Acórdão n.º 9/2007, de 06 de Julho de 2007

Acórdáo n.o 9/2007

Processo n.o 2925/2006-3

Acordam no Pleno das Secçóes Criminais do Supremo Tribunal de Justiça:

I - O Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto junto do Tribunal da Relaçáo de Coimbra interpôs recurso, para fixaçáo de jurisprudência, do acórdáo daquela Relaçáo proferido no recurso n.o 243/2006, com origem em processo comum com intervençáo do tribunal singular do Tribunal Judicial de Sáo Pedro do Sul, onde se decidiu, em 19 de Abril de 2006, que o arguido que, em liberdade, em interrogatório e em inquérito, presta falsas declaraçóes atinentes aos seus antecedentes criminais, náo pratica o correspondente crime, previsto e punido pelo artigo 359.o, n.o 2, do Código Penal, alegando oposiçáo daqueloutro com o acórdáo proferido ainda por aquela Relaçáo em 9 de Março de 2005, prolatado no processo n.o 108/05, com origem em processo comum com inter-vençáo do tribunal singular, que correu termos no Tribunal Judicial de Anadia, onde se decidiu que o arguido que, naquele preciso contexto, presta falsas declaraçóes incorre na prática daquele ilícito, como tal sendo condenado.

II - A tese do acórdáo recorrido arranca da seguinte ordem de razóes justificativas:

A supressáo da obrigatoriedade (que decorria do artigo 342.o, n.os 2 e 3, do Código de Processo Penal, na redacçáo anterior à do Decreto-Lei n.o 317/95, de 28 de Novembro), de o arguido responder e com verdade acerca dos seus antecedentes criminais, em sede de audiência de julgamento, manteve-se expressa e relativamente ao interrogatório judicial de arguido detido e, bem assim, ao náo judicial de arguido detido, uma vez que este obedece às mesmas disposiçóes daquele, salvo no que concerne à assistência de defensor (artigo 143.o,n.o 2, do mesmo diploma).

A respeito dos demais interrogatórios, designadamente os previstos no artigo 144.o do Código de Processo Penal (entre eles o de arguido em liberdade) náo se aplica, porém, essa obrigatoriedade, já que náo existe efectiva necessidade de efectuar-se tal indagaçáo junto do arguido, sendo, aliás, esta a razáo principal para se ter procedido à aboliçáo da mesma obrigatoriedade em sede de audiência de julgamento [artigo 3.o, alínea gg), da Lei n.o 90-B/95, de 1 de Setembro, ao abrigo da qual foi produzido o Decreto-Lei n.o 317/95, de 28 de Novembro].

Só, pois, em caso de absoluta necessidade de indagar junto do arguido acerca dos seus antecedentes criminais naqueles casos em que o processo náo está em condiçóes de permitir, oficiosamente, a sua obtençáo através do respectivo certificado de registo criminal (tais sejam os reportados à detençáo e apresentaçáo do arguido a primeiro interrogatório judicial ou náo judicial, em sede de tribunal de turno, aos sábados, em que o ficheiro central do registo criminal se encontra encerrado); apenas quando tal «colaboraçáo» por parte do arguido se revela necessária, existe fundamento para a imposiçáo da obrigaçáo a que alude o artigo 61.o, n.o 3, alínea b), do Código de Processo Penal, sob pena da referida «colaboraçáo» se revelar excessivamente violenta e desproporcionada.

Emerge, assim, apenas nesses casos o direito de perguntar ao arguido sobre o seu passado criminal, sendo ilegítima a omissáo de resposta ou inveracidade da mesma na medida em que só aí a sua atitude é susceptível de atentar contra o interesse na realizaçáo da justiça, tratando-se de interrogatório de arguido em liberdade, em que o conhecimento dos antecedentes criminais do arguido relevo algum possui no imediato para a tramitaçáo processual subsequente, a falsidade objectiva na resposta por ele dada a propósito resulta inócua, como inócua resulta a sua eventual recusa a responder sobre os seus antecedentes criminais.

III - No acórdáo fundamento acentua-se que:

No interrogatório quer de arguido detido quer de arguido em liberdade existe a obrigaçáo de este dizer com verdade se já esteve alguma vez preso, quando e porquê e se foi ou náo condenado e por que crime, tendo em conta a remissáo que no n.o 1 do artigo 144.o do Código de Processo Penal é feita;

O conhecimento dos antecedentes criminais do arguido detido, preso ou em liberdade, durante o inter-rogatório apresenta vantagens para a realizaçáo de justiça por conceder informaçáo que é relevante e necessária para a decisáo sobre a aplicaçáo da medida coactiva e que, frequentemente, náo é possível obter por outros meios institucionalmente válidos e compatíveis com a urgência reclamada pelo acto em causa;

A necessidade de conhecimento dos antecedentes criminais do arguido em liberdade náo deixa de existir no interrogatório efectuado em sede de inquérito quando, ainda náo se encontrando junto o certificado de registo criminal e havendo fortes indícios da prática de um crime, se perfile desde logo adequada a aplicaçáo de uma medida coactiva ao arguido;

O conhecimento dos antecedentes criminais do arguido através das declaraçóes verídicas pelo mesmo prestadas constitui, pois, uma exigência da lei que os reputa necessários para a realizaçáo de justiça em qualquer dos interrogatórios a que aludem os artigos 141.o, 143.o e 144.o do Código de Processo Penal.

