Acórdão n.º 308/90, de 21 de Janeiro de 1991

Acórdão n.º 308/90 Processo n.º 234/89 Acordam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional: I 1 - Ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 281.º da Constituição da República, conjugado com o disposto no n.º 1 do artigo 54.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, veio o Provedor de Justiça requerer a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do n.º 2 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 282/76, de 20 de Abril, que dispõe que o pessoal do quadro de pessoal militarizado da Marinha (QPMM) fica sujeito ao foro militar e à disciplina militar, na parte aplicável a militares, em função das equivalências entre as suas categorias funcionais e os postos de militares da Armada estabelecidas em anexo ao mesmo diploma.

Invoca o Provedor de Justiça, no seu pedido, que o QPMM integra pessoal militarizado e não militar, como expressamente resulta da qualificação ínsita no mencionado decreto-lei, pelo que a aplicação do Regulamento de Disciplina Militar (RDM) e do Código de Justiça Militar (CJM) violaria o disposto nos artigos 27.º, n.º 3, alínea c), e 215.º, n.º 1, da Constituição na numeração decorrente da segunda revisão constitucional.

Em abono da sua tese refere o Provedor de Justiça que a aplicação ao pessoal do QPMM dos artigos 22.º e seguintes e 34.º e 36.º do RDM (que prevêem as penas de prisão disciplinar e prisão disciplinar agravada) viola o disposto no artigo 27.º, n.º 3, alínea c), da lei fundamental, porquanto este preceito constitucional apenas consagra a existência de prisão disciplinar como excepção à regra geral da privação da liberdade quando aplicada a militares e já não a agentes militarizados.

De igual forma refere o peticionante que, nos termos constitucionais, aos tribunais militares apenas compete o julgamento de crimes essencialmente militares (artigo 215.º, n.º 1) em cuja definição se pretende a tutela de bens jurídicos atinentes aos 'deveres militares', à 'segurança e disciplina das forças armadas' e a 'interesses militares da defesa nacional', o que pressupõe a sua aplicação em exclusivo a agentes que possuam o estatuto de militares e já não aos que sejam meros agentes militarizados.

2 - Instado a pronunciar-se sobre o pedido do Provedor de Justiça, o Primeiro-Ministro veio oferecer o merecimento dos autos.

Nada obstando ao conhecimento do pedido, cumpre decidir.

II 1 - O Decreto-Lei n.º 282/76 foi aprovado pelo Conselho da Revolução no uso dos poderes que lhe eram conferidos pelo artigo 6.º da Lei n.º 5/75, de 14 de Março, tendo sido promulgado pelo Presidente da República em 8 de Abril de 1976, publicado no Diário da República, 1.' série, de 20 de Abril do mesmo ano, e entrou em vigor, nos termos do seu artigo 29.º, no dia 1 do mês seguinte ao da sua publicação, logo no dia 1 de Maio de 1976.

O decreto-lei em causa criou o QPMM, revogando o Decreto-Lei n.º 190/75, de 12 de Abril, que havia criado o quadro do pessoal dos Serviços de Polícia e de Transportes da Marinha (QPSPTM), nele integrando determinados grupos de pessoal do antecedente quadro do pessoal civil do Ministério da Marinha (QPCMM), uma vez que se entendia, nas palavras deste último diploma, que as tarefas cometidas a essas categorias de pessoal justificavam melhor a sua inclusão num quadro de pessoal militarizado do que num quadro de pessoal civil.

Por seu turno, este QPCMM havia sido criado como tal pelo Decreto-Lei n.º 618/70, de 14 de Dezembro, tendo em vista a necessidade de estruturar o quadro do pessoal civil de carácter permanente cuja função consistia na execução dos serviços que normalmente não incumbiam ao pessoal militar, conforme resulta do disposto no artigo 1.º daquele diploma, e que até então, e de acordo com o disposto no Decreto-Lei n.º 49410, de 21 de Novembro de 1969, não constituía ainda um quadro único e comum às diferentes direcções e a outros órgãos dependentes do Ministério da Marinha.

Assim, e conforme resultava do n.º 3 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 618/70, de 14 de Dezembro, passaram a integrar o pessoal de secretaria, o pessoal de investigação, o pessoal técnico, o pessoal hospitalar, o pessoal de mecanografia, os desenhadores, os fotógrafos, o pessoal de pilotagem, o pessoal do Corpo de Polícia Marítima, do Corpo de Polícia dos Estabelecimentos de Marinha, os cabos-de-mar, os mateiros, o pessoal dos faróis, o pessoal do troço do mar, o pessoal do Aquário de Vasco da Gama, os bibliotecários-arquivistas, o pessoal do despacho, o pessoal da rede telefónica, o pessoal dos depósitos, o pessoal da taifa, os motoristas, contínuos, guardas de museu, serventes, costureiras e lavadeiras, o pessoal de mestrança e operários, compreendendo no seu conjunto 23 categorias profissionais incluídas num quadro único e comum às diferentes direcções e outros órgãos dependentes do Ministério da Marinha.

