Decreto n.º 44220, de 03 de Março de 1962

Decreto n.º 44220 1. Desde o Decreto de 21 de Setembro de 1835, referendado por Rodrigo da Fonseca Magalhães, que mandou que se estabelecessem cemitérios públicos em todas as povoações do País e cominou penas graves ao pároco ou qualquer eclesiástico beneficiado que consentisse enterramentos dentro dos templos, até aos nossos dias têm-se publicado variadas disposições sobre cemitérios, umas em diplomas legais, outras em simples instruções dirigidas às entidades encarregadas da sua construção, manutenção ou polícia.

Entre elas tem importância especial, sob o ponto de vista da construção de cemitérios, as instruções que se contêm na circular do Ministério do Reino de 16 de Dezembro de 1890, que ainda hoje se mantém em vigor. O seu acerto e valor manifestam-se no facto de terem perdurado ao longo de um período de mais de 70 anos.

Estudadas essas instruções em profundidade reconhece-se que mantêm ainda actualidade muitas das suas prescrições, mas que há outras - como é natural depois de tão longo período que a perderam. É uma consequência normal da evolução científica e dos conceitos de ordem sanitária, que não são hoje o que eram em 1890, especialmente para o grande público.

Atendendo a esse facto, procurou-se nas medidas que agora se cominam manter o que nelas ainda vale - salvo as disposições de carácter administrativo que, por constarem de outros diplomas legais, se entende não deverem fazer parte delas -, alterando-se apenas aquelas que, por não corresponderem às preocupações actuais, não poderiam manter-se.

Entre as medidas cuja alteração se impõe destacam-se as que se referem ao isolamento dos cemitérios, ao seu encercamento por muros altos e à utilização das águas que eles possam influenciar. Os receios de ordem sanitária que a tal respeito informam as instruções de 1890 não têm razão de ser. Convém, portanto, alterar as disposições que os traduziam, na medida em que se não, ofendam ostensivamente hábitos inveterados, que se entende de respeitar.

Tratar-se-á, para cada um desses casos, de justificar os novos princípios com base em opiniões incontroversas de autoridades dignas de todo o crédito na matéria.

  1. Isolamento dos cemitérios: É ideia que vem de remotos tempos que os corpos dos mortos em decomposição tem acção deletéria sobre os vivos. Dela vem, talvez, o uso da incineração que tem longa tradição, praticando-a os gregos e outros povos da mais remota antiguidade, e que é adoptada ainda nos tempos correntes. O desenvolvimento das epidemias de peste que assolaram os povos da Europa, em especial na Idade Média, foi atribuído à decomposição de cadáveres insepultos, e ainda hoje, em dias bem recentes, se viu igual preocupação a propósito do terramoto de Agadir.

    Compreende-se, assim, que se procurasse isolar os cemitérios, como elemento de infecção, interpondo entre eles e os vivos largas faixas de protecção.

    Desta presunção resultaram medidas de que as instruções de 1890 se fazem eco, impondo o seu afastamento a um mínimo de 143 m (ver nota 1) das habitações - artigo 14.º das mesmas instruções - e que persistiram, talvez que por motivo de ordem psicológica, nas disposições dos Decretos n.os 13337, de 25 de Março de 1921, e 37575, de 8 de Outubro de 1949, que fixaram as distâncias que deveriam existir entre as escolas primárias e os cemitérios - o primeiro 500 m, o segundo 200 m, ou menos, em casos especiais. E isto quando a existência de cemitérios em contacto quase imediato com casas de habitação já tinha provado a inanidade do receio.

    Não têm, realmente, sob o ponto de vista sanitária, qualquer justificação as medidas que prescrevem o afastamento dos cemitérios. O Prof. Ricardo Jorge, que foi higienista eminente, já em 1884, analisando em conferências que proferiu na Escola Médico-Cirúrgica do Porto (ver nota 2) o problema do isolamento dos cemitérios, dizia: À força de enegrecer os enterramentos nos templos o de invectivar a putrefacção, sobrecarregando-a com as mais pesadas e funestas culpabilidades patológicas, encarou-se o próprio cemitério como um foco insalubre e deletério. E esta crença verdadeiramente universal e absolutamente incontestada traduziu-se na legislação por um preceito frisante e nítido - arredar do povoado a respectiva necrópole e evitar o mais possível que essas peçonhas intangíveis jornadeiem até à povoação arrastadas pelas águas potáveis ou pelos ventos reinantes.

    E, depois de historiar a velha superstição, de apontar factos e autores, fez a brilhante e convincente apologia das ideias novas sobre a matéria, que enunciou pela seguinte forma: É tempo de entrar na demonstração do teorema científico - a salubridade da inumação nos cemitérios. Derivarei de facto em facto, de princípio em princípio, como numa demonstração matemática, até atingir o quod erat demonstrandum: o enterramento, guardadas as condições higiénicas elementares, é uma prática higiènicamente inocente.

    Outro ilustre higienista português, o Dr. Arruda Furtado, dizia o seguinte sobre o assunto, em conferência que proferiu em 10 de Maio de 1941 (ver nota 3).

    Um problema surge quando se pensa em escolher o campo mortuário: A que distâncias dos vivos? Para qualquer invocação higiénica ou administrativa, não se conte nunca com o terror que o cemitério infunda, ou com o desejo que tenham os vivos de que fiquem longe deles os mortos.

    Sabemos que surgem os que vociferam porque das suas janelas se possa ver o cemitério. E vêm brados que afirmam miasmas, gases, pestilências, que, todas juntas, não excedem por vezes as dos reclamantes. Que as administrações considerem então cada caso, mas que nem elas nem os reclamantes venham em nome de uma higiene demarcada, teórica ou errada, procurar arrimo.

    As exigências da higiene são simples, são claras e são modestas em tal matéria.

    E, a seguir: Nunca se vê que briguem os interessados da saúde pública com os outros na escolha de um local para os cemitérios.

    Insistindo: É, repetimos, muito de ordem administrativa essa preocupação do afastamento. Nem se vê que seja de ordem moral, pois a piedade, o respeito, o culto dos mortos só dignifica; nem se diga que os receia o povo, que ainda aqui e ali procura o repouso dos seus mortos junto das igrejas e sempre os quis perto de si.

    Numa publicação intitulada: L'Inhumation est sans danger (ver nota 4), o Dr. Sóveriu Icard, membro do Instituto de França, estudou as condições sanitárias dos cemitérios e chegou a conclusões absolutamente satisfatórias sob o ponto de visto de higiene. Na própria decomposição dos corpos - diz ele - existe uma autodesinfecção, devida à acção constante dos gases sulfurados e amoniacais que se desenvolvem, de poder eminentemente microbicida.

    Querendo as autoridades públicas em França saber se os gases que se produzem na putrefacção dos cadáveres são deletérios, nomeou uma comissão para estudar o assunto, da qual fizeram parte pessoas notáveis - Brouardel, Carnot, Schutzemberger e Du Mesnil. A sua conclusão foi esta: Procedemos a numerosas experiências: os gases colhidos à superfície do solo nos cemitérios não são diferentes daqueles que colhemos noutros locais (ver nota 5).

    Schutzemberger escrevia, por seu turno: Colhemos amostras em condições diferentes de temperaturas no ar, de 10º a 30º, tanto à superfície como na terra dos cemitérios, de 0,40 m a 0,80 m acima de campas antigas e campas recentes. Em caso algum o mais atento e minucioso exame revelou o menor vestígio de...

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