Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de Julho de 1979

Decreto-Lei n.º 232/79 de 24 de Julho 1. A necessidade de dotar o nosso país de um adequado 'direito de mera ordenação social' vem sendo, de há muito e de muitos lados, assinalada. Tanto no plano da reflexão teórica como no da aplicação prática do direito se sente cada vez mais instante a necessidade de dispor de um ordenamento sancionatório alternativo e diferente do direito criminal.

Ordenamento que permita libertar este ramo de direito das infracções que prestam homenagem a dogmatismos morais ultrapassados e desajustados no quadro de sociedades democráticas e plurais, bem como do número inflacionário e incontrolável das infracções destinadas a assegurar a eficácia dos comandos normativos da Administração, cuja desobediência se não reveste da ressonância moral característica do direito penal. E que permita, outrossim, reservar a intervenção do direito penal para a tutela dos valores ético-sociais fundamentais e salvaguardar a sua plena disponibilidade para retribuir e prevenir com eficácia a onda crescente de criminalidade, nomeadamente da criminalidade violenta.

Os próprios órgãos legislativos e executivos têm, não raro, sentido a carência de um tal ordenamento. A sua inexistência tem frequentemente impedido o legislador ou o executivo de lançar mão de uma gama diferenciada de sanções ajustada à natureza e gravidade dos ilícitos a reprimir ou prevenir. O que explica que os sucessivos governos constitucionais tenham inscrito nos seus programas a tarefa de lançar os fundamentos do direito de mera ordenação social, como prioritária em relação às múltiplas reformas de fundo generalizadamente reclamadas.

É a colmatar esta lacuna que se destina o presente decreto-lei, que visa paralelamente atingir outro objectivo que se afigura de relevo: encurtar a distância que, a este propósito, separa a ordem jurídica portuguesa do direito contemporâneo vigente noutrosEstados.

Sabe-se como, independentemente da estrutura económico-social e das divergências no que concerne à organização e exercício do poder político, quase todos os Estados se encontram hoje apetrechados com um direito de ordenação social distinto do direito criminal. Bastará recordar, a título de exemplo, o que se passa na República Federal da Alemanha e na República Democrática Alemã. As diferenças de regime, por demais conhecidas, não têm impedido uma evolução legislativa significativamente paralela neste aspecto. Ambos os Estados germânicos dispõem de um direito de mera ordenação social ao lado do direito criminal; e, apesar de naturais diferenças de conteúdo e da possibilidade de deparar com infracções que num dos Estados são consideradas como crime e que no outro se remetem para o regime das contra-ordenações, a verdade é que se verificam convergências decisivas; tanto no que concerne às relações que medeiam entre o direito criminal e o direito de ordenação social, como no que respeita à natureza, função e conteúdo fundamental desteúltimo.

  1. São fáceis de representar as causa que quase simultaneamente, e sobretudo após o deflagrar do segundo conflito mundial, fizeram sentir esta necessidade à generalidade das legislações. O direito de mera ordenação social é uma consequência da confluência de duas ordens de factores: a superação definitiva do modelo do Estalo liberal, por um lado, e o conhecido movimento de descriminalização, por outro.

    Independentemente dos pressupostos teóricos ou políticos e das constelações de valores que lhes presidem, todos os Estados contemporâneos foram chamados às tarefas de planificação, propulsão e conformação da vida económica e social. Todos, a seu modo, se sentiram responsáveis pelo triunfo progressivo de critérios de justiça social e pela elevação dos índices da qualidade de vida e do bem-estar material e cultural.

    Ora, nenhum Estado que promova a justiça social e que, portanto, desenvolve nesse sentido uma larga intervenção da Administração, pode atingir os fins que se propõe sem uma aparelhagem de ordenação social a que corresponde um ilícito e sanções próprias.

    É certo que da intervenção do Estado nos domínios da economia, saúde, habitação, cultura, ambiente, etc., pode resultar a conformação de infracções tão socialmente danosas e tão eticamente censuráveis que em tudo se justifique o seu tratamento como autênticos crimes. Ao que de modo algum se opõe o facto de o direito criminal se destinar reconhecidamente a tutelar o mínimo ético-social da vida em comum. Tal circunstância não pode fazer esquecer nem a historicidade dos valores criminais, nem a possibilidade de aquele 'mínimo ético ser enriquecido com a descoberta de novos valores incarnados na prossecução de certos interesses sociais' (Eduardo Correia, 'Direito penal e direito de mera ordenação social', in Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 1973, p. 266).

    O normal será, contudo, que as infracções às leis vigentes nestes domínios não atinjam relevo penal, antes configurem uma forma autónoma de ilicitude que reclame um quadro próprio de reacções sancionatórias e um novo tipo de processo.

    O movimento de descriminalização constitui, por seu turno, uma das notas mais salientes da moderna política criminal. Não será pertinente fazer neste contexto uma referência desenvolvida às principais áreas em que este movimento se faz sentir, nem às razões que o justificam. Será, porém, de recordar que ele se prende com o fenómeno de hipertrofia do direito criminal, com a submersão dos tribunais por processos de contestável dignidade criminal, com uma mais consequente distinção entre o moral e o direito penal, com os custos desnecessários de certos processos (em termos de estigmatização pessoal negativa) e, por último, com a convicção de que a inflação de incriminações contribui grandemente para a generalização de um estado de anomia e desregramento. É que, reconhece-se, onde tudo é proibido, tudo acaba por se considerar permitido.

    Simplesmente, a descriminalização não corresponde, por via de regra, a uma atitude puramente negativa ou abstencionista por parte do Estado. Ela significa apenas a purificação do direito criminal de formas de ilícito, cuja sede natural é o direito de mera ordenação social. É o que, por exemplo, deverá acontecer com as contravenções, tradicional e indevidamente integradas no ordenamento jurídico-penal.

  2. Apesar da novidade da matéria, entende-se que é possível avançar decididamente no sentido proposto, começando por pôr de pé um regime geral relativo às contra-ordenações, tanto no plano substantivo como processual.

    Pode, desde logo, contar-se com as lições profícuas da experiência do direito comparado. Sabe-se, por outro lado, como o direito de mera ordenação social tem sido, na última década, objecto de cuidada e persistente reflexão tanto por parte da doutrina estrangeira como da doutrina portuguesa. Por isso é que, a par de alguns pontos de controvérsias que persistem, se registam já consideráveis áreas de consenso ou mesmo de unanimidade. Como acontece, manifestamente, quanto à distinção entre o direito de mera ordenação social e o direito penal.

    Hoje é pacífica a ideia de que entre os dois ramos de direito medeia uma autêntica diferença: não se trata apenas de uma diferença de quantidade ou puramente formal, mas de uma diferença de natureza. A contra-ordenação 'é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal' (Eduardo Correia, ibidem, p. 268).

    E isto pese embora o facto de ainda não se verificar acordo quanto ao critério ou sinal único verdadeiramente identificador do direito de mera ordenação social e capaz de explicar todas as características do seu regime.

  3. É nesta base que assenta o regime previsto no presente decreto-lei, sintonizado com a lição do direito comparado e com os ensinamentos da doutrina.

    Está em causa um ordenamento sancionatório distinto do direito criminal.

    Não é, por isso, admissível qualquer forma de prisão, preventiva ou sancionatória, nem sequer a pena de multa ou qualquer outra que pressuponha a expiação da censura ético-pessoal que aqui não intervém. A sanção normal do direito de ordenação social é a coima, sanção de natureza administrativa, aplicada por autoridades administrativas, com o sentido dissuasor de uma advertência social, pode, consequentemente, admitir-se a sua aplicação às pessoas colectivas e adoptar-se um processo extremamente simplificado e aberto aos corolários do princípio da oportunidade.

    Para obviar, contudo, a quaisquer perigos ou abusos, submete-se a aplicação da coima a um estrito princípio de legalidade e ressalva-se, sem reservas, um direito de defesa e audiência e um inderrogável direito de recurso para as instâncias judiciais.

  4. Após algumas hesitações, optou-se por atribuir aos tribunais comuns a competência para conhecer do recurso de impugnação judicial.

    Reconhece-se de boamente que a pureza dos princípios levaria a privilegiar a competência dos tribunais administrativos. Ponderadas, contudo, as vantagens e desvantagens que qualquer das soluções irrecusavelmente comporta, considerou-se mais oportuna a solução referida, pelo menos como solução imediata e eventualmente provisória.

    E isso por ser a solução normal em direito comparado. E ainda por se revelar mais adequada a uma fase de viragem tão significativa como a que a introdução do direito de ordenação social representa. Além do mais, afiguram-se mais facilmente vencíveis as naturais resistências ou reservas da comunidade dos utentes do novo meio de impugnaçãojudicial.

  5. A consagração do regime geral relativo às contra-ordenações tem como finalidade imediata permitir à Administração recorrer à cominação de uma coima para garantir a eficácia dos comandos normativos nos domínios já mencionados. Destina-se, assim, naturalmente, a vigorar para o futuro, sendo, por exemplo, de esperar que a curto prazo se venha a...

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