Acórdão n.º 11/2007, de 25 de Julho de 2007

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA Acórdão n.º 11/2007 Processo n.º 881/2007 Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I -- José Manuel da Assunção Tomás intentou, no dia 16 de Janeiro de 2006, no 5.º Juízo de Pequena Instância de Lisboa, contra Liberty Seguros, S. A., acção declarativa de condenação, com processo sumaríssimo, pedindo a sua condenação no pagamento de 3329, acrescidos de juros de mora à taxa legal desde a citação, com fundamento em danos patrimoniais decorrentes de estragos no seu veículo automóvel com a matrícula 38 -91 -HR produzidos por Rosa Maria Gomes de Oliveira com o veículo automóvel que conduzia, no dia 4 de Agosto de 2005, na Rua de Tomás Fonseca, em Lisboa, e no contrato de seguro de respon- sabilidade civil automóvel celebrado entre a última e a ré. A ré apresentou contestação, por impugnação, no dia 30 de Janeiro de 2006, o juiz convidou as partes a pronunciarem -se sobre a questão da competência em razão da matéria do respectivo juízo e o autor pronunciou -se no sentido afirmativo.

O juiz, por sentença proferida no dia 22 de Junho de 2006, declarou o tribunal incompetente para conhecer da acção, com fundamento em a competência para o efeito se inscrever nos julgados de paz, e absolveu a Liberty Seguros, S. A., da instância.

Agravou o Ministério Público da referida sentença e a Relação, por Acórdão proferido no dia 14 de Dezembro de 2006, por maioria, negou provimento ao recurso.

Interpôs o Ministério Público recurso de agravo para este Tribunal, formulando, em síntese, as seguintes con- clusões de alegação: O não ter sido consagrada a solução dos projectos de lei que erigiam os julgados de paz em instância exclusiva das acções em causa reforça o entendimento no sentido da sua competência alternativa; A definição dos julgados de paz como projectos expe- rimentais e de limitada implantação territorial justifica a manutenção da concorrência entre duas jurisdições; A natureza e o modo de funcionamento dos julgados de paz perspectiva -os como meios de resolução alternativa de litígios e não como meios substitutivos; Os procedimentos previstos na lei são orientados por princípios de simplicidade, adequação, informalidade, oralidade e absoluta economia processual, sobressaindo a mediação dependente do acordo das partes; A instauração da acção no tribunal comum significa o desinteresse ab initio na mediação; O princípio da dependência da jurisdição -- cessação da sua competência, em questões incidentais e de prova pericial -- exclui logicamente a imposição de acciona- mento nos julgados de paz; A competência dos julgados de paz para as acções em causa não é exclusiva, mas alternativa, pelo que o juízo de pequena instância cível onde a acção foi proposta é o competente para a sua apreciação; A sentença violou os artigos 211.º da Constituição e 66.º e 101.º do Código de Processo Civil e a lei dos julgados de paz.

O Presidente deste Tribunal determinou o julgamento alargado do recurso de agravo e o Ministério Público emitiu parecer no sentido de o conflito ser resolvido por via de acórdão uniformizador no sentido de que, «no actual qua- dro jurídico, a competência material dos julgados de paz para apreciar e decidir as acções enumeradas no artigo 9.º, n.º 1, da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho, nomeadamente as constantes da sua alínea

h), é alternativa relativamente aos tribunais judiciais com competência territorial con- corrente». II -- É a seguinte a dinâmica processual que releva essencialmente no recurso: 1 -- José Tomás intentou, no dia 16 de Janeiro de 2006, no 5.º Juízo de Pequena Instância Cível de Lisboa, a pre- sente acção declarativa de condenação, a que atribuiu o valor processual de 3329 e a forma de processo sumarís- simo. 2 -- A causa de pedir são os danos patrimoniais resul- tantes de estragos num veículo automóvel e as declarações envolventes de um contrato de seguro de responsabilidade civil. 3 -- O pedido é o de condenação no pagamento de 3329 e juros de mora contados desde a citação.

III -- A questão essencial decidenda é de saber se o 5.º Juízo de Pequena Instância Cível de Lisboa é ou não competente em razão da matéria para conhecer da acção.

Considerando o conteúdo da sentença recorrida e das conclusões de alegação formuladas pelo recorrente, a res- posta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática: Breve referência histórica aos julgados de paz; Antecedentes preparatórios da actual lei e reflexões oficiais sobre a sua aplicação inicial; A posição da doutrina e da jurisprudência dos tribunais superiores sobre a questão; Síntese do conteúdo do acórdão recorrido; A organização e o funcionamento dos tribunais judiciais na Constituição e na lei ordinária; A organização e o funcionamento geral dos julgados de paz e a especificidade da respectiva tramitação pro- cessual; A competência material dos julgados de paz no con- fronto com a dos tribunais judiciais; Síntese da solução para o caso decorrente da dinâmica processual envolvente e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas subques- tões. 1 -- Comecemos com uma breve referência à história dos julgados de paz.

