Acórdão n.º 61/2004, de 27 de Fevereiro de 2004

Acórdão n.º 61/2004 Processo n.º 471/01 Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional: I - Relatório. - 1 - O Procurador-Geral da República, no uso da competência prevista no artigo 281.º, n.º 2, alínea e), da Constituição da República Portuguesa (CRP), requereu a este Tribunal Constitucional que fosse apreciada e declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade orgânica e material, por violação dos artigos 165.º, n.º 1, alínea t), e 47.º, n.º 2, da CRP, da norma constante do artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 342/99, de 25 de Agosto (diploma que criou o Instituto Português de Conservação e Restauro e extinguiu o Instituto de José de Figueiredo), que dispõe: 'Artigo 22.º Pessoal técnico especializado 1 - O pessoal técnico superior e o pessoal destinado a desempenhar funções especializadas em investigação laboratorial para a conservação e restauro poderá ser admitido em regime de contrato individual de trabalho, mediante despacho do Ministro daCultura.

2 - O pessoal a que se refere o número anterior beneficia do regime geral da previdência e não fica abrangido pelo estatuto da função pública.' São os seguintes os fundamentos do pedido: 'Por força do preceituado no artigo 165.º, n.º 1, alínea t), da CRP, é da exclusiva competência da Assembleia da República - salvo autorização legislativa outorgada ao Governo - legislar sobre a matéria referente às 'bases do regime e âmbito da função pública'.

Os princípios fundamentais do regime de constituição, modificação e extinção da relação jurídica de emprego na Administração Pública são definidos pelo Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho, e pelo Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, que se configuram como verdadeira 'lei quadro' nesta matéria, abrangendo a disciplina básica neles estabelecida grande parte da Administração - mesmo descentralizada integrada pelos institutos públicos nas modalidades de serviços personalizados do Estado e de fundações públicas (cf. Acórdãos n.os 36/96 e 129/99, do Tribunal Constitucional).

Na verdade, os referidos diplomas estabelecem, de forma taxativa, as formas de constituição da relação jurídica de emprego na Administração Pública, apenas admitindo as formas de contrato de pessoal, nas modalidades de contrato administrativo de provimento e de contrato de trabalho a termo certo, este último só admissível nos casos especialmente previstos na lei.

Tal tipificação taxativa das formas de constituição da relação jurídica de emprego na Administração Pública tem o seu âmbito institucional definido em torno dos serviços e organismos da Administração Pública - incluindo os institutos públicos nas modalidades de 'serviços personalizados do Estado' e de 'fundos públicos' (artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 184/89) -, sendo vedado a tais serviços ou organismos a constituição de relações de emprego com carácter subordinado por forma diferente da prevista nos referidos diplomas legais.

O Instituto Português de Conservação e Restauro é uma pessoa colectiva de direito público, dotada de autonomia científica, administrativa e patrimonial, sujeita à tutela do Ministro da Cultura (artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 342/99), configurando-se, atentas as suas atribuições e estrutura orgânica e funcional, como um instituto público, na modalidade de serviço personalizado do Estado, na área do Ministério da Cultura, sujeito a um regime de direito administrativo e totalmente desprovido de natureza empresarial, e situando-se, por isso, no 'âmbito institucional' definido pelo artigo 2.º do citado Decreto-Lei n.º 184/89.

A admissibilidade de celebração de contratos de trabalho por tempo indeterminado, sujeitos ao regime legal genericamente vigente em direito laboral, colide frontalmente com o princípio da taxatividade das formas de constituição da relação de emprego na Administração Pública e com a proscrição da figura do contrato de trabalho por tempo indeterminado, resultante da disciplina básica instituída pelos citados Decretos-Leis n.os 184/89 e 427/89.

Integrando-se a norma questionada em diploma editado pelo Governo, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição, sem precedência de autorização legislativa, padece de inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea t), da CRP.

Por outro lado, a norma a que se reporta o presente pedido, ao prever a possibilidade de constituição de uma relação jurídica de emprego na Administração Pública sem instituir um procedimento justo de recrutamento e selecção dos candidatos à contratação definitiva, fazendo assentá-la em mero e discricionário despacho ministerial, não precedido de adequada selecção e concurso dos interessados, colide ainda com o n.º 2 do artigo 47.º da CRP, enfermando de inconstitucionalidade material.

