Decreto-Lei n.º 138/84, de 07 de Maio de 1984

Acórdão n.º 39/84 Processo n.º 6/83 1 - A questão 1.1 - O pedido O Presidente da República requereu, em 25 de Outubro de 1982, ao Conselho da Revolução a apreciação e declaração da inconstitucionalidade do artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 254/82, de 29 de Junho - que, além do mais, revogou grande parte da Lei n.º 56/79, de 15 de Setembro (Serviço Nacional de Saúde) -, com fundamento em violação, por parte do Governo, da competência legislativa reservada da Assembleia da República, então consignada no artigo 167.º, alínea c), da Constituição da República Portuguesa.

Ao abrigo das normas constitucionais e legais então vigentes, foi solicitado à Comissão Constitucional o competente parecer sobre a questão, antes da decisão a tomar pelo Conselho da Revolução.

Todavia, entretanto entrou em vigor a Lei Constitucional n.º 1/82 (primeira revisão da Constituição), pela qual o Conselho da Revolução foi extinto e a competência da Comissão Constitucional ficou reduzida - nos termos do artigo 246.º, n.º 3 - ao julgamento dos recursos de inconstitucionalidade, de acordo com o primitivo artigo 282.º da Constituição, isto enquanto não fosse constituído e entrasse em funções o TribunalConstitucional.

Por esse motivo o processo não teve então seguimento, aguardando que, com a entrada em funções do Tribunal Constitucional, viesse a transitar para este, ao abrigo do artigo 106.º, n.º 2, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (lei do Tribunal Constitucional), o que só veio a ocorrer em 6 de Maio de 1983.

Nos termos da lei (artigo 54.º da Lei n.º 28/82), foi o Primeiro-Ministro solicitado a pronunciar-se sobre o pedido, não tendo ele utilizado tal faculdade.

Nada havendo que obste à decisão da questão, cumpre conhecer do pedido.

1.2 - Âmbito do pedido É do seguinte teor o requerimento do Presidente da República: 1 - O artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 254/82, de 29 de Junho, revoga, além do mais, os artigos 18.º a 61.º, 64.º e 65.º da Lei n.º 56/79, de 15 de Setembro. Tal revogação equivale à destruição ou inutilização do Serviço Nacional de Saúde (SNS), criado pela Lei n.º 56/79 e previsto no n.º 2 do artigo 64.º da Constituição. Com efeito, a orgânica própria daquele Serviço Nacional de Saúde não é, nem podia ser, substituída pelas 'administrações regionais de cuidados de saúde' que o Governo nesse decreto-lei nem sequer prevê possam integrar-se no Serviço Nacional de Saúde.

2 - Ainda que a Lei n.º 56/79 tenha sido aprovada pela Assembleia da República ao abrigo da alínea d) do artigo 164.º da Constituição, afigura-se-me que a criação do Serviço Nacional de Saúde, e, portanto, também a sua extinção ou alteração, constitui matéria da competência reservada da Assembleia da República por contemplar direitos fundamentais, face à sua inserção sistemática no texto da Constituição, onde o artigo 64.º integra a parte I, relativa a 'direitos e deveres fundamentais', sob o título III, respeitante a 'direitos e deveres económicos, sociais e culturais', ou, pelo menos, deverá ser considerado como 'direitos de natureza análoga' (artigo 17.º).

3 - A dever ser acolhido este entendimento, porque o Governo, sem precedência de autorização legislativa, revoga e extingue nesse artigo 17.º do citado decreto-lei o Serviço Nacional de Saúde, invade a área de competência legislativa reservada da Assembleia da República [artigo 167.º, alínea c), da Constituição da República Portuguesa] e por isso aquele normativo deverá ser considerado inconstitucional.

4 - Com estes fundamentos e ao abrigo do n.º 1 do artigo 281.º da Constituição, requeiro ao Conselho da Revolução a apreciação e declaração com força obrigatória geral da inconstitucionalidade do artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 254/82, de 29 de Junho.

Importa começar por verificar o alcance do questionado preceito do Decreto-Lei n.º 254/82, diploma que veio proceder à revisão do regime das 'administrações distritais de saúde', anteriormente contido no Decreto-Lei n.º 488/75, de 4 de Setembro. É o seguinte o teor desse preceito: São revogados o Decreto-Lei n.º 488/75, de 4 de Setembro, e os artigos 18.º, 19.º, 20.º, 21.º, 22.º, 23.º, 24.º, 25.º, 26.º, 27.º, 28.º, 29.º, 30.º, 31.º, 32.º, 33.º, 34.º, 35.º, 36.º, 37.º, 38.º, 39.º, 40.º, 41.º, 42.º, 43.º, 44.º, 45.º, 46.º, 47.º, 48.º, 49.º, 50.º, 51.º, 52.º, 53.º, 54.º, 55.º, 56.º, 57.º, 58.º, 59.º, 60.º, 61.º, 64.º e 65.º da Lei n.º 56/79, de 15 deOutubro.

O Decreto-Lei n.º 488/75 é o diploma que anteriormente regulava a matéria agora objecto de novo regime, contido neste Decreto-Lei n.º 254/82; a Lei n.º 56/79 é a lei que instituiu o Serviço Nacional de Saúde.

