Acórdão n.º 7/87, de 09 de Fevereiro de 1987

Acórdão n.º 7/87 Processo n.º 302/86 1 - O Conselho de Ministros aprovou em 4 de Dezembro de 1986 o decreto registado sob o n.º 754/86, que, no uso da autorização conferida pela Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro, aprovou o Código de Processo Penal (CPP) publicado em anexo e revogou o CPP aprovado pelo 'Decreto-Lei' n.º 16489, de 15 de Fevereiro de 1929, com a redacção em vigor.

Tendo-o recebido em 12 desse mês para promulgação como decreto-lei, o Presidente da República (PR) requereu ao Tribunal Constitucional (T. Const.), ao abrigo do disposto nos n.os 1 e 3 do artigo 278.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e nos artigos 51.º, n.º 1, e 57.º, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, a apreciação preventiva da constitucionalidade do artigo 1.º do referido diploma, na parte em que aprovou os artigos 108.º, n.º 2, alínea b), 135.º, n.os 2 e 3, 143.º, n.º 4 [conjugado com o artigo 61.º, n.º 1, alínea e)], 174.º, n.os 3 e 4, 177.º, n.º 2, 178.º, n.º 3, 187.º, n.º 1, 190.º, 199.º, n.os 1 e 2, 200.º, 250.º, n.º 3, 251.º, n.º 1, 252.º, n.º 3, 263.º, 270.º, n.º 1, 281.º, 286.º, n.º 2, e 337.º, n.os 1 e 3, todos do Código, com os seguintes fundamentos:

  1. O artigo 108.º, n.º 2, alínea b), ao conferir ao Conselho Superior da Magistratura (CSM) competência para decidir o pedido de aceleração de processo atrasado, embora atenuado pelo disposto na alínea d) do n.º 5 do artigo 109.º, parece contender com o disposto no artigo 208.º da CRP (independência dos tribunais); b) O artigo 135.º, n.os 2 e 3, na parte respeitante à quebra do segredo profissional dos jornalistas, parece violar o disposto no n.º 3 do artigo 38.º da CRP; c) O artigo 143.º, n.º 4, conjugado com o artigo 61.º, n.º 1, alínea e), in fine, na medida em que limita, quanto a certos crimes, o direito de comunicação entre o arguido e o seu defensor, parece violar o disposto no n.º 3 do artigo 32.º da CRP; d) O artigo 174.º, n.os 3 e 4, ao permitir revistas e buscas, efectuadas, sem autorização prévia do juiz, por órgãos de polícia criminal, parece contender com o disposto na segunda parte do n.º 6 do artigo 32.º da CRP, em matéria de obtenção de provas, e, quanto às buscas, também com o disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 34.º da CRP (inviolabilidade do domicílio); e) O artigo 177.º, n.º 2, ao permitir buscas domiciliárias sem prévia autorização judicial, parece violar o disposto no citado n.º 2 do artigo 34.º; f) O artigo 178.º, n.º 3, ao permitir que as apreensões sejam feitas por despacho da 'autoridade judiciária', ou mesmo por órgãos de polícia criminal, parece violar o disposto no n.º 4 do citado artigo 32.º e no n.º 1 do artigo 62.º da CRP; g) O artigo 187.º, n.º 1, ao permitir escutas telefónicas com um âmbito muito amplo, e o artigo 190.º, ao mandar aplicar o disposto nesse preceito às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, poderão ferir o n.º 1 do artigo 26.º, e, logo, os n.os 2 e 3 do artigo 18.º da CRP; h) O artigo 199.º, n.º 1, sobre proibição de permanência, de ausência e de contactos, parece ferir direitos fundamentais, designadamente os direitos de deslocação, de fixação e de saída do território nacional, consignados no artigo 44.º da CRP, podendo configurar ainda uma restrição desproporcionada desses direitos e ferindo também, nessa medida, os n.os 2 e 3 do citado artigo 18.º, e o n.º 2 do mesmo artigo parece violar o n.º 4 do citado artigo 32.º; i) o artigo 200.º, sobre suspensão do exercício de funções, de profissão e de direitos, parece violar o direito ao trabalho e à própria capacidade civil, consignados, respectivamente, no n.º 1 do artigo 59.º e no n.º 1 do artigo 26.º da CRP; j) O artigo 250.º, n.º 3, ao fixar um tempo de permanência compulsória até seis horas no posto policial, para os fins aí previstos, pode violar o disposto no n.º 2 do artigo 27.º da CRP, visto parecer configurar um caso de prisão preventiva fora dos casos admitidos constitucionalmente; l) O artigo 251.º, n.º 1, ao permitir para além dos casos previstos no artigo 174.º, n.º 4, a realização de revistas e buscas, sem prévia autorização judicial, pelos órgãos de polícia criminal, parece ofender o disposto no n.º 4 do citado artigo 32.º, bem como o direito à reserva da intimidade da vida privada, consagrado no n.º 1 do artigo 26.º; m) O n.º 3 do artigo 252.º, permitindo a suspensão, por ordem de órgãos de polícia criminal, da remessa da correspondência, parece violar o mesmo n.º 4 do artigo 32.º; n) O artigo 263.º, ao cometer a direcção do inquérito ao Ministério Público (MP), parece ferir o disposto no n.º 4 do artigo 32.º, já atrás referido, visto as diligências processuais que cabem nessa designação serem materialmente instrutórias e, portanto, da competência de um juiz, e, por outro lado, parece não se harmonizar com as funções constitucionais daquela magistratura, tais como são definidas no artigo 224.º, n.º 1, da CRP; e essa inconstitucionalidade tem como consequência a inconstitucionalidade do artigo 270.º; o) O artigo 281.º, ao permitir ao MP, nos casos nele previstos, a suspensão do processo, parece violar os mesmos preceitos do n.º 4 do artigo 32.º e do n.º 1 do artigo 224.º, na medida em que subtrai à competência do juiz de instrução a disponibilidade do processo; p) O n.º 2 do artigo 286.º, ao conferir carácter facultativo à instrução, parece ferir o mesmo artigo 32.º, n.º 4; q) Os n.os 1 e 3 do artigo 337.º (efeitos da contumácia) parece contenderem com o disposto no n.º 1 do artigo 26.º e com o n.º 1 do artigo 62.º da CRP e, logo, com os n.os 2 e 3 do artigo 18.º Admitido o pedido, foi notificado o Governo, na pessoa do Primeiro-Ministro (PM), para sobre ele se pronunciar.

