Acórdão n.º 1146/96, de 20 de Dezembro de 1996

Acórdão n.º 1146/96 - Processo n.º 338/94 Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional: I - Relatório 1 - Um grupo de deputados à Assembleia da República requereu ao Tribunal Constitucional, ao abrigo dos artigos 281.º, n.º 1, alínea a), e 2, alínea f), da Constituição e 51.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro), a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de Agosto (diploma que define o regime jurídico da extradição).

O pedido alicerça-se nos seguintes fundamentos: 'a) Com o Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de Agosto, Portugal passou a dispor de um diploma regularador de todo o tipo de situações de extradição para e de qualquer país, tendo a aplicação de tal diploma sido tornada extensiva ao território de Macau. O diploma em causa admitia a extradição passiva de criminosos, mesmo quando a lei do Estado requisitante previa a pena de morte ou de prisão perpétua, desde que esse Estado oferecesse a garantia de que essas penas não eram efectivamente aplicadas; b) Com a entrada em vigor, em 1976, da nova Constituição da República foi elevado à dignidade constitucional um novo conjunto de direitos fundamentais.

Era esse o corolário lógico do Estado de direito democrático tornado possível pela Revolução de 25 de Abril de 1974. O instituto da extradição não podia, por isso, estar ausente do novo normativo constitucional, que ficou consagrado no artigo 23.º Esta matéria recebeu então amplo consenso, por configurar a materialização de um pensamento penalista de profundas tradições na sociedade e no direito portugueses que recusa a aplicação da pena capital. As sucessivas revisões da Constituição de 1976 mantiveram inalterado, como era previsível, o total consenso em torno desta matéria. O actual artigo 33.º, n.º 3, estabelece taxativamente que `não há extradição por crimes a que corresponda a pena de morte segundo o direito do Estado requisitante'.

A partir de então é clara a impossibilidade de extradição quando pelo direitodo Estado requisitante seja aplicável a pena de morte. Este tem sido, aliás, o entendimento de todos os autores que se têm pronunciado sobre esta matéria; c) Posteriormente à Constituição de 1976, Portugal ratificou a Convenção Europeia sobre Extradição, datada de 13 de Dezembro de 1957. Essa Convenção reconhecia apenas como casos de recusa obrigatória de extradição os crimes de natureza política, religiosa ou rácica, figurando, assim, entre os casos de recusa facultativa aqueles em que o crime possa ser punido com a pena capital. Perante a situação em que a ratificação vinculava a um articulado que colidia com o texto constitucional, que define uma recusa obrigatória de extradição para os crimes puníveis com a pena de morte, Portugal usou, à semelhança de outros países, a faculdade concedida pelo artigo 26.º da Convenção, formulando uma ressalva ao seu artigo 11.º, invocando para tal o artigo 33.º, n.º 3, da Constituição Portuguesa.

Na sequência dessa ratificação, foi publicado em Portugal o Decreto-Lei n.º 43/91, de 22 de Janeiro, sobre a cooperação judiciária internacional em matéria penal. No preâmbulo desse diploma o legislador afirma claramente que `a lei vigente sobre extradição foi entretanto inconstitucionalizada em certos pontos essenciais pela Constituição da República, entrada em vigor posteriormente à sua introdução na ordem jurídica interna'; d) Assim, o procedimento imediato deveria ter sido a extensão a Macau da nova legislação da República, removendo a aplicabilidade nesse território sob administração portuguesa do Decreto-Lei n.º 437/75, inconstitucionalizado desde a aprovação do texto constitucional. Tal não foi feito, sendo necessário corrigir essa lacuna em sede própria. Entretanto, porém, e porque o referido diploma legal de 1975 tem vindo recentemente a ser aplicado em Macau, torna-se necessário requerer a fiscalização sucessiva da constitucionalidade do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 437/75, que continua a regular, naquele território, o instituto da extradição.' 2 - Notificado o Primeiro-Ministro, nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, não foi apresentada qualquer resposta dentro do prazo legal.

3 - Posteriormente, veio o Procurador-Geral-Adjunto em funções no Tribunal Constitucional requerer a este Tribunal, com base no disposto nos artigos 281.º, n.º 3, da Constituição e 82.º da Lei do Tribunal Constitucional, a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de Agosto, na parte em que permite a extradição por crimes puníveis no Estado requerente com a pena de morte, havendo garantia da sua substituição.

Como fundamento do seu pedido invoca o procurador-geral-adjunto a circunstância de aquela norma ter sido julgada inconstitucional, por violação do n.º 3 do artigo 33.º da Constituição, através dos Acórdãos n.º 417/95 (publicado no Diário da República, 2.' série, n.º 266, de 17 de Novembro de 1995), 430/95 e 449/95 (ambos inéditos). No requerimento dirigido a este Tribunal - que vem instruído com cópia dos três arestos citados - sublinha aquele representante do Ministério Público que há interesse relevante de ordem prática no conhecimento do pedido, já que tal norma permanece em vigor, circunscrita embora ao território de Macau.

