Acórdão n.º 1/91, de 28 de Fevereiro de 1991

Acórdão n.º 1/91 Processo n.º 377/90 Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional: I - O Presidente da República requereu ao Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 278.º, n.os 1 e 3, da Constituição da República e dos artigos 51.º, n.º 1, e 57.º, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, a apreciação preventiva da Constitucionalidade das normas dos artigos 10.º, n.os 2, 3 e 4, e 11.º do Decreto n.º 293/V da Assembleia da República, que aprova o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira e lhe foi enviado para promulgação.

O pedido vem fundamentado nos seguintes termos: O artigo 10.º, n.º 2, altera o regime constante do Estatuto Provisório da Região Autónoma da Madeira, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 318-D/76, de 30 de Abril (artigo 7.º, n.º 2), elevando de 3500 para 4000 e de 1750 para 2000 o número de recenseados, ou sua fracção, para eleger um deputado em cada um dos círculos eleitorais em que se divide a Região. Tal matéria foi objecto do Decreto da Assembleia da República n.º 99/V, cujo artigo 1.º foi declarado inconstitucional, em sede de fiscalização preventiva, por violação dos artigos 116.º, n.º 5, e 233.º, n.º 2, da Constituição da República pelo Acórdão n.º 183/88 do Tribunal Constitucional, de 3 de Agosto de 1988. Estava em causa quanto a tal preceito a violação do princípio da representação proporcional por aumento do número de círculos uninominais.

Desta feita, porém, o n.º 3 do artigo 10.º vem estipular que 'cada círculo elege sempre, pelo menos, dois deputados'. Procurou-se, desta forma, contornar a inconstitucionalidade oportunamente declarada de norma idêntica à que ora consta do n.º 2 do artigo 10.º Todavia, quanto à aplicação das duas referidas disposições, continuam a poder suscitar-se dúvidas de constitucionalidade em face dos mesmos artigos 116.º, n.º 5, e 233.º, n.º 2, da Constituição da República. Com efeito, poderemos, com esta solução, estar ainda mais distantes do respeito do princípio da proporcionalidade na conversão de votos em mandatos. E isto na medida em que um número reduzido de eleitores passa a eleger sempre dois deputados. De facto, podem estar a criar-se discrepâncias significativas com círculos maiores que beneficiem de idêntica representação. Ora, é necessário, para que haja proporcionalidade, estabelecer uma razão sensivelmente uniforme entre o número de eleitores e o número de eleitos, aplicável às diversascircunscrições.

No n.º 4 do artigo 10.º estipula-se, por outro lado, que 'haverá mais um círculo correspondendo aos cidadãos portugueses nascidos na Região e residentes fora dela em território nacional ou estrangeiro, o qual elegerá dois deputados'.

Neste caso, as dúvidas têm a ver com a consideração do critério do nascimento, e não da residência, para a elaboração de um recenseamento específico para a eleição da Assembleia Regional - além do recenseamento normal para a eleição de órgãos nacionais. Poderão estar neste ponto em causa princípios fundamentais do Estado democrático: como o da soberania popular e o da sua unidade e indivisibilidade (artigos 2.º e 3.º, n.º 1, da Constituição da República), e bem assim o da unidade do Estado, explicitado no artigo 6.º, n.º 1, da Constituição da República e presente no n.º 3 do artigo 228.º da lei fundamental.

As dúvidas que se colocam quanto ao artigo 10.º, n.º 4, do decreto da Assembleia da República são extensíveis ao artigo 11.º, onde se define quem tem capacidade eleitoral activa.

E diz-se, em conclusão: Deste modo, suscita-se a dúvida de saber se os n.os 2 e 3 do artigo 10.º do decreto acima identificado se conforma com os artigos 116.º, n.º 5, e 233.º, n.º 2, da Constituição da República e se o n.º 4 do artigo 10.º e o artigo 11.º estão de acordo com os artigos 2.º, 3.º, n.º 1, e 6.º, n.º 1, e n.º 3 do artigo 228.º da Constituição da República.

A referência à norma do artigo 228.º, n.º 3, da Constituição, constitui lapso manifesto: querer-se-á antes aludir à norma do artigo 227.º, n.º 3, que articula a autonomia regional com a integridade da soberania do Estado.

Notificado o Presidente da Assembleia da República, nos termos e para os efeitos do artigo 54.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, veio apenas oferecer o merecimento dos autos.

II - As normas.

As normas cuja apreciação se requer são as dos artigos 10.º, n.os 2, 3 e 4, e 11.º do Decreto n.º 293/V da Assembleia da República. Inscrevem-se no título II 'Órgãos regionais', capítulo I 'Assembleia Legislativa Regional', e dispõem assim: Art. 10.º - 1 - .....................................................................................................

2 - Cada um dos círculos referidos no número anterior elege um deputado por cada 4000 eleitores recenseados ou fracção superior a 2000.

3 - Cada círculo elege sempre, pelo menos, dois deputados.

