Acórdão n.º 510/2016

Data de publicação24 Outubro 2016
SeçãoParte D - Tribunais e Ministério Público
ÓrgãoTribunal Constitucional

Acórdão n.º 510/2016

Processo n.º 243/16

2.ª Secção

Relator: Conselheiro Pedro Machete

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - Relatório

1 - A Britalar - Sociedade de Construções, S. A., recorrida nos presentes autos em que é recorrente o Ministério Público, foi condenada em 21 de maio de 2014 pela Autoridade para as Condições do Trabalho ("ACT") por ter diminuído a retribuição dos seus trabalhadores (uma contraordenação prevista e punida pelos artigos 129.º, n.º 1, alínea d), e 554.º, n.º 4, alínea e), ambos do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro), na coima de 12 444,00 (euro) e, ainda, no pagamento de 177 284,47 (euro) devidos aos trabalhadores e de 69 220,62 (euro) devidos à Segurança Social. Inconformada, a arguida impugnou judicialmente aquela decisão.

Em 22 de janeiro de 2016, a Instância Central - 1.ª Secção. Trabalho - Braga - Juiz 2, julgou parcialmente procedente a impugnação, mantendo apenas a condenação da arguida a pagar o valor da coima em que fora condenada, considerando que:

«[A]pós deliberação da respetiva assembleia geral de acionistas, [a arguida] reduziu os salários de todos os seus colaboradores cujo salário bruto mensal excedesse os 700,00 (euro), o que fez por escalões de vencimento, de forma progressiva, e de forma unilateral, uma vez que não obteve o acordo dos trabalhadores para tal redução salarial.

Esta situação factual, que não foi contestada pela arguida, viola, sem dúvidas, a proibição constante do artigo 129.º, n.º 1, alínea d), do Código do Trabalho, que estabelece um princípio de irredutibilidade da retribuição, no sentido de não poder ser diminuído o vencimento do trabalhador, nem com o seu acordo, salvo raras exceções previstas na lei.

No caso em apreço, verifica-se que a redução salarial incidiu mesmo sobre a retribuição base, sendo certo que não resulta dos autos qualquer circunstância que legitimasse, do ponto de vista legal ou contratual, tal redução. Com efeito, não se tratava, pelo menos na altura, de empresa em situação económica difícil, que pudesse recorrer ao DL n.º 353-H/77, de 29 de agosto, nem foi invocado qualquer instrumento de regulamentação coletiva de trabalho donde adviesse tal redução salarial.

Assim, ao agir da forma como ficou provado, a arguida violou as imposições legais em questão, sendo que poderia e deveria ter agido de forma diferente.» (fls. 194, v.º-195)

Já no que se refere à legitimidade da ACT para condenar a arguida a pagar aos trabalhadores as diferenças salariais e os descontos para a Segurança Social, entendeu o mesmo tribunal dever recusar aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, ao disposto no artigo 564.º, n.º 2, do Código do Trabalho pelas seguintes razões:

«[O] segmento da decisão da ACT que "determina o pagamento das importâncias em dívida aos trabalhadores no montante de (euro) 177.284,47 e à Segurança Social no montante de (euro) 69.220,62" funda-se no n.º 2 do artigo 564.º do Código do Trabalho. Tal norma, que repete a constante do n.º 5 do artigo 687.º do Código do Trabalho na versão de 2003, preceitua que: "A decisão que aplique a coima deve conter, sendo caso disso, a ordem de pagamento de quantitativos em dívida ao trabalhador, a efetuar dentro do prazo estabelecido para o pagamento da coima."

Apesar da boa intenção do legislador de pôr rapidamente à disposição dos trabalhadores os quantitativos a que legitimamente têm direito, é difícil compatibilizar tal preceito com a natureza sancionatória do direito das contraordenações.

Sobre esta questão, seguimos a posição de Soares Ribeiro, que passamos a citar:

"O problema da constitucionalidade da atribuição de competência à Administração para a instrução dos processos por contraordenação e para aplicação das respetivas sanções foi objeto de viva polémica na altura da sua implantação em finais da década de setenta e princípio da década de oitenta.

Recorda-se a posição crítica do Prof. Cavaleiro de Ferreira, primeiro no seu direito Penal Português e depois nas Lições de Direito Penal onde, invocando o art. 205.º da CRP (versão de 1982) e reservando para os Tribunais "a aplicação da lei em todas as relações jurídicas concretas, quer entre os indivíduos, quer entre estes e o Estado" concluía que "será inconstitucional o julgamento pela Administração das contraordenações e a equiparação a uma sentença duma decisão administrativa...".

