Acórdão n.º 335/2008, de 18 de Julho de 2008

Acórdáo n. 335/2008

Processo n. 74/08

Acordam na 2.ª Secçáo do Tribunal Constitucional:

Relatório. - No âmbito dos autos de reclamaçáo e graduaçáo de créditos que correm por apenso ao processo de falência, pendente no

4. Juízo Cível do Tribunal Judicial de Barcelos sob o n. 2427/03.7 TBBCL -D, foi proferida sentença de verificaçáo e graduaçáo de créditos, a qual, por referência ao produto da liquidaçáo do bem imóvel aí apreendido, graduou os créditos reclamados pelos trabalhadores da falida antes do crédito garantido por hipotecas voluntárias reclamado pela «Caixa Geral de Depósitos, S. A.».

Para tanto, o tribunal aplicou a norma constante do artigo 377., n. 1, alínea b), do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n. 99/2003, de 27 de Agosto, na interpretaçáo segundo a qual a referida norma é aplicável aos contratos de trabalho vigentes à data da sua entrada em vigor e que os créditos laborais deles emergentes sáo garantidos por privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais os trabalhadores prestaram a sua actividade, com preferência à hipoteca voluntária constituída sobre esses bens em data anterior à da entrada em vigor da referida norma.

[...]

O referido credor bancário interpôs recurso de apelaçáo desta decisáo, mas o Tribunal da Relaçáo de Guimaráes viria a julgá -lo totalmente improcedente, mantendo assim a sentença recorrida.

O Tribunal da Relaçáo de Guimaráes fundamentou a respectiva decisáo pela seguinte forma, na parte que ora releva:

[...]

i) Os créditos laborais preferem aos demais (ainda que garantidos com hipoteca) por força do artigo 377. do CT:

A questáo colocada prende -se essencialmente com saber qual a lei aplicável aos créditos dos trabalhadores no que respeita aos privilégios concedidos, e qual a respectiva preferência no confronto com a garantia hipotecária do apelante.

Sustenta a apelante que encontrando -se o seu crédito garantido por hipoteca, dispondo a lei para o futuro - artigo 12, n. 1 do CC - , o privilégio imobiliário especial previsto no novo Código do Trabalho só prefere às hipotecas registadas após a sua entrada em vigor, ocorrida a 01/12/2003.

A Lei n. 17/86, de 14 de Junho, no seu artigo 12., n. 1, consagra para os créditos emergentes do contrato individual de trabalho por ela regulados, privilégio mobiliário e imobiliários gerais.

No n. 3 do citado artigo dispóe -se sobre a graduaçáo dos créditos, referindo quanto aos imobiliários que se graduam antes dos créditos referidos no artigo 748., do CC, e antes dos créditos de contribuiçóes devidas à Segurança Social.

A Lei n. 96/2001, de 20 de Agosto, estabeleceu no seu artigo 4., que os créditos emergentes de contrato de trabalho ou da sua violaçáo náo abrangidos pela Lei n. 17/86, de 14 de Junho, também gozavam de privilégio mobiliário e imobiliário gerais, excep tuando -se, táo-somente, os créditos de carácter excepcional, nomeadamente as gratificaçóes extraordinárias e a participaçáo nos lucros das empresas.

Este quadro sofreu alteraçóes como o novo CT aprovado pela Lei n. 99/2003, de 27 de Agosto.

O artigo 377 do CT regula a matéria nos seguintes termos: Privilégios creditórios:

1 - Os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violaçáo ou cessaçáo, pertencentes ao trabalhador, gozam dos seguintes privilégios creditórios:

a) Privilégio mobiliário geral;

b) Privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade.

2 - A graduaçáo dos créditos faz -se pela ordem seguinte:

a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes dos créditos referidos no n. 1 do artigo 747. do Código Civil;

b) O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes dos créditos referidos no artigo 748. do Código Civil e ainda dos créditos de contribuiçóes devidas à segurança social.

Foi este o normativo aplicado aos créditos dos trabalhadores, graduando -os à frente do crédito da apelante garantido por hipoteca.

O CT entrou em vigor a 1 de Dezembro de 2003, conforme artigo 3., n. 1, da Lei n. 99/2003, de 27 de Agosto.

No anterior regime e relativamente ao privilégio imobiliário geral desenharam -se duas correntes, uma no sentido da sujeiçáo deste ao disposto no artigo 749. do CC e outra no sentido da sujeiçáo ao artigo 751. do CC.

A corrente que entendia ser aplicável o artigo 749, claramente maioritário, muito ficou a dever aos Acs. do TC n.os 362/2002 e 363/2002 (DR I -A, de 16 de Outubro de 2002), que declararam a inconstitucionalidade com forma obrigatória geral o artigo 104 do CIRS (VO) e artigo 11 da Lei n. 103/80, na interpretaçáo segundo a qual os privilégios imobiliários gerais aí concedidos aos créditos de IRS e da segurança social preferem à hipoteca, nos termos do artigo 751. do CC.