A recente jurisprudência do Tribunal Constitucional - expressa nomeadamente nos Acórdãos n.os 689/99 e 368/00 - acentuou a relevância atribuível à regra constitucional do concurso como forma privilegiada de acesso à função pública.' 2 - Notificado do pedido, o Primeiro-Ministro apresentou resposta, sustentando a não inconstitucionalidade da norma impugnada, com base em argumentação sintetizada nas seguintes conclusões: 'O pessoal técnico superior e o pessoal destinado a desempenhar funções especializadas em investigação laboratorial para a conservação e restauro, a que se refere o artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 342/99, virá a adquirir, por provimento contratual, a qualidade de 'agente administrativo', mas não a de 'funcionário público'.

A opção pelo recurso ao regime do contrato individual de trabalho, quando a necessidade e as circunstâncias de serviço assim a exigirem, em nada colide com os direitos fundamentais dos trabalhadores constitucionalmente consagrados e os princípios próprios de um Estado de direito democrático.

No caso do Instituto Português de Conservação e Restauro, cujo substrato, o 'serviço público', consiste no cumprimento das responsabilidades que incumbem ao Estado no domínio da conservação e restauro dos bens culturais de reconhecido valor histórico, artístico, técnico e científico, um objectivo constitucional, pode a lei determinar que a respectiva gestão, incluindo a gestão de pessoal, obedeça a um regime de direito administrativo ou a um regime de direito comum, maxime empresarial, ou aos dois, em sectores de gestão diferenciados.

A norma não viola a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República [artigo 165.º, n.º 1, alínea t), da CRP], posto que em nada interfere com as 'bases do regime e âmbito da função pública'.

O candidato a prover, caso o regime escolhido seja o do contrato individual de trabalho, adquire a qualidade de 'agente administrativo', mas não de 'funcionário público'.

Não fica assim abrangido pelo disposto nos Decretos-Leis n.os 184/89 e 427/89, que tem por objecto o regime de constituição, modificação e extinção da relação jurídica de emprego público, maxime a remuneração e gestão de pessoal da função pública.

Consequentemente, o 'teor literal' e o 'âmbito da norma' em nada ofendem o disposto no artigo 47.º, n.º 2, da CRP, não padecendo por isso do vício de inconstitucionalidade material.

Não está aqui em causa o 'direito de acesso à função pública' com as suas notas de 'igualdade' e 'liberdade', e 'em regra por via de concurso'.' 3 - Debatido o memorando apresentado, nos termos do artigo 63.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), pelo Presidente do Tribunal, e fixada a orientação sobre as questões a resolver, procedeu-se à distribuição do processo, cumprindo agora formular a decisão.

II - Fundamentação. - 4 - A norma impugnada: 4.1 - O Decreto-Lei n.º 342/99, de 25 de Agosto, criou o Instituto Português de Conservação e Restauro (IPCR), que sucedeu na universalidade dos direitos e obrigações do Instituto de José de Figueiredo, então extinto (artigo 25.º, n.os 1 e 2), e cujo pessoal do quadro transitou para o quadro do novo instituto (artigo 23.º, n.º 1).

O Instituto de José de Figueiredo fora reestruturado pelo Decreto-Lei n.º 383/80, de 19 de Setembro, que o qualificou como 'organismo do Estado, dependente da Secretaria de Estado da Cultura, através do Instituto Português do Património Cultural' (artigo 1.º), estatuindo que a nomeação do director e o provimento dos chefes de divisão se processasse nos termos do Decreto-Lei n.º 191-F/79, de 26 de Junho (artigos 22.º, 24.º, 25.º e 26.º), que os lugares de técnico superior e técnico auxiliar de BAD fossem providos nos termos do Decreto-Lei n.º 280/79, de 10 de Agosto (artigo 27.º), que o pessoal das carreiras de conservação e restauro fosse provido nos termos do Decreto-Lei n.º 245/80, de 22 de Julho (artigo 28.º), e que os restantes lugares do quadro fossem preenchidos nos termos da lei geral (artigo 29.º).

O Decreto-Lei n.º 342/99 qualifica o IPCR como 'uma pessoa colectiva de direito público dotada de autonomia científica, administrativa e património próprio', 'tutelado pelo Ministro da Cultura' (artigo 1.º, n.os 1 e 2), tendo por objecto 'assegurar o desenvolvimento das medidas de política e o cumprimento das obrigações do Estado no domínio da salvaguarda do património cultural móvel e integrado e do desenvolvimento da ciência da conservação', 'promover, assegurar e divulgar a investigação em conservação', 'promover e apoiar projectos e acções de estágio, formação inicial e formação contínua através da concessão de bolsas de estudo, no País e no estrangeiro, bem como através da concessão de subsídios e comparticipações para o efeito', 'certificar a qualificação de entidades públicas ou privadas, colectivas ou individuais, que exercem actividades de conservação e restauro do património cultural móvel e integrado', 'promover a conservação aplicada ao património cultural móvel e integrado, através de uma política de contratualização com outras pessoas...

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