Neste Supremo Tribunal de Justiça (STJ), após constataçáo de oposiçáo de julgados e dos demais necessários pressupostos de seguimento processual, em obediência ao preceituado no artigo 442.o, n.o 2, do Código de Processo Penal, a Ex.ma Procuradora-Geral-Adjunta junto deste STJ firmou perspectiva de resoluçáo acolhendo um vasto leque de argumentaçáo, a um tempo de índole normativa mas também de natureza jurisprudencial e doutrinária, de que se destacam as seguintes consideraçóes:

O estatuto de arguido - que comporta um extenso rol de direitos e deveres (na sua maioria enumerados no artigo 61.o do Código de Processo Penal, que tem justamente por epígrafe «Direitos e deveres processuais» - adquirido no processo, a par da vasta panóplia de prerrogativas de que passa a gozar como forma de lhe assegurar um efectivo exercício do direito de defesa que a Constituiçáo da República lhe garante no seu artigo 32.o, incumbe-lhe, em contrapartida, observar uma série de deveres que, sempre cuidando de salvaguardar a sua dignidade de pessoa humana, a lei lhe impóe.

E, contando-se entre esse extenso leque de direitos garantidos ao arguido no n.o 1 do artigo 61.o do Código de Processo Penal - como sejam os direitos de presença ou comparência (alínea a), de audiência (alínea b), a defensor [alínea d)], de intervençáo probatória [alínea f)], à informaçáo [alínea g)] e de recurso [alínea h)], 4354 o direito ao silêncio ou de recusar resposta [alínea c)] - , impóe-se considerar que este náo é, todavia, absoluto.

Com efeito, reconhecendo-se embora ao arguido, na alínea c) do n.o 1 do citado artigo 61.o do Código de Processo Penal, o direito ao silêncio ou de recusar resposta relativamente aos factos que lhe sáo imputados e ao teor das declaraçóes que acerca deles prestar, na alínea b) do n.o 3 do mesmo normativo, impóe-se ao arguido o dever de «responder com verdade às perguntas feitas por entidade competente sobre a sua identidade e, quando a lei o impuser, sobre os seus antecedentes criminais».

Disto resulta, pois, que se o arguido está obrigado a responder com verdade às perguntas que, relativamente à sua identificaçáo pessoal, lhe forem feitas pelas autoridades judiciárias ou pelos órgáos de polícia criminal a quem haja sido delegada competência para a realizaçáo do interrogatório, do mesmo passo sempre que a lei o impuser o arguido será obrigado a responder com verdade às perguntas que lhe foram formuladas sobre os seus antecedentes criminais, salvo tratando-se de audiência de julgamento.

E conquanto, na actualidade (face aos meios - informáticos e náo só - disponíveis e que permitem aceder de imediato aos elementos de informaçáo adequados a elucidarem a respeito do passado criminal do arguido), menos plausível possa resultar essa necessidade de o arguido [independentemente da fase da diligência ou da sua situaçáo processual (preso, detido ou em liber-dade)] colaborar com o tribunal, esclarecendo a respeito dos seus antecedentes criminais, o presente estádio de direito penal e processual penal parece continuar a fornecer razóes para exigir-se essa colaboraçáo do arguido e, na falta dela, justificar-se a sua puniçáo.

Julgamos nós ter sido, enfim, esse o sentido do entendimento do legislador do Código de Processo Penal, na versáo dada pela Lei n.o 59/98, de 25 de Agosto, na medida em que, excluindo apenas para a fase da audiência de julgamento essa obrigaçáo de o arguido revelar os seus antecedentes criminais, náo encontrou motivo para deixar de mantê-la noutras fases processuais, máxime nos interrogatórios anteriores.

Tratando-se o crime de falsidade de depoimento ou declaraçáo, objecto de previsáo no artigo 359.o do

Código Penal, de um crime de perigo abstracto de mera actividade, doloso (sob qualquer das suas modalidades), com ele visa-se assegurar, em primeira linha, a realizaçáo ou administraçáo da justiça como funçáo do Estado e só reflexamente o interesse particular dos intervenientes na causa.

Pretende-se, assim, com a respectiva incriminaçáo obstar a que no âmbito dos processos judiciais ou análogos sejam produzidas declaraçóes desconformes à ver-dade, de sorte que, servindo elas de suporte à decisáo, resulta assegurada uma permanente boa administraçáo da justiça, que constitui afinal o interesse-fim objecto de tutela legal.

E, chegados a este ponto, crê-se poder sintetizar para já que, se ao nível da doutrina náo se registam diver-gências de maior (designadamente quer quanto à obrigatoriedade de o arguido responder com verdade sobre os seus antecedentes criminais quando legalmente tal lhe for exigível, quer quanto à natureza do delito em que incorre quando assim náo proceder quer ainda quanto ao bem jurídico objecto de tutela), na jurisprudência a questáo controvertida surge como tentativa de distinguir se essa obrigatoriedade recai sobre o arguido apenas quando, encontrando-se ele detido, deva sujeitar-se...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT