Acórdão n.º 326/86, de 18 de Dezembro de 1986

Acórdão n.º 326/86 Processo n.º 254/86 Acordam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional: I Relatório 1 - O Ministro da República para a Região Autónoma dos Açores vem, ao abrigo do disposto no artigo 278.º, n.º 2, da Constituição, requerer a apreciação preventiva da constitucionalidade de todas as normas do Decreto n.º 19/86, aprovado pela Assembleia Regional dos Açores em 10 de Outubro de 1986, alegando que elas violam o artigo 229.º, alínea a), da lei fundamental. E violam-no - diz - pelas seguintes razões: a) Embora a Segurança Social conste do respectivo estatuto como matéria de interesse específico para a Região, a verdade é que, incumbindo ao Estado organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado, não pode tal matéria ser assim qualificada; b) A definição das bases gerais da Segurança Social constitui, de resto, matéria da competência exclusiva da Assembleia da República, a qual sobre ela já produziu a Lei n.º 28/84, de 14 de Agosto; c) O artigo 84.º desta Lei n.º 28/84 dispõe que 'a presente lei é aplicável às Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, sem prejuízo da regulamentação própria em matéria de organização e funcionamento e da regionalização dos serviços de segurança social', mas essa regulamentação deve ser editada pelas assembleias regionais, e não pelos governos regionais; d) Ora, no decreto submetido à apreciação deste Tribunal, a Assembleia Regional dos Açores, em vez de usar o poder regulamentar que lhe é conferido pelas disposições conjugadas dos artigos 229.º, alínea b), e 234.º da Constituição e 84.º da citada Lei n.º 28/84, invocou a alínea a) do artigo 229.º da lei fundamental, assim pretendendo legislar ex novo sobre a matéria, ou seja, 'em pé de igualdade com a Assembleia da República'; e) E, para além disso, impôs ao Governo Regional a tarefa de regulamentar o seu próprio diploma - o que contraria os artigos 114.º e 234.º da Constituição; Mais ainda: 'no tratamento da matéria sobre que dispõe, parece afastar o que, nos termos da Lei n.º 28/84, se refere ao orçamento da Segurança Social no seu artigo 49.º, n.º 1, e aos financiamentos previstos nos artigos 54.º e 55.º'; g) Finalmente: 'a equiparação, a nível regional, dos órgãos e instituições criados a nível nacional conduz ao entendimento de que, na Região, estas instituições não existem'.

2 - Notificado o Presidente da Assembleia Regional dos Açores para responder, veio ele fazê-lo, dizendo, em síntese: a) O decreto submetido a controle de constitucionalidade estabelece a organização e o funcionamento das instituições regionais de segurança social, reformulando a disciplina estabelecida em diplomas regionais anteriores; b) E fá-lo respeitando integralmente os princípios estabelecidos na Lei n.º 28/84; c) A matéria sobre que versa o decreto é da exclusiva competência dos órgãos de governo próprio da Região; d) É do Governo Regional a competência para regulamentar a legislação regional.

3 - Cumpre agora decidir, começando por identificar o thema decidendum - o que impõe se proceda à interpretação do artigo 84.º da Lei n.º 28/84, de 14 de Agosto ('Da Segurança Social'), que dispõe como segue: Art. 84.º A presente lei é aplicável às Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, sem prejuízo de regulamentação própria em matéria de organização e funcionamento e da regionalização dos serviços de segurança social.

Da fundamentação aduzida pelo requerente resulta que ele vê na norma acabada de transcrever a atribuição às assembleias regionais do encargo de emitirem regulamentos de execução da Lei n.º 28/84. A Assembleia Regional dos Açores viu aí, ao invés, um espaço aberto ao seu poder legislativo.

Pois bem: a Lei n.º 28/84 define 'as bases em que assenta o sistema de segurança social previsto na Constituição e a acção social prosseguida pelas instituições de segurança social, bem como as iniciativas particulares não lucrativas de fins análogos aos daquelas instituições' (artigo 1.º). E, para além disso, no artigo 84.º, acabado de transcrever, dispôs que o regime que instituiu é aplicável nas regiões autónomas, 'sem prejuízo de regulamentação própria em matéria de organização e funcionamento e da regionalização dos serviços de segurança social'.

Isto significa que, nessas áreas - ou seja, em matéria de organização e funcionamento dos serviços de segurança social e da respectiva regionalização -, o legislador parlamentar deixou um espaço em branco, aberto à intervenção do legislador regional. Tal espaço só pode ser preenchido pela edição de um decreto legislativo regional, pois se trata de editar normação inicial ou primária, 'regras de fundo', preceitos jurídicos novos, necessários para a regulamentação das matérias em causa.

