Acórdão n.º 350/2006, de 12 de Julho de 2006

Acórdáo n.o 350/2006

Processo n.o 376/2006

Acordam na 2.a Secçáo do Tribunal Constitucional:

1- Relatório. - Rui Jorge Pimentel Rodrigues Pereira interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.o, n.o 1, alínea b), da Lei de Organizaçáo, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.o 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.o 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra o Acórdáo do Tribunal da Relaçáo do Porto, de 8 de Fevereiro de 2006, que negou provimento ao recurso por ele deduzido contra o despacho da juíza do Tribunal de Instruçáo Criminal do Porto, de 4 de Outubro de 2005, que indeferiu «arguiçáo de irregularidade/nulidade» do despacho que lhe aplicou a medida de prisáo preventiva.

Em 20 de Setembro de 2005, o recorrente foi detido, em execuçáo de mandado de detençáo emitido, em 28 de Março de 2005, pelo Ministério Público, nos termos do disposto nos artigos 191.o, n.o 1, 193.o, 195.o, 196.o, 202.o, n.o 1, alínea a), 204.o, alíneas a), b) e c), 257.o, n.o 1, e 258.o do Código de Processo Penal (CPP), «por haver fortes indícios de ter praticado um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido nos termos do artigo 21.o, n.o 1, do Decreto Lei n.o 15/93, de 22 de Janeiro, ao qual corresponde a pena de 4 a 12 anos de prisáo».

Em 21 de Setembro de 2005, o recorrente foi sujeito ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido, tendo sido assistido por mandatário por ele constituído. No termo do interrogatório foi-lhe aplicada a medida de coacçáo de prisáo preventiva, promovida pelo Ministério Público, sem que ao arguido ou ao seu defensor tivesse sido dada oportunidade de se pronunciarem sobre essa promoçáo e sem que se tivesse invocado razáo de impossibilidade ou inconveniência dessa audiçáo.

Por fax expedido em 26 de Setembro de 2005, o arguido veio arguir a «irregularidade/nulidade» desse despacho, invocando que lhe devia ter sido permitido pronunciar-se sobre a medida de coacçáo que lhe veio a ser aplicada, para além de o dito despacho ser nulo por falta de fundamentaçáo quanto à impossibilidade ou inconveniência dessa audiçáo.

Por despacho de 4 de Outubro de 2005, a juíza de Instruçáo Criminal indeferiu, por extemporânea, essa arguiçáo, dado que, implicando a denunciada omissáo uma irregularidade, que náo uma nulidade, deveria ter sido arguida no próprio acto, o que náo ocorrera - consignando-se que o mandatário do arguido «assistiu náo só à prolaçáo da douta promoçáo, como do respectivo despacho que lhe foi de imediato notificado, devido a estar presente no próprio acto». Mais acrescentou que, em seu entendimento, nem sequer fora cometida qualquer irregularidade, uma vez que o artigo 194.o, n.o 1, do CPP apenas impóe que, antes de o juiz decidir sobre a aplicaçáo de medida de coacçáo, ocorra promoçáo do Ministério Público, sendo «a audiçáo do arguido previamente à aplicaçáo de qualquer medida de coacçáo

[. . .] uma mera faculdade concedida ao juiz que, casuisticamente, decidirá se deve ou náo utilizá-la».

Desse despacho de 4 de Outubro de 2005, que indeferiu a arguiçáo de nulidade, interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relaçáo do Porto, que subiu em separado. [Foi também interposto recurso do despacho de 21 de Setembro de 2005, que decretou a prisáo preventiva, cujo desfecho náo está documentado nos presentes autos.]

A motivaçáo do recurso relativo ao despacho de 4 de Outubro de 2005 termina com a formulaçáo das seguintes conclusóes:

1.a Náo foi permitida ao arguido, através do seu defensor, pronunciar-se sobre a medida de coacçáo prisáo preventiva, promovida pelo Ministério Público, o que impossibilitou que exercesse o seu direito de defesa.

2.a Verificou-se, por isso, a nulidade prevista na alínea c) do artigo 119.o do CPP e nos artigos 18.o e 32.o, n.o 1, da CRP, por violaçáo directa de uma norma constitucional.

3.a Violou-se em concreto o n.o 1 do artigo 32.o da CRP, porque ao arguido, através do seu defensor, náo foi permitido [pronunciar-se] antes de uma decisáo judicial que implicou a restriçáo de direitos e da sua liberdade.

4.a Por via do n.o 1 do artigo 18.o da CRP, o n.o 1 do artigo 32.o da CRP é directamente aplicável, por se estar perante uma situaçáo que se prende com a liberdade de um cidadáo.

5.a Repare-se que o arguido foi preso preventivamente sem que pudesse ser defendido pelo seu advogado.

6.a Acresce que o despacho censurado nem sequer invoca, quanto mais fundamenta, a desnecessidade ou impossibilidade em o arguido exercer o seu direito de defesa e de contraditar o alegado pelo Ministério Público.

