Acórdão n.º 565/2016

Data de publicação25 Novembro 2016
SeçãoParte D - Tribunais e Ministério Público
ÓrgãoTribunal Constitucional

Acórdão n.º 565/2016

Processo n.º 159/16

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1 - A Autoridade Nacional de Comunicações - ANACOM, recorrente nos presentes autos em que é recorrido o Ministério Público, remeteu, para efeitos de fiscalização prévia, o contrato de prestação de serviços de seguro de saúde, celebrado em 29 de setembro de 2015, entre aquela Autoridade e a empresa Fidelidade - Companhia de Seguros, S. A., pelo valor global de (euro) 935 733,21.

Por acórdão de 9 de novembro de 2015, a 1.ª Secção, em Subsecção, do Tribunal de Contas recusou o visto ao mencionado contrato, nos seguintes termos (cf. o Acórdão n.º 15/2015 - 9.NOV-1.ªS/SS, disponível em http://www.tcontas.pt/pt/atos/acordaos/2015/1sss/ac015-2015-1sss.pdf):

«Pelos fundamentos indicados, e nos termos do disposto nas alíneas a), b) e c) do n.º 3 do artigo 44.º da LOPTC, acordam os Juízes do Tribunal de Contas, em Subsecção da 1.ª Secção, em recusar o visto ao contrato acima identificado.»

Os fundamentos em causa reportam-se às seguintes ilegalidades, assim identificadas nesse acórdão:

«104 - Concluiu-se que a contratação do seguro de saúde para os trabalhadores da ANACOM não é consentida pela lei aplicável, contrariando o estabelecido nos artigos 3.º, n.º 2 e 6.º do Decreto-Lei n.º 14/2003, que, nos termos do artigo 2.º deste diploma e da parte final do n.º 1 do artigo 3.º dos Estatutos da ANACOM, limita a autonomia regulamentar e contratual consagrada nos n.os 5 e 6 do artigo 42.º dos mesmos Estatutos.

105 - O contrato em apreciação foi, pois, celebrado contra disposição legal de caráter imperativo. Nos termos do artigo 3.º, n.º 3, alínea a), dos Estatutos da ANACOM, que determina a aplicação a esta entidade do regime da contratação pública, e dos artigos 285.º, n.º 2, do Código dos Contratos Públicos e 294.º do Código Civil, o contrato está ferido de nulidade.

106 - Por criar uma obrigação pecuniária não prevista na lei, e por ela ser mesmo expressamente proibida, o contrato é também nulo por aplicação do disposto no artigo 284.º, n.º 2, do Código dos Contratos Públicos e no artigo 161.º, n.º 2, alínea k), do Código do Procedimento Administrativo.

107 - A nulidade é fundamento da recusa de visto, nos termos do estabelecido na alínea a) do n.º 3 do artigo 44.º da Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas (LOPTC).

108 - A contratação e a consequente despesa violam ainda o estabelecido no artigo 156.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de dezembro, de inegável natureza financeira.

109 - A violação direta de normas financeiras constitui igualmente motivo para a recusa do visto, conforme estabelece a alínea b) do n.º 3 do referido artigo 44.º da LOPTC.

110 - Acresce que a desconformidade do contrato com a lei aplicável implica a alteração do resultado financeiro, já que, a não ser celebrado como se impunha, não ocorreria a despesa pública envolvida.

111 - Ocorre, pois, também o fundamento de recusa de visto previsto no artigo 44.º, n.º 3, alínea c) da referida LOPTC.»

Inconformada, a Autoridade Nacional de Comunicações - ANACOM recorreu desta decisão ao abrigo do disposto nos artigos 96.º, n.º 1, alínea b), e 97.º e ss. da Lei n.º 98/97, de 9 de março (Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas, seguidamente referida como "LTdC"), pedindo, a final, a substituição do acórdão recorrido por outro que concedesse o visto ao mencionado contrato de prestação de serviços. Para o efeito, invocou a improcedência de todos os fundamentos justificativos da recusa de visto, imputando a tal decisão diversos erros de direito, que, a serem reconhecidos, determinariam a inaplicabilidade ao contrato de prestação de serviços em análise da norma do artigo 156.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2007) e das normas dos artigos 3.º, n.º 2, alínea c), e 6.º, n.º 3, ambos do Decreto-Lei n.º 14/2003, de 30 de janeiro. Suscitou ainda a inconstitucionalidade destes dois últimos preceitos.

Por acórdão 26 de janeiro de 2016, o Tribunal de Contas negou provimento a esse recurso, mantendo, em consequência, a recusa de visto (cf. o Acórdão n.º 1/2016-26.JAN-1.S/P, proferido pelo plenário da 1.ª Secção do Tribunal de Contas, de fls. 269 e ss., disponível igualmente em http://www.tcontas.pt/pt/atos/acordaos/2016/1spl/ac001-2016-1spl.pdf).

2 - É desta decisão que vem interposto o presente recurso, com base no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro ("LTC"), para apreciação da constitucionalidade das normas extraídas dos artigos 3.º, n.º 2, alínea c), e 6.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 14/2003, de 30 de janeiro, segundo as quais é proibida a atribuição, o aumento ou a renovação, por via de instrumento de regulamentação coletiva do trabalho, de quaisquer regalias e benefícios suplementares ao sistema remuneratório, designadamente seguros dos ramos "Vida" e "Não Vida", excetuados os obrigatórios por lei, aos trabalhadores de fundos e serviços autónomos, tal como definidos no artigo 2.º do mesmo diploma (cf. os n.os 113 a 127 do acórdão recorrido, fls. 305 a 309, e a resposta de fls. 337 e seguinte ao despacho convite).

Foi igualmente sobre tais normas - correspondentes ao objeto material do recurso - que incidiram a alegação da recorrente e a contra-alegação do Ministério Público (v., respetivamente, fls. 371 e ss., e fls. 388 e ss.). O primeiro defendendo a sua inconstitucionalidade e a consequente remessa dos autos ao tribunal a quo para efeitos de cumprimento do estatuído no artigo 80.º da LTC; o segundo, ao invés, pugnando pela negação de provimento ao recurso.

3 - Por despacho de 16 de setembro de 2016 (objeto de retificação material em 19 de setembro seguinte), foram as partes notificadas para, querendo, se pronunciarem sobre a eventualidade de não conhecimento do objeto do recurso, dada a existência no acórdão recorrido de um fundamento de decisão alternativo, apto, por si só, a fundamentar e manter o seu sentido decisório. O fundamento alternativo em causa consubstancia-se no artigo 156.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2007).

Com efeito, considerou o relator que o acórdão do Tribunal de Contas n.º 1/2016-26.JAN-1.S/P negou provimento ao recurso interposto de decisão de recusa de visto tomada pela mesma Secção, em subsecção, referente ao contrato de prestação de serviços do ramo "Saúde" celebrado pela ora recorrente - mantendo, em consequência, tal recusa de visto -, não apenas com base nos normativos ora impugnados, como, também, por entender que o aludido contrato viola o artigo 156.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2007), nos termos da qual «cessam, com efeitos a 1 de janeiro de 2007, quaisquer financiamentos públicos de sistemas particulares de proteção social ou de cuidados de saúde». Nesse aresto, afirma-se o seguinte, a propósito de tal norma:

«68 - Na decisão sub judice, para justificar a aplicação da norma ao caso, diz-se, em termos sintéticos que "a contratação de seguros de saúde é uma forma de providenciar esses cuidados [de saúde]. Por outro lado, o financiamento público aí referido não está limitado ao financiamento proveniente de verbas do orçamento do Estado. Afigura-se-nos que a formulação dada à norma se refere a qualquer tipo de financiamento público. O financiamento do contrato de seguro em apreciação é, portanto, um financiamento público, única razão, aliás, porque está submetido ao controlo e jurisdição deste Tribunal de Contas. A despesa em causa está, pois, ela própria, proibida por lei".

[...]

88 - Da análise efetuada à razão de ser da norma em causa, o que se constata é que se trata efetivamente de uma norma financeira, na medida em que comporta efeitos financeiros inequívocos, «enxertada» na Lei do Orçamento, que não se reconduz à vigência anual da referida Lei na medida que pretende eliminar uma forma de financiamento público de subsistemas de saúde para o futuro. E, nesse sentido, será uma norma «cavaleira» em relação ao diploma onde se encontra.

89 - O legislador de 2006 não restringiu o seu âmbito ao ano económico e financeiro subsequente. Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 396/2011, de 21 de setembro, "uma vez editado, este regime desprende-se do seu local de nascimento, ganha vida própria, sobrevive por si, sem dependência da lei que operou essa inserção. O que significará que basta a inércia do legislador para que os efeitos da redução agora operada, ainda que incidentes apenas sobre os montantes em vigor à data da emissão da norma, perdurem indefinidamente".

90 - A partir da sua entrada em vigor, a menos que alguma norma de idêntico valor os venha permitir, os financiamentos públicos de subsistemas privados de saúde, ainda que estes, qua tale, se mantenham, não será possível.

91 - Por outro lado, nem a LQER nem os Estatutos da ANACOM, vieram excecionar a aplicação daquela norma, que por isso se mantém em vigor e vincula todas as entidades públicas ou quer sejam financiadas por verbas públicas.

92 - A ANACOM é uma pessoa coletiva pública, financiada por verbas provenientes de receitas, que embora próprias, são públicas, tanto as que se referem às taxas como as que resultem da venda dos seus serviços. A aplicação dessas receitas, qualquer que seja o regime a que se subordina, é de natureza pública, estando por isso vinculada a esse normativo.

93 - Assim sendo não tem qualquer razão a recorrente quanto [a] esta dimensão do recurso.»

Mesmo admitindo que a nulidade resultante da «criação de obrigação pecuniária não prevista na lei, e por ela ser mesmo expressamente proibida» (cf. o n.º 106 do acórdão mantido pela decisão ora recorrida) e que a «desconformidade do contrato com a lei aplicável [que determina] a alteração do resultado financeiro» (cf. o n.º 110 do mesmo acórdão) sejam meramente consequenciais, subsistem como fundamentos principais e autónomos da recusa do visto decidida em primeira instância e mantida pela decisão ora recorrida, por um lado, as normas dos...

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