Acórdão n.º 589/2007, de 18 de Janeiro de 2008

Acórdáo n. 589/2007

Processo n. 473/2007

Acordam na 3.ª Secçáo do Tribunal Constitucional:

I - Relatório

1 - Em acçáo de impugnaçáo de paternidade em que se suscitou a questáo da intempestividade da propositura da acçáo por incumprimento do prazo previsto na alínea a) do n. 1 do artigo 1842. do Código Civil,

2520 o Supremo Tribunal de Justiça, em recurso de revista, pelo acórdáo de pp. 306 -316, veio a formular um juízo de inconstitucionalidade relativamente à referida disposiçáo legal, recusando a sua aplicaçáo no caso concreto.

A decisáo do Supremo Tribunal de Justiça fundou -se essencialmente na orientaçáo firmada pelo Tribunal Constitucional no Acórdáo n. 486/2004, de 7 de Julho (confirmada em plenário pelo Acórdáo n. 11/2005, de 12 de Janeiro), que, relativamente a uma acçáo de investigaçáo de paternidade, julgou inconstitucional a norma do artigo 1817., n. 1, do Código Civil (aplicável por força da remissáo feita pelo artigo 1873. do mesmo Código), por violaçáo das disposiçóes conjugadas dos artigos 26., n. 1, 36., n. 1, e 18., n. 2, da Constituiçáo da República, e cuja argumentaçáo se considerou ser transponível para o prazo de caducidade da acçáo de impugnaçáo de paternidade a que se refere o artigo 1842., n. 1, alínea a), e que estava em causa nos autos.

Para assim concluir, o acórdáo entendeu, em suma, que a fixaçáo de um prazo de caducidade para a propositura da acçáo de impugnaçáo de paternidade, sacrificando a «verdade biológica», representa uma restriçáo náo constitucionalmente justificada do direito de acçáo, pondo em causa o direito fundamental à identidade pessoal e o direito fundamental à integridade pessoal, bem como o direito ao desenvolvimento da personalidade.

Dessa decisáo recorreram para o Tribunal Constitucional, com invocaçáo do disposto na alínea a) do n. 1 do artigo 70. da Lei do Tribunal Constitucional, o Ministério Público (cujo recurso era obrigatório) e a ré Estela Maria do Carmo Samuel Monteiro (máe da menor cuja paternidade era impugnada na acçáo).

Nas suas alegaçóes, o Ministério Público formulou as seguintes conclusóes:

  1. A norma constante da alínea a) do n. 1 do artigo 1842. do Código Civil, ao atribuir ao marido da máe o direito de impugnar a paternidade presumida no prazo de dois anos, contados do conhecimento de circunstâncias de que possa concluir -se a sua náo paternidade, garante, em termos efectivos e adequados, o direito ao estabelecimento da verdade biológica, traduzindo uma adequada ponderaçáo entre o interesse do impugnante em destruir uma paternidade presumida que considera sem base biológica e os interesses do filho - afectado por tal acçáo «negatória» da paternidade, em que figura como réu - e da estabilidade e protecçáo da família conjugal;

  2. Náo pode inferir -se da Constituiçáo que o único modelo, constitucionalmente admissível, em sede de acçóes de estabelecimento ou de impugnaçáo da paternidade, seja o da absoluta imprescritibilidade de todas elas, incluindo as acçóes «negatórias», que extinguem a própria relaçáo jurídica.

Por sua vez, a ré, também recorrente, concluiu a sua alegaçáo do seguinte modo:

  1. A questáo fundamental colocada no presente recurso é assim a de saber se caduca ou náo o direito de acçáo por parte do progenitor constante do registo de nascimento por decurso do prazo previsto no artigo 1842., n. 1, alínea a), do Código Civil, quando se encontre cientificamente provado que o menor náo é descendente do demandante;

  2. O recurso ora interposto tem por objecto a apreciaçáo da inconstitucionalidade da norma da alínea a) do n.° 1 do artigo 1842. do Código Civil, quando interpretada no sentido de que náo caduca o direito de acçáo por parte do progenitor, constante do registo de nascimento, pelo decurso do prazo previsto no citado preceito legal, quando se encontre cientificamente comprovado que o menor náo é descendente do impugnante;

  3. Nos autos terá de se reconhecer que o impugnante intentou a acçáo para além do prazo estabelecido no artigo 1842., n. 1, alínea a), do CC e de que nenhuma prova efectuou de ter instaurado a acçáo dentro daquele prazo;

  4. O acórdáo recorrido considerou, no essencial, que quando se está em frente da verdade biológica, náo interessam as limitaçóes temporais que a lei imponha para o exercício do direito de acçáo nos termos do citado preceito legal, por tal ofender os direitos constitucionais à «identidade pessoal», à «integridade pessoal» e «ao desenvolvimento da personalidade» e em concreto os artigos 25., 26., n. 1, e 18°, n. 2, da Constituiçáo da República;

  5. O acórdáo recorrido assenta a sua motivaçáo, no essencial (mas náo em exclusivo) na jurisprudência do Tribunal Constitucional relativa ao prazo constante do artigo 1817. do CC, para a propositura das acçóes de investigaçáo da paternidade, e considera que os respectivos pressupostos têm inteira aplicaçáo ao caso concreto impugnaçáo da paternidade, por tal temática ser muito semelhante à ora em apreciaçáo;

