Assento n.º 2/93, de 10 de Março de 1993

Assento n.° 2/93 Acordam no plenário das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça: Paulo Jorge Martins da Nóbrega, actualmente preso à ordem do processo comum n.° 98/90 da 2.' Secção do 2.° Juízo do Funchal, interpôs o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, ao abrigo do artigo 437.° do Código de Processo Penal, com os seguintes fundamentos: Por acórdão deste Supremo Tribunal de 26 de Fevereiro de 1992, proferido em recurso interposto naquele processo da comarca do Funchal, foi o recorrente condenado na pena de 17 anos de prisão de 1 500 000$ de multa pela comissão de um crime de tráfico agravado de estupefacientes, dos artigos 23.°, n.° 1, e 27.° do Decreto-Lei n.° 430/83, de 13 de Dezembro.

Na decisão da 1.' instância o recorrente havia sido condenado com base apenas na prática do crime do artigo 23.°, n.° 1, daquele diploma, e a alteração da qualificação jurídica feita por esta instância baseou-se no entendimento expresso de que não correspondia a alteração substancial de factos descritos na acusação a simples modificação do enquadramento jurídico dos mesmos factos.

Sucede, no entanto, que essa posição interpretativa da lei, assumida pelo mesmo acórdão, se encontra em oposição com o Acórdão deste Supremo de 18 de Janeiro de 1991, no processo n.° 41 379 (in Colectânea de Jurisprudência, 1991, I, 5), bem como com o Acórdão, igualmente deste Supremo, de 5 de Julho de 1991, no processo n.° 41 644 (in Colectânea, 1991, III, 29), uma vez que, em ambos, se terá entendido que a condenação por crime diverso do constante da acusação, ainda que baseada nos factos aí descritos, traduz uma alteração substancial da acusação, só admissível com as formalidades previstas pelo artigo 359.° do Código de Processo Penal.

Em virtude de o recorrente ter indicado dois acórdãos em oposição com o acórdão recorrido, foi o mesmo convidado a indicar qual considerava como o acórdão fundamento, pelo que acabou por indicar o que foi proferido em 18 de Janeiro de 1991, no processo n.° 41 379.

Foi proferido acórdão preliminar no sentido da verificação da invocada oposição de julgados.

Foram oportunamente apresentadas alegações, em que:

  1. O recorrente defende dever ser proferido acórdão com força obrigatória geral no sentido de que 'deve ser fixada jurisprudência no sentido da proibição de condenação por uma circunstância modificativa não prevista na acusação ou pronúncia, ainda que a factualidade respectiva ali se encontre narrada', por a expressão utilizada na alínea f) do artigo 1.° do Código de Processo Penal dever ser entendida como referida a um sentido teleológico, correspondente ao propósito de proibir 'a imputação de outro crime, ou a agravação dos limites máximos da pena abstractamente aplicável'; b) O Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto, depois de se referir à conveniência de se firmar jurisprudência sobre o problema prévio de ser ou não possível, no domínio do actual Código de Processo Penal, relativamente à questão de se saber se a decisão preliminar sobre oposição de acórdãos pode ou não ser revista no acórdão final, sustenta que este último, no caso concreto, deve ser formulado nos seguintes moldes: Não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, para os fins dos artigos 1.°, alínea f), 120.°, 284.°, n.° 1, 303.°, n.° 3, 309.°, n.° 2, 359.°, números 1 e 2, e 379.°, alínea b), do Código de Processo Penal, a simples alteração da sua qualificação jurídica, mesmo que para crime mais grave.

    Foram corridos os vistos devidos.

    Questão prévia suscitada pelo Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto sobre a possibilidade de reapreciação dos pressupostos da decisão preliminar sobre a oposição de acórdãos.

    A decisão proferida no sentido da existência da oposição de acórdãos não é vinculativa e deve, por isso, ser reapreciada pelo plenário, como resulta do que se passa a expor e tendo-se em atenção que a referida questão prévia acaba por se desdobrar em dois aspectos complementares, que são os seguintes:

  2. Possibilidade ou não de o plenário do Tribunal vir a entender diferentemente do acórdão preliminar que julgou verificada a oposição de acórdãos e mandou prosseguir os autos; b) Possibilidade ou não de o mesmo Tribunal vir a adoptar solução diversa das duas opostas que dão origem ao pedido de uniformização da jurisprudência, por aquela dever ser considerada como a mais consentânea com a correcta aplicação da lei e a uma melhor interpretação das respectivas letra e espírito.

    Passemos, por conseguinte, a apreciá-los:

  3. Possibilidade de o plenário reapreciar o problema da existência da oposição de acórdãos Pelo Código de Processo Penal de 1929, o recurso para fixação de jurisprudência seria interposto, processado e julgado como idêntico recurso em processo civil (§ único do artigo 668.°), o que significava que o Supremo, ao apreciar a final o recurso, não estava impedido de decidir em contrário do acórdão preliminar que julgara verificar-se a invocada oposição de acórdãos (artigo 766.°, n.° 3, do Código de Processo Civil).

