Decreto-Lei n.º 335/85, de 20 de Agosto de 1985

Decreto-Lei n.º 335/85 de 20 de Agosto Perante as altas contribuições da Casa Pia de Lisboa para a cultura portuguesa, desde 1780 até aos nossos dias, mas, acima de tudo, pelos muitos e muitos milhares de cidadãos que nestes dois séculos formou para a vida - sua maior glória -, justo é reconhecer nela, como um dia lhe chamou Latino Coelho, a 'universidade plebeia'.

Fundada em 3 de Julho de 1780 por Diogo Inácio de Pina Manique, no prosseguimento das notáveis reformas anos antes lançadas pelo marquês de Pombal, começou por dar resposta a algumas das muitas e legítimas preocupações com a ordem pública e saneamento social, transformando-se, a breve trecho, numa modelar escola para os filhos da população mais desamparada do País.

O admirável fenómeno pedagógico que constitui a Casa Pia de Lisboa nos primeiros anos da sua existência explica-se pelo notabilíssimo corpo docente com que foi dotada e do qual se salientam figuras como o eminente matemático e poeta José Anastácio da Cunha, primeiro regente e autor do primeiro plano de estudos da Casa Pia; António Fernandes Rodrigues, professor de Desenho e ex-pensionista de D. João V em Roma; Dr. Manuel Rodrigues de Paiva, professor de Farmácia e sobrinho de Ribeiro Sanches e ainda a influência do grande mestre Machado de Castro.

Para além das primeiras letras, e numa já relativa interdisciplinaridade, mestres eminentes leccionavam na Casa Pia de Lisboa, ao tempo instalada no Castelo de S. Jorge, aulas de Matemática, Química, Artilharia e Fortificação, Astronomia, Óptica, Desenho, Português, Latim, Francês, Inglês, Alemão (pela primeira vez em Portugal), Princípios da Contabilidade Comercial, Anatomia.

Princípios Cirúrgicos e, também pela primeira vez em Lisboa, num gesto de alto sentido humanitário, aulas de Obstetrícia que constituíram uma grande medida para estancar a mortalidade de nascituros grassante na época.

Mas, se estas eram a aulas no Castelo, a vida escolar dos órfãos não terminava aqui. Com efeito, a Casa Pia criou colégios para frequência de escolas superiores pelos seus alunos, não só em Lisboa e Coimbra mas também e até no estrangeiro.

É assim que: Alunos de Medicina, depois de passarem por aulas práticas no Hospital Central de Lisboa, vão completar os seus estudos nas Universidades Médicas de Londres, Edimburgo e Copenhaga; Alunos de Ciências Físico-Matemáticas vão frequentar as Academias de Marinha, Fortificação, Artilharia e Desenho e as aulas de Pilotagem; Alunos de Humanidades vão frequentar as Escolas Régias de Filosofia e Grego; Alunos da Aula de Desenho, que, parece, depois se transformou na célebre Academia do Nu, vão para a Academia de Belas-Artes, em Roma, que Pina Manique ali fundara para os seus pupilos.

Dela saiu uma plêiade de famosos gravadores, escultores e pintores, dos quais é justo destacar, entre outros, João José de Aguiar, Valle, Francisco Vieira, o Vieira Portuense, Manoel Dias e o grande Domingos Sequeira.

Incontáveis são também os casapianos que, desde o primeiro órfão recolhido ao amparo da sua benemérita instituição, se tornaram probos cidadãos e trabalhadores honestos. Encontramo-los, quer os do passado, quer os do presente, desde o simples artesão aos famosos artistas, intelectuais e militares, desde o operário ao arquitecto, do funcionário público ao ministro, da enfermeira ao lente de Medicina, do cura de aldeia ao arcebispo de Goa.

Grande foi o serviço que a Casa Pia a todos prestou, mas enorme foi o serviço que ela prestou ao País, como nos diz o historiador César da Silva: De que não sendo o talento e a inteligência apanágio de uma ou outra classe social, também o ensino não pode nem deve ser exclusivo de nenhuma [...].

Os primeiros anos da Casa Pia são, afinal, a resposta do nosso país ao movimento afectivo europeu do final do século XVIII, que tinha por sigla 'A igualdade humana perante o sofrimento'.

Em consequência das invasões francesas, a Casa Pia viu interrompida a sua actividade em 1807, por ordem do próprio Junot, reinstalando-se e retomando a sua vocação, em Agosto de 1811, no Convento do Desterro. Lá permaneceu, por entre dificuldades mil até 1833, altura em que o rei D. Pedro IV a transfere para as instalações contíguas aos Jerónimos, onde ainda hoje mantém os seus principais serviços. Junta-se, assim, no dizer do já citado César da Silva: 'A glória do passado com a esperança do futuro.' Simão José Luz Soriano, primeiro deputado por Angola, escritor, jornalista-historiador das lutas entre liberais e absolutistas, foi, provavelmente, o aluno mais destacado da Casa Pia durante a sua instalação no Desterro.

Com a Convenção de Évora-Monte e o exílio de D. Miguel, o País entrou em pleno regime constitucional. Um mundo novo vai substituindo o mundo velho.