  6. A questáo colocada no presente recurso é completamente diversa da apreciada quanto à investigaçáo da paternidade. Isto porque, o caso sub iudice refere -se à impugnaçáo da paternidade já estabelecida de uma

    menor nascida no casamento, enquanto no Acórdáo do TC n. 486/2004, de 7 de Julho, estava em causa a investigaçáo da paternidade por parte do filho para além dos 20 anos de idade; e em ambos os casos, quer no caso sub judice, quer no apreciado no Acórdáo do TC n. 486/2004, de 7 de Julho, estáo em causa prazos de caducidade das respectivas acçóes. Porém, estes prazos têm uma configuraçáo completamente distinta um do outro: enquanto o prazo para propor a acçáo de investigaçáo da paternidade se extinguia com o completar dos 20 anos de idade do filho, e., trata -se de um prazo puramente objectivo e muito curto; aqui, o prazo para propor a acçáo de impugnaçáo da paternidade é de dois anos a contar do momento em que o impugnante teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir -se a sua náo paternidade, i. e., pode durar, potencialmente, desde o nascimento do pretenso filho até à morte do impugnante;

  7. A jurisprudência dos Acórdáos n.os 486/2004, 413/89, 451/89, 311/95 e 506/99, do Tribunal Constitucional, é uniforme no sentido de considerar que, de principio, náo é contrária à Constituiçáo a existência de prazos para o exercício do direito de acçáo das acçóes de estado (investigaçáo da paternidade, impugnaçáo da paternidade, etc.;

  8. A linha central desta conclusáo assenta, segundo o Acórdáo do TC n. 486/2004, no essencial, na consideraçáo de que as normas que estabelecem aqueles prazos, resultam de uma ponderaçáo de vários direitos e interesses contrapostos, o que conduz, náo propriamente a uma restriçáo, mas a um condicionalismo aceitável ao exercício do direito à identidade pessoal (do investigante);

  9. Resulta desta mesma jurisprudência uniforme que, a existência de inconstitucionalidade desses prazos prende -se com o princípio da proporcionalidade, ou seja, esses prazos seráo inconstitucionais, quando representem, já náo uma mera limitaçáo, mas antes uma restriçáo into-lerável, aos direitos fundamentais;

  10. No caso destes autos, o impugnante tem até à sua morte e desde o nascimento do pretenso filho, o direito de impugnar a paternidade, desde que o faça no prazo de dois anos a contar da data em que teve conhecimento das circunstâncias de que possa concluir -se a sua náo paternidade;

  11. Foi este prazo amplo que o acórdáo recorrido julgou inconstitucional, defendendo que, quando se encontre cientificamente comprovada a náo descendência, náo relevam os prazos que a lei imponha para o exercício do direito de acçáo constante do mencionado artigo 1842., n. 1, alínea a), do CC, por tal ofender o direito com protecçáo constitucional à identidade pessoal, «o direito à integridade pessoal», e o direito ao desenvolvimento da personalidade consagrados nos artigos 25., 26., n. 2, e 18. da CRP:

  12. Deste raciocínio retira -se claramente que, à luz das mesmas consideraçóes, náo só será inconstitucional o prazo do artigo 1842., n. 1, alínea a), do CC, aqui em análise, como seráo todos os prazos de idêntica natureza desde que demonstrada se encontre a verdade biológica, v. g., os prazos constantes dos artigos 1817., n. 3, 1842., n. 1, alínea c), 1843., n. 1, do CC;

  13. O acórdáo recorrido acaba por dar uma importância extraordinária aos exames de ADN e assim ao quase desaparecimento do argumento do envelhecimento da prova H, acabando por esquecer os outros dois argumentos (a segurança jurídica e a instrumentalizaçáo da acçáo) ou subalternizando -os de tal forma que os torna absolutamente irrelevantes;

  14. No caso dos autos, trata -se da impugnaçáo da paternidade já estabelecida. Encontrando -se a maternidade e a paternidade já estabelecidas, a relevância da prova pericial (ADN), no cotejo com as outras duas razóes, náo assume uma importância táo vital como lhe atribui o acórdáo recorrido. Isto porque, o interesse de estabelecer uma «filiaçáo biológica» (no caso da investigaçáo da paternidade) náo é táo forte como o de substituir uma filiaçáo social (no caso da impugnaçáo da paternidade já estabelecida);

  15. O princípio da proporcionalidade náo exige, portanto, que se dê assim uma primazia táo absoluta ao interesse do impugnante, com violaçáo, no entender da recorrente, dos interesses do filho;

  16. No plano da realidade e no plano jurídico, a filiaçáo social, a família social, é a que, em primeira linha, é chamada a desempenhar o papel fundamental de espaço de afectos, de criaçáo, de crescimento, formaçáo e desenvolvimento do indivíduo, libertando o Estado daquelas funçóes, que de outro modo seria chamado a desempenhar. A filiaçáo biológica, a família biológica, só por si, náo é garantia de desempenho aquele papel fundamental;

  17. Daí que, encontrando -se a paternidade já estabelecida, há que atender também aos interesses do pretenso filho, que podem ser os de manter o status quo que já detém. Donde, conceder ao impugnante da paternidade o direito de, a todo o...

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