que só muito limitadamente terão consagração na CRP.

Acresce ainda que o grande sentido da proibição contida no n.º 5 do artigo 108.º da CRP é para a existência de dotações e fundos secretos.

Ora, não é de maneira nenhuma isto que o n.º 2 do artigo 7.º do decreto em causa se propõe fazer ao determinar a escrituração das receitas e despesas a que se reporta como operações de tesouraria.

Todavia, sempre se poderá obtemperar que esta última disposição não respeita o princípio da anualidade do orçamento.

Sem embargo, se tal preceito for analisado em profundidade, ter-se-á de reconhecer que no mesmo está ínsito ou implícito esse mesmo princípio, na medida em que a regularização das aludidas operações se fará no próprio ano ou no ano seguinte, não se registando, pois, a sua inconstitucionalidade.

3 - Cumpre agora, no domínio da fiscalização a priori, investigar se as normas referidas no requerimento do Presidente da República se confrontam ou não com a CRP, investigação que se desenvolverá ao longo de dois capítulos, sujeitos às seguintes epígrafes: O artigo 1.º do Decreto n.º 83/V, em conjugação com o artigo 2.º, n.º 1, e os artigos 4.º, 8.º e 9.º, face ao disposto nos artigos 83.º, n.º 1, e 85.º, n.º 3, da CRP (capítulo II); O artigo 7.º, n.º 2, do Decreto n.º 83/V, face ao disposto nos artigos 93.º, alínea c), e 108.º, n.os 1 e 5, da CRP (capítulo III).

II - O artigo 1.º do Decreto n.º 83/V, em conjugação com o artigo 2.º, n.º 1, e os artigos 4.º, 8.º e 9.º, face ao disposto nos artigos 83.º, n.º 1, e 85.º, n.º 3, da CRP.

4 - Dispõem as normas do Decreto n.º 83/V em causa neste capítulo o seguinte: Artigo 1.º As empresas públicas, ainda que nacionalizadas, podem, mediante decreto-lei, ser transformadas em sociedades anónimas de capitais públicos ou de maioria de capitais públicos, nos termos da CRP e da presente lei.

Art. 2.º - 1 - Na transformação de uma empresa pública em sociedade anónima deve ser imperativamente salvaguardado que: a) A transformação não implique a reprivatização do capital nacionalizado, salvo nos casos previstos no artigo 83.º, n.º 2, da CRP, devendo os títulos representativos do capital assumido pelo Estado à data da respectiva nacionalização ser sempre detidos pela parte pública; b) A maioria absoluta do capital social seja sempre detida pela parte pública; c) A representação da parte pública nos órgãos sociais seja sempre maioritária.

2 - ....................................................................................................................

Art. 4.º Sem prejuízo do disposto no artigo 2.º, o Estado ou qualquer outra entidade pública podem alienar acções da sociedade anónima de que sejam titulares.

Art. 8.º As empresas nacionalizadas que não tenham estatuto de empresa pública ficam sujeitas aos princípios e regras consagrados na presente lei.

Art. 9.º Os aumentos de capital das sociedades anónimas abrangidas pela presente lei, a realizar com abertura a entidades não públicas, ficam sujeitos à observância dos princípios e regras constantes desta lei.

Sobre as várias espécies de empresas públicas, escreve J. Simões Patrício, Curso de Direito Económico, 2.' ed., p. 536, nota 1: Entre nós também A. Caeiro tem vindo a subdistinguir, dentro da categoria de empresas públicas, as 'empresas criadas pelo Estado, com capitais próprios ou fornecidos por outras entidades públicas, e as empresas nacionalizadas', por um lado, e, por outro, as 'empresas públicas societárias' (isto é, com participação pública majoritária): v., por último, Revista de Direito e Economia, V, 1979, n.º 2, 445.

Veremos mais abaixo que a distinção é obrigatória de jure constituto (Decreto-Lei n.º 260/76).

Todavia, e numa perspectiva constitucional, uma outra classificação das empresas públicas se impõe, a que as classifica em dois grandes grupos: a) As decorrentes de nacionalizações posteriores a 25 de Abril de 1974; b) As restantes (deixa-se em aberto a questão de saber se as empresas nacionalizadas depois da entrada em vigor da CRP se deverão situar no primeiro grupo ou antes no segundo).

Acerca da génese das empresas públicas do primeiro grupo, e numa perspectiva histórica, escreve José Fernando Nunes Barata, Enciclopédia Polis, vol. 4, cols. 523 e 524: A revolução de 25 de Abril de 1974, que introduziu profundas alterações na estrutura sócio-económica portuguesa, deu larga acolhida à política das nacionalizações. O Programa do Movimento das Forças Armadas (MFA) anunciava, desde logo, uma estratégia antimonopolista. No...

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