Os novos legisladores acarinharam a Casa Pia, vendo nela um pretexto para a nivelação dos homens, não pela riqueza ou pelo nascimento, mas pelo saber.

A Casa Pia volta rapidamente a atingir a notoriedade dos seus primeiros anos e em 1835 era novamente um estabelecimento de ensino modelar em toda a Europa. Nele teve origem o Conservatório Nacional, graças aos esforços de Almeida Garrett, e dele saíram casapianos ilustres, de entre eles dois de reputação científica internacional - José Maria Teixeira e Ferreira Lapa.

Também a Casa Pia dá origem à primeira escola normal do País, onde se realizaram as primeiras lições experimentais do método português de leitura deCastilho.

Esquecendo algumas dificuldades vividas pela instituição no segundo lustro dos anos 50 do século XIX, a verdade é que a Casa Pia, por altura do seu primeiro centenário, em 1880, é uma escola prestigiada, nacional e internacionalmente (distinguida nas exposições de 1877 em Viena de Áustria e de 1878 em Paris), com um acentuado pioneirismo pedagógico, que secularmente tem sabido dar resposta àquilo que dela se tem esperado.

Desde a sua fundação aos nossos dias, a 'universidade plebeia' tem orientado a sua vocação para a satisfação das necessidades do País e antecipado as grandes reformas do ensino, assumindo, naturalmente, o papel de um verdadeiro espaço experimental do ensino nacional.

Tal como em 1833, também em 1911, pouco depois da implantação da República, a Casa Pia foi alvo de particulares atenções dos novos governantes do País Nesta conformidade, por decreto de 7 de Março desse ano, o Ministro do Interior do Governo da República, Dr. António José de Almeida, nomeou para dirigir a Casa Pia de Lisboa, outorgando-lhe ampla autonomia pedagógica e administrativa, um dos mais eminentes pedagogos portugueses de sempre o Dr. António Aurélio da Costa Ferreira.

Foi tão vasta, tão benéfica e tão profíqua a direcção de Costa Ferreira, que se torna praticamente impossível condensá-la, bastando que se diga que a sua acção lhe sobreviveu até 1940, 17 anos depois do seu (doloroso) desaparecimento.

Costa Ferreira criou o Instituto Médico-Pedagógico da Casa Pia de Lisboa, que tão relevantes contributos deu à causa da investigação científica no campo da psicopedagogia; instituiu os testes de inteligência de Alfredo Binet; estabeleceu cursos pedagógicos e fomentou o enriquecimento técnico e formativo do pessoal docente da instituição, fazendo dela um dos grandes suportes na reforma da educação levada a efeito pelo Governo da I República; criou o ensino especial para os deficientes físicos e para os alunos menos dotados; criou o salário estímulo para os educandos e empurrou-os para a prática desportiva, de que a Casa Pia seria um grande alfobre e origem da fundação de alguns dos maiores clubes desportivos portugueses.

Aurélio da Costa Ferreira orientou a formação dos alunos da Casa Pia de Lisboa segundo dois grandes parâmetros: educação interna e educação externa.

Assim: No internato: a) Educação e instrução intelectual; b) Educação e instrução moral e cívica; c) Educação e instrução artística; d) Educação e instrução física; e) Educação e instrução profissional; Fora do estabelecimento: f) Ensino literário, científico, artístico e profissional, em escolas nacionais e estrangeiras; g) Aprendizagem de artes e ofícios, em estabelecimentos de estudo ou em oficinasparticulares; h) Prática de comércio, em estabelecimentos e escritórios comerciais.

A educação e instrução intelectual visava o desenvolvimento do espírito crítico através do exercício da observação e da experimentação.

A educação e instrução cívica, fundamentalmente através do exemplo, visava a formação de cidadãos cumpridores dos seus deveres, conhecedores dos seus direitos, firmes nas suas atitudes, mas nunca sectários ou intolerantes.

Durante todo este período, dos mais significativos na vida da Casa Pia, tal como acontecera durante a monarquia, a instituição foi acompanhada de perto pelos chefes de Estado, com saliência para os Drs. Manuel Arriaga (ex-professor de Inglês na instituição) e Bernardino Machado.

Em 31 de Dezembro de 1942, pelo Decreto n.º 36612, o Estado Novo concentra na velha estrutura da Casa Pia de Lisboa diversos estabelecimentos assistenciais e submete-a a uma nova filosofia político-assistencial, descaracterizando-a.

A instituição perde-se e degrada-se e assim chega, de crise em crise, aos nossosdias.

Com a II República, trazida pelo 25 de Abril, restaurados os ideais democráticos e consagrada constitucionalmente a igualdade de todos os cidadãos, impõe-se reconduzir a Casa Pia aos caminhos que dela fizeram uma escola modelar e respeitada.

Porque ela 'tem história que bem merece ser conhecida como monumento que glorifica a Nação e como lição que frutifica as consciências'; Porque, como afirmou o seu mais ilustre director, 'mal das instituições que tendo história a não recordam'; Porque todos nós a respeitamos 'na sua missão permanente e sublime da preparação do futuro' e, finalmente: Porque o nosso país, com tantas necessidades, não se pode dar ao luxo de prescindir das potencialidades presentes e futuras de uma instituição como a Casa Pia de Lisboa.

Ora, o...

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