    Na resposta, começa-se por afirmar que 'a estrutura normativa do Código está em preocupada sintonia com as regras (e com os valores que elas implicam, e que lhe subjazem) da Constituição', prevalecendo a ideia da 'concordância prática (dir-se-ia, praticável) dos direitos e garantias constitucionalmente inscritos com a trilogia de objectivos que definem o moderno processo penal: o da verdade material e da justiça; o da defesa dos direitos individuais; a recuperação da paz jurídica dos cidadãos'. Em seguida analisam-se, caso a caso, as 'dezoito aventadas hipóteses de colisão com as normas constitucionais', concluindo-se que 'em nenhuma delas o receio é justificado'.

    A argumentação deduzida na resposta para cada caso será considerada na apreciação que irá ser feita de cada uma das normas arguidas de inconstitucionalidade.

    Cumpre decidir.

    2 - Na ideia do direito processual criminal relevam, segundo o Prof. Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal (1967-1968), I, n.º 1, três momentos decisivos: a), 'o direito processual criminal tem por objecto intencional (ocupa-se e visa dominar) um acto - que é um processo, uma actividade desenvolvida dinamicamente segundo uma unidade intencional - de aplicação-realização concreta de um certo direito (do direito criminal)'; b), 'aplicação concreta do direito, que deverá ser actuada de acordo com os princípios do Estado de direito, i. é, de acordo com a estrutura orgânico-institucional própria de uma comunidade de direito através de um órgão jurisdicional'; c), 'aplicação-actuação jurisdicional que se processa em termos (de modo ou segundo as 'formas') que permitam o acesso à verdade e realizem a justiça'.

    Os dois primeiros momentos - continua o autor - traduzem, no fundo, o princípio da jurisdição, pois a jurisdição é susceptível de ser considerada funcionalmente, a), e organicamente, b); o terceiro momento explicita o momento especificamente processual da jurisdição.

    A aplicação concreta do direito é, para o mesmo autor, ob. cit., loc. cit., n.º 2, 'a concreta realização do justo, na perspectiva do direito que se visa aplicar'.

    Quanto ao princípio da jurisdição, escreve: A concreta aplicação autoritária do direito deverá competir unicamente a órgãos independentes, com uma estrita intenção de objectividade e que obedeçam apenas ao Direito (i. é, que se proponham tão-só realizar o Direito).

    Ao poder-dever da jurisdição, que ao Estado compete em exclusivo, 'corresponde um direito dos cidadãos: o direito a que o Estado exerça esse poder segundo o verdadeiro princípio da jurisdição - pois só assim ficam garantidas a liberdade e a personalidade das pessoas contra as prepotências do poder político'.

    Acerca da intencionalidade específica do processo criminal, diz finalmente que este é orientado por duas finalidades específicas. Por um lado, 'propõe-se uma estrutura processual que permita, eficazmente, tanto averiguar e condenar os culpados criminalmente como defender e salvaguardar os inocentes de perseguições e condenações injustas'; por outro lado, deverá orientar-se 'pela válida conciliação de dois princípios ético-jurídicos fundamentais: o princípio da reafirmação, defesa a reintegração da comunidade ético-jurídica - i. é, do sistema de valores ético-jurídicos que informam a ordem jurídica, e que encontra a sua tutela normativa no direito material criminal - e o princípio do respeito e garantia da liberdade e dignidade dos cidadãos, i. é, os direitos irredutíveis da pessoa humana'.

    Ensina, por sua vez, o Prof. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.º vol., reimpressão, 1984, § 2, II, 1: Deste modo o processo penal constitui um dos lugares por excelência em que tem de encontrar-se a solução do conflito entre as exigências comunitárias e a liberdade de realização da personalidade individual. Aquelas podem postular, em verdade, uma 'agressão' na esfera desta; agressão a que não falta a utilização de meios coercivos (prisão preventiva, exames, buscas, apreensões) e que mais difícil se torna de justificar e suportar por se dirigir, não a criminosos convictos, mas a meros 'suspeitos' - tantas vezes inocentes - ou mesmo a 'terceiros' (declarantes, testemunhas e até pessoas sem qualquer participação processual).

    Daqui que o interesse comunitário na prevenção e...

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