4 - Haverá ainda mais um círculo, compreendendo os cidadãos portugueses nascidos na Região e residentes fora dela, em território nacional ou estrangeiro, o qual elegerá dois deputados.

5 - ....................................................................................................................

Art. 11.º - 1 - São eleitores nos círculos referidos no n.º 1 do artigo anterior os cidadãos portugueses inscritos no recenseamento eleitoral da respectiva área.

2 - São eleitores no círculo referido no n.º 4 do artigo anterior os cidadãos portugueses residentes na área desse círculo e que tenham nascido no território da região.

Analisar-se-á o sentido e alcance das normas transcritas, indagando da sua conformidade ou não à Constituição.

III - A fundamentação.

1 - Previamente, deverá levantar-se a questão de saber se o regime eleitoral regional pode integrar os estatutos das regiões autónomas ou se, ao contrário, ali se faz valer a reserva de lei comum da Assembleia da República [Constituição da República Portuguesa, artigo 167.º, alínea j)].

É que não só os estatutos têm uma natureza marcadamente organizatória, como a sua aprovação (e alteração) no Parlamento depende da iniciativa exclusiva das assembleias legislativas regionais (Constituição da República Portuguesa, artigo 228.º, n.os 1 e 4).

As normas sobre eleições regionais, regulando a escolha e composição dos órgãos próprios das regiões, apresentam uma vertente organizatória que afirma a sua conexão funcional com a matéria do Estatuto.

A eventual objecção à inclusão de normas sobre eleições em lei estatutária residirá na recusa da identidade da sua força jurídica e do seu regime de aprovação e alteração (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.' ed., 2.º vol., 1985, nota V ao artigo 228.º e nota III ao artigo 233.º; cf., ainda, Jorge Miranda, Funções, Órgãos e Actos do Estado, Lisboa, 1990, p. 302, e 'Estatuto da Região Autónoma da Madeira e eleição da Assembleia Regional, anotação ao Acórdão n.º 183/89 do TC', in O Direito, ano 121, 1989, II, pp. 355 e segs.).

Porém, a afirmação da possibilidade de os estatutos integrarem normas versando matéria eleitoral não implica necessariamente uma identidade de força jurídica e de regime de aprovação e alteração. Mas a resposta a este problema já não tem aqui oportunidade.

2 - A questão da constitucionalidade das normas do artigo 10.º, n.os 2 e 3, do Decreto n.º 293/V.

No quadro das disposições estatutárias que regulam a eleição para a Assembleia Legislativa Regional, o artigo 10.º do Decreto n.º 293/V vem definir os círculos eleitorais e os critérios que determinam o número de deputados a eleger: a cada município corresponde um círculo, que elege um deputado por cada 4000 eleitores recenseados ou fracção superior a 2000 (n.os 1 e 2).

Haverá sempre, pelo menos, dois deputados por cada círculo (n.º 3).

A determinação da norma do artigo 10.º, n.º 3, do Decreto n.º 293/V, de que 'cada círculo elege sempre, pelo menos, dois deputados', não convoca, em primeira mão, ao contrário do que se pretende no pedido, o princípio da representação proporcional, mas um outro, o princípio da igualdade do sufrágio ou da igualdade eleitoral dos cidadãos.

Com efeito, o problema da igualdade do voto na repartição dos mandatos tem, em primeira linha, que ver com o princípio da igualdade, na sua dupla determinação de atribuição de igual peso numérico ao voto (Zählwert) e de igual valor quanto ao resultado (Erfolgswert), e não com o princípio da representação proporcional. E tanto é assim que, em sistemas jurídicos onde foi deferida ao legislador ordinário a tarefa de conformar os princípios básicos do direito eleitoral, tem a jurisprudência constitucional entendido que a igualdade de voto na repartição dos mandatos não depende em grau decisivo da adopção do sistema maioritário ou proporcional de representação, sendo compatível com qualquer dos dois (é o caso do direito constitucional alemão, conforme informa Konrad Hesse, Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, 16.' ed., Heidelberga, 1988, p. 57, máxime nota 14, referindo a jurisprudência constitucional; cf., igualmente, Richter/Schuppert, Casebook Verfassungsrecht, Munique, 1987, pp. 451 e segs.).

A observância do princípio da igualdade do voto na repartição dos mandatos não coenvolve a adopção de um ou outro dos sistemas de representação.

Todavia, o legislador constitucional português optou pelo sistema de representação proporcional e ligou-o de tal modo à ideia de genuinidade da representação democrática que o erigiu em limite material de revisão da Constituição [Constituição da República Portuguesa, artigo 288.º, alínea h)].

Será, pois, no quadro do sistema de representação por que se optou que terá de ser aferido o grau de respeito pelo princípio da igualdade do sufrágio.

A divisa de Mirabeau, de que 'o Parlamento deve ser um mapa reduzido do povo', é um forte elemento caracterizador da tradição do constitucionalismo republicano. Na Constituição Portuguesa de 1976, a ideia de representação no Parlamento como 'espelho da sociedade política' (Leibholz) tem primazia na conformação do...

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