    No Código de Processo Penal actual nada se refere sobre essa matéria, e, sabido como é, que ele se encontra dominado pelo princípio da auto-suficiência do processo penal, com recurso às normas do processo civil apenas quando as mesmas se harmonizem com aquele, poderia ser-se levado a concluir que o mencionado acórdão preliminar sobre a existência da oposição de acórdãos formaria caso julgado, impeditivo da reapreciação posterior de tal problema.

    Não parece, no entanto, que assim deva ser.

    É que o referido acórdão preliminar mais não é do que uma decisão inicial, indispensável para o prosseguimento do recurso, mas que não tem virtualidade intrínseca para vincular os restantes juízes que são chamados a apreciar o objecto do recurso, como se vai ver.

    Por um lado, seria atentatório da unidade do sistema jurídico que o recurso para obtenção do mesmo resultado - a fixação da jurisprudência, com efeitos vinculativos para os restantes tribunais - estivesse sujeito a regimes distintos quanto ao valor da decisão inicial que estabelece a existência de oposição de acórdãos sobre o mesmo ponto de direito, consoante se tratasse de divergências entre acórdãos cíveis ou sociais, ou entre acórdãos tirados em matéria criminal, tanto mais que, nesta última, com alguma frequência, os tribunais são chamados a pronunciar-se sobre matérias de natureza exclusivamente civil, como, por exemplo, a que respeita a indemnizações por factos ilícitos.

    Por outro lado, verifica-se fazer parte do sistema jurídico em geral, e do sistema do processo penal em particular, a estruturação de um esquema legal segundo o qual a generalidade das decisões interlocutórias desse tipo não faz caso julgado.

    É assim, com efeito, que é modificável pelo Tribunal a decisão do presidente de um tribunal superior que mande admitir um recurso não admitido pela 1.' instância (artigo 405°, n.° 4, do Código de Processo Penal), tal como é modificável pelo tribunal de recurso a qualificação jurídica dos factos feita pelo tribunal recorrido (mesmo quando se entenda que, nesse caso, o primeiro não poderá aumentar a punição imposta por este se se não tiver pedido o respectivo agravamento), e, quanto ao processo civil, que é modificável, no saneador, a posição assumida pelo Tribunal, no despacho liminar, sobre a inexistência de vícios conducentes à ineptidão da petição inicial (artigo 479.°, n.° 2, do Código de Processo Civil).

    Trata-se, em todas as situações apontadas, de decisões preliminares, de natureza interlocutória, cujas únicas finalidades são as de permitir a apreciação global do objecto do recurso pelo tribunal competente, quando aquelas sejam no sentido do prosseguimento dos autos, e a de impedir, então de maneira definitiva, tal apreciação quando as mesmas tenham o sentido oposto e delas não caiba, legalmente, recurso.

    Por tais razões, não pode deixar de se entender que a matéria constante do acórdão preliminar, que julgou verificada uma dada oposição de julgados, continua a ter de ser reapreciado pelo plenário quando ele se pronunciar sobre o sentido a dar à pretendida uniformização da jurisprudência.

    Foi esta, de resto, a jurisprudência seguida por este Supremo, no primeiro caso em que o mesmo foi chamado a pronunciar-se sobre idêntica questão prévia (Acórdão, com força obrigatória geral, de 6 de Maio de 1992, proferido no processo n.° 42 317, sobre o conhecimento oficioso ou não das nulidades processuais penais, no Diário da República, 1.' série A, n.° 180, de 6 de Agosto de 1992).

    Mais delicada, no entanto, é a segunda das indicadas questões prévias, que se passa a focar.

  4. Possibilidade de a solução uniformizadora da jurisprudência ser diferente da de qualquer dos acórdãos em conflito É princípio geral do nosso sistema jurídico que o Supremo Tribunal de Justiça, porque não pode, em via de recurso nos campos penal e processual, proceder à análise da matéria de facto e apenas tem competência para discutir os aspectos de interpretação e aplicação do direito, se encontra limitado, no âmbito dos seus poderes de apreciação, pelos limites da questão, tal como a mesma foi definida pelos recorrentes.

    E são, sem dúvida, expressão desse princípio a regra da proibição da reformatio in pejus e a da possibilitação, em determinadas circunstâncias, da anulação de um julgamento e reenvio do processo (num autêntico sistema de cassação), quando lhe não seja possível extrair conclusões seguras a partir dos dados de facto definitivamente apurados pela ou pelas instâncias.

    Por tal motivo, poder-se-ia ser levado a concluir que, num recurso para fixação de jurisprudência, o mesmo Tribunal estaria limitado a dizer qual das duas posições em conflito se configurava como a correcta, relativamente a um certo ponto de interpretação da lei.

    Na realidade, porém, a solução deverá ser diferente, como se vai ver.

    A limitação do campo de apreciação do Supremo respeita tão-somente à matéria de facto, mas não abrange os aspectos de...

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