Vê-se assim que o preceito contém duas partes bem distintas: uma (a primeira parte) revoga o Decreto-Lei n.º 488/75, que era o diploma que anteriormente regulava a matéria e cujo regime é substituído pelo do novo diploma; outra (a segunda parte) revoga numerosas disposições da Lei n.º 56/79, que criou e definiu as bases gerais do Serviço Nacional de Saúde, não sendo essas disposições substituídas por quaisquer outras.

Importa notar que o pedido de apreciação da inconstitucionalidade não abrange todo o preceito, antes se limita ao seu segundo segmento, aquele que revoga parte da Lei n.º 56/79. Ainda que o texto do pedido do Presidente da República, na sua parte conclusiva, não faça qualquer restrição, a verdade é que do contexto global do pedido decorre inequivocamente que apenas é questionada a revogação dos artigos da lei do Serviço Nacional de Saúde.

Por isso, é somente sobre essa questão que vai incidir a apreciação e o juízo do Tribunal.

1.3 - A questão jurídico-constitucional O problema posto à consideração do Tribunal parece claramente delimitado.

Alega o requerente que o preceito legal questionado, estando inserido num decreto-lei (ou seja num diploma legislativo do Governo) e revogando disposições de uma lei da Assembleia da República que contém as bases do Serviço Nacional de Saúde, está por isso a invadir a competência legislativa reservada da Assembleia da República, pois tal matéria, cabendo no âmbito de um dos direitos fundamentais (o direito à protecção da saúde, previsto no artigo 64.º da Constituição da República Portuguesa) e devendo gozar do regime dos 'direitos, liberdades e garantias' referido no artigo 17.º da Constituição da República Portuguesa, estava por isso mesmo abrangida na alínea c) do artigo 167.º da Constituição (no seu primitivo texto).

Tudo se parece analisar, portanto, numa questão de inconstitucionalidade orgânica, que se resume a esta simples pergunta: a matéria do Serviço Nacional de Saúde, à data do Decreto-Lei n.º 254/82, pertencia à esfera da competência reservada da Assembleia da República? Realmente, é apenas este o fundamento de inconstitucionalidade explicitamente invocado pelo requerente. A única norma constitucioanl que se alega ter sido infringida é a do artigo 167.º da Constituição da República Portuguesa (no texto então vigente) e o único vício expressamente apontado à norma legal questionada é o que decorre da alegada incompetência do Governo.

Todavia, o texto do pedido do requerente levanta ou suscita inquestionavelmente outro problema, além do da eventual inconstitucionalidade orgânica. Recorde-se que logo no ponto 1 do texto se afirma: Tal revogação [a dos artigos da lei do Serviço Nacional de Saúde] equivale à destruição ou inutilização do Serviço Nacional de Saúde (SNS), criado pela Lei n.º 56/79 e previsto no n.º 2 do artigo 64.º da Constituição.

E, mais adiante, no ponto 3: [...] O Governo [...] revoga e extingue nesse artigo 17.º do citado decreto-lei o Serviço Nacional de Saúde [...] [Itálicos acrescentados.] Parece óbvio que aqui está colocado outro problema relevante para efeitos de um juízo de inconstitucionalidade: já não um problema de inconstitucionalidade orgânica, mas sim um problema de inconstitucionalidade material. A ser verdade que a revogação dos mencionados preceitos da Lei n.º 56/79 equivale à 'Destruição ou inutilização do Serviço Nacional de Saúde' e sendo este uma forma de realização do direito à protecção da saúde, constitucionalmente garantido no artigo 64.º da Constituição da República Portuguesa, então estará em causa não apenas a incompetência do Governo para revogar tais normas, mas também, eventualmente, a própria admissibilidade constitucional de tal revogação.

Resta saber se, tendo o requerente invocado formal e explicitamente apenas a questão da inconstitucionalidade orgânica, será possível ao Tribunal levantar e apreciar outros fundamentos, para além (ou diferentes) dos enunciados no requerimento. Esta questão, porém, não oferece quaisquer dificuldades, estando, como está, directamente solucionada na Lei n.º 28/82 (lei do Tribunal Constitucional), quando ela dispõe, no artigo 51.º, n.º 5, que 'o Tribunal só pode declarar a inconstitucionalidade ou ilegalidade de normas cuja apreciação tenha sido requerida, mas pode fazê-lo com fundamentação na violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação foi invocada'.

O Tribunal não está, pois, impedido de conhecer outros eventuais vícios de inconstitucionalidade de que padeça a norma cuja apreciação lhe é requerida. E no caso concreto, tendo em conta que, embora a entidade requerente não invoque explicitamente a inconstitucionalidade material, ela acaba por suscitar efectivamente tal problema, o Tribunal Constitucional não deve abster-se de abordar também essa questão.

Identificados os problemas que há a resolver, cumpre buscar a solução para eles.

2 - A solução 2.1 - Enquadramento da questão Antes de enfrentar propriamente os problemas a resolver, torna-se necessário proceder ao seu enquadramento histórico-legislativo, de modo a definir com nitidez o alcance da norma cuja constitucionalidade está em questão.

Em 15 de Setembro de 1979 é publicada a Lei n.º 56/79, aprovada em 28 de Junho do mesmo ano, tendo por objecto, como a sua rubrica explicita, o Serviço Nacional de Saúde. A referida lei teve por base o projecto de lei apresentado à...

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