Este mesmo Decreto-Lei n.º 618/70, no seu artigo 8.º, dispunha que o pessoal do Corpo de Polícia Marítima, do Corpo de Polícia dos Estabelecimentos de Marinha e do troço do mar ficava sujeito ao RDM, na parte aplicável a militares, enquanto o restante pessoal do QPCMM ficava sujeito ao mesmo RDM, mas apenas na parte aplicável a civis. Acrescentava ainda o mencionado artigo 8.º que todo o pessoal do QPCMM responderia perante o Tribunal da Marinha por infracções cometidas no exercício das suas funções.

O Decreto-Lei n.º 190/75, de 12 de Abril, veio alterar esta situação, considerando que certas categorias do QPCMM, pela natureza das tarefas que desempenhavam, melhor deveriam ser incluídas num quadro de pessoal militarizado do que num quadro de pessoal civil. E assim, nos termos do seu artigo 1.º, criou um novo quadro, que denominou como quadro de pessoal dos Serviços de Polícia e de Transportes da Marinha, constituído por pessoal militarizado, compreendendo quatro grupos profissionais, a saber, o grupo do pessoal do Corpo de Polícia Marítima, o do Corpo de Polícia dos Estabelecimentos de Marinha, o dos cabos-de-mar e o do troço do mar (v.

artigo 2.º do mencionado Decreto-Lei n.º 190/75).

Definindo o regime disciplinar do pessoal deste novo quadro expressamente qualificado como de pessoal militarizado, o decreto-lei de 1975 dispôs, no n.º 2 do seu artigo 4.º, que 'o pessoal do QPSPTM fica sujeito ao foro militar e à disciplina militar, na parte aplicável a militares, atentas as equivalências estabelecidas no quadro anexo a este decreto-lei', quadro de equivalência este que estabelecia a correspondência para efeitos de vencimentos, penais e disciplinares entre as categorias funcionais do QPSPTM e diversos postos de militares da Armada.

Finalmente o Decreto-Lei n.º 282/76, de 20 de Abril, partindo da similitude funcional de outras categorias do pessoal do QPCMM, com as do pessoal integrado pelo Decreto-Lei n.º 190/75 no QPSPTM, veio alargar o âmbito deste quadro de pessoal militarizado, aditando-lhe duas novas categorias, a dos práticos da costa do Algarve e a dos faroleiros, modificando, por isso, a sua designação, que passou a ser a de QPMM.

Para efeitos disciplinares e de administração da justiça, este decreto-lei reproduziu no n.º 2 do seu artigo 4.º a norma do n.º 2 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 190/75, determinando assim que 'o pessoal do QPMM fica sujeito ao foro militar e à disciplina militar, na parte aplicável a militares, atentas as equivalências estabelecidas no quadro anexo a este decreto-lei', quadro este que, de igual forma, continha as correspondências para efeitos de vencimentos, disciplinares e penais entre as categorias do QPMM e diversos postos de militares da Armada.

2 - Em face deste percurso pela evolução legislativa atinente ao pedido do Provedor de Justiça parece poder concluir-se que as categorias funcionais que presentemente integram o QPMM originariamente integravam o QPCMM e, a partir de 1975, passaram a figurar num quadro expressamente considerado pela lei como integrando pessoal militarizado, solução que foi retomada pelo decreto-leiapreciando.

Mas importa, de igual modo, sublinhar que, independentemente da qualificação do quadro onde se encontrava integrado, desde 1970 o pessoal pertencente às categorias funcionais hoje constantes do QPMM, embora a títulos diferentes entre si, sempre esteve sujeito às regras disciplinares e ao foro cuja constitucionalidade o Provedor de Justiça vem agora questionar.

Nestes termos, a eventual violação da Constituição que o regime em causa prefigure dependerá essencialmente da natureza substantiva das soluções acolhidas na lei, sendo relativamente irrelevante o qualificativo escolhido pelo legislador para efeitos de caracterização do tipo de quadro de pessoal que em cada momento compreendeu as categorias funcionais que presentemente compõem o QPMM. É o que seguidamente passaremos a analisar.

3 - A evolução legislativa demonstra que as categorias funcionais que hoje integram o QPMM, em função da natureza das tarefas que lhe eram cometidas por lei, desde 1970, sempre se afastaram, no domínio disciplinar e do foro aplicáveis, do estatuto típico e característico do pessoal (civil) da Administração Pública, tendo tal peculiaridade conduzido à qualificação do mesmo como pessoal militarizado em dois diplomas anteriores à entrada em vigor da Constituição.

Ora, o que o Provedor de Justiça questiona é precisamente a admissibilidade constitucional de o pessoal em causa continuar a ser abrangido por esse especial regime disciplinar e de foro após a entrada em vigor da lei fundamental, em 25 de Abril de 1976. A reconhecer-lhe razão, estaríamos perante um caso de inconstitucionalidade superveniente, na medida em que seria com a entrada em vigor da Constituição de 1976 que a aplicação ao pessoal do QPMM do RDM e do CJM, na parte aplicável a militares, violaria a nossa lei fundamental.

4 - Como se viu, o diploma em causa foi aprovado, promulgado e publicado em momentos anteriores à entrada em vigor da Constituição de 1976, mas, por força do disposto no seu artigo 29.º, apenas produziu efeitos a partir do dia 1 de Maio de 1976, o que...

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