A normação requerida pelo citado artigo 84.º não pode, assim, caber dentro dos limites de um regulamento, que contém sempre disciplina secundária ou consequente.

A Lei n.º 28/84 é uma lei de bases. E só tinha de ser isso mesmo [cf. artigo 168.º, n.º 1, alínea f), da Constituição]. Deixou, por isso, para outras leis o desenvolvimento dos princípios gerais. Assim, e além do mais: é a lei quem determina 'as atribuições, competência e organização interna das instituições de segurança social' (artigo 57.º, n.º 2) e 'as atribuições, competências e composição do Conselho Nacional da Segurança Social' (artigo 60.º, n.º 2); é ela também quem define 'as formas de participação nas instituições de segurança social' das associações sindicais e patronais, das autarquias locais e de outras instituições (artigo 61.º).

Quanto às regiões autónomas, quis a Lei n.º 28/84 regionalizar o sistema de segurança social (cf. citado artigo 84.º). E dispôs que a organização e funcionamento dos respectivos serviços há-de constar de decreto legislativo regional.

A primeira questão, pois, que aqui se coloca é a de saber se esse 'reenvio' para o poder legislativo regional, feito pela Lei n.º 28/84, é constitucionalmente legítimo. E, sendo-o, se o decreto sub iudicio se apresenta conforme às bases que se propôs desenvolver.

Na verdade, no caso de o 'reenvio' ser constitucionalmente inadmissível ou de existir desconformidade entre o parâmetro legal lei de bases e o diploma regional de desenvolvimento dessas bases, então é porque o diploma aqui em apreciação invadiu a área de competência dos órgãos de soberania. E, nesse caso, haverá violação do artigo 229.º, alínea a), da Constituição.

Haverá, depois, que ver - e esta é a segunda questão - se o artigo 114.º da Constituição veda à assembleia regional que cometa ao governo regional o encargo de regulamentar o seu próprio diploma.

Vejamos, então: II Fundamentos Primeira questão: a da eventual violação do artigo 229.º, alínea a), da Constituição 1 - O decreto aqui em apreço tem 33 artigos distribuídos por quatro títulos. No título I 'Princípios gerais', composto por um só artigo, reproduzem-se, ao fim e ao cabo e sem nada inovar, os artigos 4.º, n.os 1 e 2, e 7.º, n.os 1 e 2, da Lei n.º 28/84. No título II 'Organização e atribuições' enumeram-se as instituições regionais de segurança social, definem-se-lhes as atribuições, indicam-se os respectivos órgãos e trata-se do seu regime financeiro. No título III 'Participação' trata-se do Conselho de Segurança Social, remetendo-se para diploma regulamentar a fixação da 'respectiva composição, competência e modo de funcionamento' (artigo 31.º). No título IV 'Disposições finais' remete-se para diplomas regulamentares regionais a definição da 'estrutura interna, competência e modo de funcionamento dos órgãos e serviços das instituições previstas no presente diploma' (artigo 32.º); fixa-se como data de entrada em funcionamento das instituições ora criadas aquela em que começarem a vigorar 'os decretos regulamentares' previstos no n.º 1 do artigo 32.º; e dispõe-se que nessa data serão revogados os Decretos Regionais n.os 21/79/A e 22/79/A, ambos de 7 de Dezembro, que - conforme se diz no respectivo preâmbulo - definiram 'as bases da organização do sistema de segurança social na Região Autónoma dos Açores'.

2 - O artigo 84.º da Lei n.º 28/84, atrás transcrito, comete ao poder legislativo regional o encargo de preencher o espaço deixado em branco pela Lei n.º 28/84 sobre determinadas matérias - a saber: as matérias relativas à 'organização e funcionamento' e à 'regionalização dos serviços de segurança social' -, a fim de 'adaptar' a respectiva regulamentação às condições particulares de cada região.

É este um procedimento que, em abstracto, nada tem de constitucionalmente censurável. Questão é que as matérias deixadas à legislação regional sejam daquelas que a Constituição abriu ao poder legislativo regional designadamente, que elas se não encontrem 'reservadas à competência própria dos órgãos de soberania'. É que, se isso suceder, haverá violação do artigo 114.º, n.º 2, da Constituição. Este preceito proíbe, com efeito, que os órgãos de soberania, de região autónoma ou de poder local deleguem os seus poderes noutros órgãos, a não...

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