Inicialmente, eleitos nas freguesias, os juízes de paz tinham funções bifrontes de administração e judiciais.

No quadro da centralização do poder real, os juízes de fora, de nomeação régia, foram substituindo ou integrando na sua dependência os juízes de paz, cuja competência se circunscrevia à dirimência de pequenos conflitos vici- nais.

No princípio do século XVI , em 1519, os julgados de paz são investidos na função de conciliação, até que acabaram por desaparecer do nosso ordenamento jurídico durante a dinastia filipina, só vindo a reaparecer na sequência da nossa revolução liberal.

Com efeito, referia -se o artigo 177.º da Constituição de 1822 aos juízes de facto e o artigo 129.º da Carta Consti- tucional de 1826 previu a existência de juízes de paz com competências de índole conciliatória, previsão que foi concretizada na Lei de 15 de Outubro de 1827, estabele- cendo a sua eleição pelos munícipes.

O Decreto n.º 24, de 16 de Maio de 1832, estabeleceu que os juízes de paz seriam eleitos e que nenhuma de- manda seria apresentada aos juízes de direito sem passar por eles.

Também exerciam funções de juiz dos órfãos e relativas a partilhas, heranças, divórcios, dívidas, propriedades e salários, primeiramente na área de cada uma freguesia de tradição concelhia e mais tarde num círculo de fregue- sias.

A Constituição de 1838 manteve o carácter electivo dos juízes de paz, tal como a Carta de lei de 1840, esta já integrada na chamada Novíssima Reforma Judiciária de 21 de Maio de 1841. A Novíssima Reforma Judiciária subtraiu -lhes as fun- ções jurisdicionais orfanológicas, continuando a inscrever- -se na sua competência a conciliação das partes sob a utilização de todos os meios que a prudência e a equidade lhes sugerissem, mostrando -lhes os males derivados das demandas e abstendo -se de empregar algum meio violento, sob pena de responsabilidade por perdas e danos e abuso do poder (artigos 134.º e 135.º). Por força da Carta de lei de 27 de Junho de 1867, os juízes de paz passaram ser nomeados pelo Governo.

A Constituição de 1911 não se referiu aos juízes de paz, mas continuaram a existir, conforme decorre do Esta- tuto Judiciário de 1928; e a Constituição de 1933, na sua primeira versão, previu, no artigo 115.º, § 2.º, a sua exis- tência.

No Estatuto Judiciário de 1944, competia essencialmente aos juízes de paz a prática de vários actos por delegação do juiz de direito e a direcção dos processos de conciliação nos termos do Código de Processo Civil (artigo 89.º). O juiz de paz das sedes dos concelhos era o conservador do registo civil e, nos restantes julgados, era o professor do ensino primário do sexo masculino que exercia na sede da respectiva freguesia.

A Constituição de 1933, em resultado da revisão de 1945, deixou de referir -se aos juízes de paz, mas o Estatuto Judiciário de 1962 previa -os, nas freguesias, como meros auxiliares dos juízes de direito.

A Constituição de 1976, na sua primeira versão, não se referiu aos julgados de paz, mas prescreveu poder a lei criar juízes populares e estabelecer outras formas de participação popular na administração da justiça (artigo 217.º, n.º 1). Não obstante, a Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais de 6 de Dezembro de 1977 previu a existência de juízes de paz nas freguesias, eleitos pela assembleia ou plenário, com competência para exercer a conciliação, julgar trans- gressões e contravenções às posturas da freguesia, preparar e julgar acções de natureza cível de valor não superior à alçada do tribunal de comarca quando envolvessem apenas direitos e interesses de vizinhança e existisse acordo entre as partes em prosseguir com o processo no julgado de paz (artigo 76.º). Na sequência da mencionada Lei Orgânica, foi publi- cado o Decreto -Lei n.º 539/79, de 31 de Dezembro, que regulou a organização e o funcionamento dos julgados de paz, incluindo a respectiva vertente processual.

A motivação anunciada no exórdio deste diploma quanto à atribuição da competência material dos julgados de paz foi a de experimentalidade e de não obrigatoriedade de acesso, certo que se expressou referir -se: a questões sus- ceptíveis de provocar conflitos e de empenhar os cidadãos em torno de problemas que afectam o seu quotidiano no quadro da mais pequena comunidade institucional -- a freguesia -- e, consequentemente, por pôr à prova e es- timular pedagogicamente a capacidade de intervenção, diálogo e reconciliação.

Os juízes de paz não estavam sujeitos a critérios de legalidade estrita, julgando segundo critérios de equidade, prescrevendo a solução que julgassem mais justa e conve- niente com vista a conseguir a harmonia social.

O processo cível era informal, o juiz de paz podia livre mente investigar os factos, determinar a realização dos actos e diligências que julgasse convenientes, só era admis sível a intervenção de advogado na fase do recurso a interpor para...

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