4 - Notificado o Primeiro-Ministro para se pronunciar sobre o pedido do procurador-geral-adjunto em funções no Tribunal Constitucional, respondeu ele, requerendo, nos termos do disposto no artigo 64.º da Lei do Tribunal Constitucional, a incorporação do pedido no processo n.º 338/94, pendente neste Tribunal.

5 - O requerimento do procurador-geral-adjunto em funções no Tribunal Constitucional, com o objecto e os fundamentos acima assinalados, bem como a resposta que sobre ele recaiu do Primeiro-Ministro, passaram a integrar os autos do processo de fiscalização abstracta n.º 719/95 do Tribunal Constitucional.

Neste processo n.º 719/95, lavrou o Presidente do Tribunal Constitucional o seguinte despacho: 'Na precedente resposta, adverte o Sr. Primeiro-Ministro para o facto de se achar pendente neste Tribunal o processo n.º 338/94, versando sobre a mesma norma a que respeitam os presentes autos, requerendo, em consequência, a incorporação deles nesse outro processo.

É de facto assim, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 64.º da Lei do Tribunal Constitucional, determino tal incorporação. E isto, porque também não vejo obstáculo a tanto na circunstância de ora se estar perante um pedido de declaração de inconstitucionalidade, formulado ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 281.º da Constituição e no artigo 82.º daquela lei: se, a tal respeito, algo pode extrair-se desta última disposição, será, se bem julgo, antes o contrário.' 6 - Tudo visto e ponderado, cumpre, então, apreciar e decidir a questão de constitucionalidade colocada a este Tribunal nos requerimentos do grupo de deputados à Assembleia da República e do procurador-geral-adjunto em funções no Tribunal Constitucional.

II - Fundamentos 7 - O actual ordenamento jurídico do território de Macau é constituído por normas com origem e âmbito de aplicação diversos.

Quanto à sua origem, podemos distinguir entre normas que provêm dos órgãos de governo próprio do território de Macau, nos termos dos artigos 5.º e 16.º, n.º 1, alínea c), do Estatuto Orgânico de Macau (aprovado pela Lei n.º 1/76, de 17 de Fevereiro, com as alterações que lhe foram introduzidas pelas Leis n.º 53/79, de 14 de Setembro, 13/90, de 10 de Maio, e 23-A/96, de 29 de Julho), normas que dimanam dos órgãos de soberania da República Portuguesa e normas que têm a sua origem na comunidade internacional ('rectius', nas relações entre os seus sujeitos) - cf. o artigo 3.º, n.º 2 e 3, do Estatuto Orgânico de Macau.

No que toca ao seu âmbito de aplicação, é possível distinguir entre normas vigentes apenas no território de Macau - as que têm origem neste, as que, emanando dos órgãos de soberania da República Portuguesa, se destinavam a vigorar só no território de Macau (ou só no território de Macau e noutros territórios do antigo ultramar português) e aquelas que, tendo sido elaboradas para produzir efeitos no território português e no território de Macau, deixaram de vigorar naquele, mas não neste - e normas simultaneamente vigentes em Portugual e em Macau.

A norma questionada no caso sub judicio - a norma constante do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de Agosto, na parte em que permite a extradição por crimes puníveis no Estado requerente com a pena de morte, havendo garantia da sua substituição [de facto, apesar de o pedido de declaração de inconstitucionalidade subscrito pelo grupo de deputados à Assembleia da República não distinguir entre os vários números e alíneas do artigo 4.º daquele diploma legal e parecer, por isso, ser dirigido a todas as normas constantes deste preceito, depreende-se da sua fundamentação que está apenas em causa a norma da alínea a) do seu n.º 1 e tão-só na parte em que permite a extradição por crimes puníveis no Estado requerente com a pena de morte, havendo garantia da sua substituição] - tem a sua fonte num acto legislativo de um órgão de soberania da República Portuguesa, mas tem o seu âmbito de aplicação circunscrito ao território de Macau. Com efeito, o Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de Agosto - que foi tornado extensivo ao ordenamento jurídico do território de Macau pelo Despacho Normativo n.º 218/77, da Presidência do Conselho de Ministros, publicado no Diário da República, 1.' série, n.º 201, de 11 de Novembro de 1977, e, em consequência, publicado no Boletim Oficial de Macau, n.º 47, de 19 de Novembro de 1977 -, foi revogado e substituído pelo Decreto-Lei n.º 43/91, de 22 de Janeiro (cf. o artigo 155.º), mas este diploma condensador do regime da cooperação judiciária internacional...

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