7.a É inconstitucional a interpretaçáo dos artigos 58.o, n.o 1, alínea b), 61.o, alíneas b) e e), 63.o, n.o 1, alínea a), 64.o, n.o 1, e 194.o, n.o 2, do CPP, segundo a qual náo é permitido ao arguido, através do seu defensor, em primeiro interrogatório judicial de arguido detido, por mandado de detençáo emitido fora de flagrante delito pelo Ministério Público, pronunciar-se sobre a medida de coacçáo promovida, especialmente tratando-se da prisáo preventiva.

Esta interpretaçáo diminui a extensáo e alcance do conteúdo essen-cial das normas dos artigos 27.o e 28.o, n.o 4, nega garantias de defesa previstas no artigo 32.o, n.o 1, impede o contraditório e afronta o princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18.o, todos da Constituiçáo da República Portuguesa.

8.a Caso náo se entenda que a situaçáo descrita tipifica a nulidade atrás exposta, estamos sempre perante uma irregularidade tempestivamente arguida.

9.a No douto despacho que aplicou a medida de coacçáo náo é invocada a desnecessidade ou inconveniência na audiçáo do arguido e, muito menos, se fundamenta.

10.a Pelo que se verifica uma completa ausência de decisáo desta questáo - n.o 2 do artigo 194.o do CPP.

11.a Mas podia ter sido ouvido através do seu defensor, uma vez que ambos estavam presentes e náo vislumbra qualquer inconveniência.

Por Acórdáo do Tribunal da Relaçáo do Porto, de 8 de Fevereiro de 2006, foi negado provimento ao recurso, desenvolvendo-se, para tanto, a seguinte fundamentaçáo:

De acordo com o que dispóe o artigo 194.o, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal, a aplicaçáo de medidas de coacçáo é precedida, sempre que possível e conveniente, de audiçáo do arguido e pode ter lugar no acto do primeiro interrogatório judicial.

Temos por impressivo que esta expressáo normativa consagra ou tem como pressuposta, quanto à audiçáo do arguido, uma verdadeira regra, que somente cede (revestindo-se, entáo, como excepçáo) quando tal náo for possível ou se perspectivar como inconveniente.

É exactamente isto que nos ensinam Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. II, p. 254: '[. . .] uma medida de coacçáo representa sempre a restriçáo da liberdade do arguido e por isso só na impossibilidade ou em circunstâncias verdadeiramente excepcionais deve ser aplicada sem que antes tenha sido dada a possibilidade ao arguido de se defender, ilidindo ou enfraquecendo a prova dos pressupostos que a podem legitimar'; e Maria Joáo Antunes, in Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, p. 1250: 'na medida em que o contraditório é uma garantia de defesa do arguido, é de conceber a audiçáo deste como regra geral do procedimento de aplicaçáo da medida de coacçáo: a aplicaçáo da medida de coacçáo só será impossível se tiverem sido esgotadas as diligências susceptíveis de assegurar a audiçáo do arguido, aqui incluída a detençáo, e inconveniente se a audiçáo puder frustrar as exigências processuais de natureza cautelar que se façam sentir no caso concreto'.

Neste enquadramento, entáo, ou se cumpre a regra (e leva-se a cabo audiçáo do arguido) ou se aduz a excepçáo (e se fundamenta a impossibilidade ou inconveniência dessa audiçáo).

No caso, nem se deu cumprimento à regra, nem se aduziu a excepçáo.

Mas tal ocorreu porque, segundo consta do despacho sob recurso '[. . .] a lei náo obriga em parte alguma, apenas prevê se possível e necessária, a presença do mandatário ou defensor e, muito menos, que os mesmos se pronunciem, após terminus do interrogatório dos arguidos, aquando da prolaçáo da promoçáo ou do [. . .] despacho que determina a medida entendida adequada'.

Aqui chegados, fácil é a constataçáo de que entre este entendimento e esse outro (o nosso) há uma divergência, substancial, que se expressa, em termos claros, do seguinte modo: além, é indispensável tomar posiçáo expressa sobre a audiçáo do arguido (dando-lhe efectivaçáo ou justificando a sua negaçáo); aquém náo se tem de tomar posiçáo por se náo estar perante uma legal imposiçáo.

Ora, em coerência, de acordo com o entendimento que perfilhamos, a 'ausência' (de audiçáo do arguido ou de decisáo sobre a sua impossibilidade ou inconveniência) que acima se mencionou corresponde à inobservância daquela disposiçáo legal (artigo 194.o, n.o 2, de Código de Processo Penal).

Entáo, há que ver o que ela determina. As nulidades estáo sujeitas ao princípio da legalidade, pois, como estipula o artigo 118.o, 'a violaçáo ou a inobservância das disposiçóes da lei ou do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei' (n.o 1) e 'nos casos em que a lei náo cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular' (n.o 2).

Aquela omissáo náo está prevista, na lei processual penal, como determinando uma nulidade.

Daí que, de acordo com a mesma lei, se tenha de ver como irregularidade.

Entáo, intercede o artigo 123.o, n.o 1, do Código de Processo Penal, que dispóe que 'qualquer irregularidade do processo só deter-mina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto [. . .]'.

Ora, o que aqui se náo discute é que a irregularidade em questáo náo foi arguida no próprio acto (interrogatório judicial de arguido detido) quando o podia ter sido (o mandatário do arguido estava presente).

O que torna fácil a conclusáo: aquela inobservância do artigo 194.o, n.o 2...

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