Importa no entanto referir que relativamente a igual privilégio concedido aos trabalhadores, náo se pronunciando embora, porque tal náo lhe compe tia, sobre se é de aplicar o artigo 749. ou 751. do C. Civ., o mesmo tribunal por Acórdáo n. 498/2003 - 2.ª série, de 3 de Janeiro de 2004 - , concluiu por unanimidade, pela náo inconstitucionalidade da norma constante da alínea b) do n. 1 do artigo 12. da L. S. A. (na interpretaçáo segundo a qual o privilégio imobiliário geral nela conferido prefere à hipoteca.

A nova lei veio resolver esta querela.

Estamos agora face a um privilégio imobiliário especial, a que se aplica sem margem para dúvidas a preferência do artigo 751., do CC.

A questáo que ora se coloca é a de saber se este privilégio prevalece sobre a hipoteca voluntária constituída antes da data da entrada em vigor do CT.

A apelante faz apelo ao artigo 12 do CC.

Dispóe o normativo:

1 - A lei só dispóe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume -se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.

2 - Quando a lei dispóe sobre as condiçóes de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende -se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relaçóes jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender -se -á que a lei abrange as próprias relaçóes já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.

O n. 2 do artigo, como refere Baptista Machado, Introduçáo ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 2000, pág. 233, distingue dois tipos de leis ou de normas, "aquelas que dispóem sobre os requisitos de validade (substancial ou formal) de quaisquer factos ou sobre os efeitos de quaisquer factos (1.ª parte) e aquelas que dispóem sobre o conteúdo de certas situaçóes jurídicas e o modelam sem olhar aos factos que a tais situaçóes deram origem (2.ª parte). As primeiras só se aplicam a factos novos, ao passo que as segundas se aplicam a relaçóes jurídicas (melhor: Ss Js) constituídas antes da LN mas subsistentes ou em curso à data do seu IV" - (SJ - situaçóes jurídicas; LN - Lei nova; IV - início de vigência).

Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, 3.ª ed. rev., p. 61 em nota ao artigo 12, referem que "Se, porém, tratando -se do conteúdo do direito for indiferente o facto que lhe deu origem, a nova lei já é aplicável".

Aos factos "passados" que deram origem às "situaçóes jurídicas", no caso da 2ª parte do n. 2 aludido, náo é atribuído valor constitutivo, sendo utilizados apenas como pontos de referência para a definiçáo do regime de direito material da situaçáo jurídica existente - Baptista Machado, mesma obra, obra, pág. 236. Como refere o Ac. STJ de 5/5/94, 4J 437, pág. 480, seguindo a obra "Sobre a aplicaçáo no tempo do novo Código Civil" daquele mesmo autor, "a dis posiçáo legislativa abstrairá dos factos constitutivos da situaçáo jurídica contratual, quando for dirigida à tutela dos interesses duma generalidade de pessoas que se achem ou possam vir a achar ligadas por uma certa relaçáo jurídica (por exemplo uma relaçáo jurídica de trabalho, por

31978 uma relaçáo jurídica de arrenda mento, etc.) - de modo a poder dizer-se que tal disposiçáo atinge as pessoas náo enquanto contratantes, mas enquanto pessoas ligadas por certo vínculo contratual (enquanto patróes e operários, enquanto senhorios e inquilinos, etc.)". Os preceitos relativos a privilégios dispóem directamente sobre o conteúdo de certas relaçóes jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem. Limitam -se a definir, de acordo com a recente opçáo do legislador, a garantia patrimonial de determinados créditos. Caiem consequentemente na alçada na 2ª parte do n. 2 do artigo 12 do CC., aplicando -se aos créditos já constituídos.

Náo ocorre sequer, no caso presente, alteraçáo de qualquer regra relativa à hipoteca. A relaçáo entre a apelante enquanto credora e a devedora náo foi objecto de qualquer nova regra. O que se verifica é efeito reflexo sobre a hipoteca, por força do privilégio concedido aos trabalhadores no artigo 377 do CT, "desgraduando -a" no "computo" das "garantias" (isto para quem entenda que ao anterior privilégio era aplicável o artigo 749 do CC).

Poderia entender -se que náo tendo a norma em causa regulado a relaçáo jurídica invocada pela apelante, haveria que respeitar tal relaçáo nos termos da lei anterior. Tal conclusáo é contrária ao disposto no artigo 12, n. 2, 2ª parte do CC.

O que o princípio da náo retroactividade ressalva, grosso modo, sáo os efeitos já produzidos por factos passados. Ora a hipoteca voluntário respeita ao modo de realizaçáo do direito, conferindo ao crédito garantido determinada preferência de pagamento no confronto com outros credores. O efeito próprio da hipoteca apenas se realiza a partir do momento em que pode ser "accionada". A menos que se considere como efeito directo da hipoteca, como resultado directo e imediato do registo desta, a atribuiçáo do direito a determinada posiçáo preferencial no quadro das garantias, ou seja, do direito à cristalizaçáo, em tal data, das regras atinentes às garantias e para efeitos do...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT