Decreto-Lei n.º 248/86, de 25 de Agosto de 1986

Decreto-Lei n.º 248/86 de 25 de Agosto 1. Através do presente diploma cria-se e regulamenta-se um instituto até agora desconhecido entre nós: o estabelecimento mercantil individual de responsabilidadelimitada.

Como é geralmente sabido, vem sendo defendida há várias décadas por importante sector da doutrina a limitação da responsabilidade do comerciante em nome individual pelas dívidas contraídas na exploração da sua empresa.

Contra essa solução tem sido, porém, invocados vários argumentos. Assim, observa-se que a concessão desse favor colocaria terceiros (credores comerciais e particulares do comerciante) sob a ameaça de graves prejuízos.

Aduz-se depois que a responsabilidade ilimitada patrimonial do comerciante é o factor que melhor o pode ajudar a obter o crédito de que necessita.

Pondera-se ainda ser justo que quem detém o domínio efectivo de uma empresa responda com todo o seu património pelas dívidas contraídas na respectivaexploração.

Tais argumentos não parecem decisivos. Quanto ao primeiro, a réplica surge de imediato: tudo vai do regime a que se submeta o novo instituto. Não constitui, na verdade, dificuldade insuperável incluir nele normas adequadas a assegurar a terceiros uma tutela eficaz. E esta é justamente uma das linhas dominantes e uma das ideias-força do presente diploma.

Relativamente aos outros dois argumentos, ambos são contraditados pela larga difusão que encontrou o tipo das sociedades de responsabilidade limitada (entre nós chamadas sociedades por quotas), criado pelo legislador alemão em fins do século passado como resposta a necessidades sentidas na prática. Ora, em numerosíssimos casos, os poderes de gerência na sociedade por quotas competem a todos os sócios, o que prova, como se escreveu recentemente, que a limitação da responsabilidade de quem tem nas mãos as alavancas do comando da empresa não prejudica, afinal, o recurso ao crédito, não entorpece, pois, o comércio.

'Por outra via, todos sabemos como o rigor da lei, ao denegar ex silentio o favor da limitação da responsabilidade ao empresário individual, é por toda a parte facilmente iludido, graças ao expediente das sociedades unipessoais', um fenómeno, como também se sabe, hoje vulgaríssimo na prática de todos ospaíses.

  1. Apontaram-se, e contraditaram-se, as principais razões que poderiam condenar a admissão do novo instituto. Enunciem-se agora os mais importantes argumentos em seu favor.

    Como também já se aduziu, o exercício profissional da actividade mercantil implica pesados riscos: é a álea inerente ao comércio. Para alcançar benefícios, importa correr o risco de suportar graves prejuízos. Prejuízos que no limite podem acarretar a ruína da empresa, sendo certo que, no quadro do direito vigente, é muito difícil que a ruína da empresa não arraste consigo a do próprio empresário (individual) e virtualmente a da sua família: de facto, é princípio acolhido na generalidade dos sistemas jurídicos o de que o devedor responde com todo o seu património pelas obrigações validamente assumidas. Por outro lado, a regulamentação a que o nosso direito sujeita as dívidas comerciais dos devedores casados em regime de comunhão [v.

    Código Civil, artigo 1691.º, n.º 1, alínea d), e Código Comercial, artigos 15.º e 10.º], associada à realidade sociológica portuguesa (são poucos entre nós os casamentos em que vigora o regime de separação de bens), torna pouco provável que a falência do comerciante não consuma o melhor do património familiar.

    O juízo favorável à limitação de responsabilidade do empresário singular, que daqui emerge, não se altera se forem perspectivadas as coisas do ponto de vista do interesse da própria organização mercantil, ou seja, da empresa.

    Certo é que os credores da empresa perdem agora a vantagem de poderem executar a totalidade do património do empresário e do seu casal, mas ganham em troca a de verem os bens investidos no estabelecimento rigorosamente afectados ao pagamento das dívidas contraídas na respectiva exploração. Efectivamente, qualquer que seja a opção tomada quanto ao enquadramento jurídico do novo instituto, sempre ela há-de ter por base a constituição de um património autónomo ou de afectação especial, com o regime característico (bem conhecido) desta figura.

    Ponto é que, ao delinearem-se os contornos jurídicos do instituto, efectivamente se acautelem os vários interesses envolvidos, quer exigindo a destinação ao escopo mercantil de uma massa patrimonial de valor suficientemente elevado, quer instituindo os necessários mecanismos de controle da afectação desse património ao fim respectivo.

  2. De resto, a inovação legislativa de que se trata não representará um salto no desconhecido por parte do legislador português, antes tal actuação alinhará com a de outras legislações que, frequentemente, têm sido fonte de inspiração da nossa. Com efeito, razões idênticas ou próximas das atrás apontadas levaram a que, recentemente, na Alemanha (GmbH-Novelle de 1980) e na França (Lei n.º 185-697, de 11 de Julho de 1985) fosse dada resposta legislativa favorável à pretensão do empresário individual de afectar ao giro mercantil unicamente uma parte do seu património.

    A solução adoptada pelos legisladores alemão e francês - admissibilidade da criação ab initio da sociedade unipessoal de responsabilidade limitada - é, de facto, uma das duas vias possíveis para enquadrar juridicamente a situação em causa. A outra é representada pela criação de uma nova figura jurídica - a empresa (rectius: o estabelecimento) individual de responsabilidade limitada (com ou sem personalidade jurídica).

    Qualquer destas soluções tem a seu favor e contra si vários argumentos.

    Examine-se a primeira, que é a da sociedade unipessoal.

  3. Consistirá esta na admissibilidade da constituição de uma sociedade comercial de responsabilidade limitada com um único sócio. Por ela enveredaram, como já foi dito, os legisladores alemão e francês. Certo que, tanto nos países europeus (mormente nos de cultura jurídica germânica) como em algumas nações latino-americanas, não se desconhece a específica problemática inerente à solução frontal da questão, ou seja, a admissão da figura do estabelecimento (empresa) mercantil individual de responsabilidade limitada. Pelo contrário, o assunto tem sido repetidamente objecto de profundas análises doutrinais e, até, de vários projectos legislativos.

    No entanto, não foi essa a solução que prevaleceu nos referidos países.

    Porquê? 5. Foram duas, no essencial, as razões que levaram o legislador alemão a optar pela solução consagrada na GmbH-Novelle de 1980: a) A grande difusão que a 'Gesellsschaft mit beschrankter Haftung' unipessoal conhecia na prática: há longo tempo admitida pela doutrina e jurisprudência, o próprio legislador a tinha já reconhecido (assim, o § 15 da Umwandlungsgesetz, de 6 de Novembro de 1986). Mas há mais. A praxis não legitimava apenas a sociedade de responsabilidade limitada que em certo momento, em virtude de vicissitudes normais da sua existência jurídica, ficara reduzida a um único sócio: ia bastante mais longe, pois coonestava as próprias sociedades ab initio constituídas por um único sócio verdadeiro, secundado (por via das aparências) por um ou mais testas-de-ferro (Strohmanner); b) A maior facilidade em delinear um regime jurídico para esta situação: com efeito, a admissão da sociedade de responsabilidade limitada de um único sócio (Einmann-GmbH) apenas implicaria a adaptação de algumas normas do regime da GmbH, ao passo que a outra opção - criação da empresa individual de responsabilidade limitada - levantaria muito mais graves dificuldades.

    Assim se pensou e escreveu na Alemanha.

    E não foram por certo diferentes das referidas as razões que pesaram no espírito do legislador francês e o levaram a admitir a constituição da sociedade de responsabilidade limitada com um único sócio (aliás, curiosamente, a lei em questão intitula-se 'loi relative à l'entreprise unipersonnelle à responsabilité limitée').

    Assim procedendo, renunciou-se ao conceito tradicional da sociedade como contrato Dogmaticamente, a sociedade é contrato e é instituição. Entretanto, as duas citadas leis pressupõem, ambas uma construção dogmática em que aquela primeira componente (a ideia de contrato) é obliterada, ficando a sociedade reduzida à sua vertente institucional. E isto porque, bem atentas as coisas, e perspectivada agora a matéria a outra luz, a sociedade passa a ser preferentemente olhada como uma técnica de organização da empresa. O número daqueles que podem tirar proveito dessa técnica passa a não interessar. A sociedade de uma única pessoa não deixa de ser sociedade.

  4. Quanto, porém, ao nosso país, as coisas não se apresentam do mesmo modo: as razões apontadas no número anterior não valem aqui com a mesma intensidade.

    É certo que a ideia da sociedade com um único sócio encontra hoje aceitação generalizada tanto na doutrina como na prática, e até o novo Código das Sociedades Comerciais, vencidas algumas hesitações, lhe dará consagração igual àquela que um importante sector da doutrina nacional de há muito vinha preconizando.

    Mas, em contrapartida, não deixa de ser verdade que...

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