Contra esta posição se pronunciou o Prof. Figueiredo Dias para quem "sendo a coima uma sanção dirigida a advertir o cumprimento de deveres e obrigações que relevem apenas da preservação de uma certa "ordenação social" torna-se imediatamente compreensível que o seu processamento e a sua aplicação devam caber, como estipula o art. 33.º "às autoridades administrativas"... Com isto - e o ponto é muito importante na perspetiva jurídico-constitucional - não se penetra ainda verdadeiramente na "administração da justiça" ou na "função materialmente judicial" que a Constituição atribui em exclusivo aos tribunais".

Ora, com a atribuição às autoridades administrativas da função, não já de aplicar sanções, mas verdadeiramente de condenar no pagamento dos quantitativos em dívida aos trabalhadores, parece manifesto que a Administração (no caso a IGT) está já a jurisdizer, a "dizer" o direito, a administrar ajustiça, a invadir o campo próprio da atuação dos tribunais e a penetrar na esfera materialmente judicial que a Constituição reserva aos Tribunais enquanto órgãos de soberania (artigo 202.º da CRP). Parece, por isso, haver também violação do princípio da separação e independência dos órgãos de soberania, mais concretamente o seu corolário da adequação entre órgãos e funções na medida em que um órgão, o Governo, a quem incumbe o poder executivo, concretamente a Administração do Trabalho, invade uma parcela de um outro órgão, os Tribunais, a quem cumpre o judicial, com desrespeito do art. 111.º da norma normarum.

Na realidade, como ensina J. J. Canotilho, da teoria do núcleo essencial das funções pode retirar-se a conclusão de que "a nenhum órgão podem ser atribuídas funções das quais resulte o esvaziamento das funções materiais especialmente atribuídas a outro", princípio que "tem sido invocado na delimitação da função judicial, considerando a doutrina ser este um dos domínios em que se deve aplicar rigorosamente uma teoria material defunções".

Neste contexto, parece caber sem grande margem de dúvida a constatação de que a atribuição à Administração da obrigatoriedade de a decisão de aplicação da coima conter a "condenação" do pagamento das quantias em dívida - embora a lei, certamente por pudor, fale simplesmente em conter a ordem de pagamento - o que, além do mais, exige necessariamente a decisão administrativa sobre existência do respetivo direito na esfera jurídica do trabalhador e a prévia liquidação dessas quantias, ofende o referido princípio. Na realidade, se a Administração retira aos tribunais de trabalho a função de decidir sobre os direitos dos trabalhadores com incidência retributiva, mesmo que apenas e só em sequência duma ação inspetiva, aquele órgão de soberania vê-se esvaziado das funções próprias do cumprimento da sua missão.

Outra coisa não resulta, ainda, do mesmo princípio da independência na sua vertente de exclusividade da função de julgar, conforme resulta da lição do Prof. Gomes Canotilho: "a independência judicial postula o reconhecimento de uma reserva de jurisdição entendida como reserva de um conteúdo material típico da função jurisdicional. Esta reserva de jurisdição atua simultaneamente como limite de atos legislativos e de decisão administrativa, tornando-os inconstitucionais quando tenham conteúdo materialmente jurisdicional".

À mesma conclusão se chegaria, ainda, se se invocasse que neste âmbito, diferentemente do que se passa com a aplicação de coimas em que a constitucionalidade se basta com a atribuição aos tribunais do "monopólio da última palavra", a estes órgãos de soberania é constitucionalmente devido o "monopólio da primeira palavra" ou a reserva absoluta de jurisdição." [cf. Autor cit., "Violação dos Instrumentos de Regulamentação Coletiva (Breves Apontamentos sobre a Interpretação e Constitucionalidade do artigo 687.º do Código do Trabalho) in Prontuário de Direito do Trabalho, n.º 69, setembro-dezembro de 2004, Coimbra Editora, pp. 138 e ss.]

Em suma, concordando inteiramente com a posição supra, entende este Tribunal que não tem de aplicar a norma do n.º 2 do artigo 564.º do Código do Trabalho (na redação dada pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro), por a mesma violar o princípio da separação e independência dos órgãos de soberania, designadamente dos Tribunais do Trabalho, e consequentemente dos artigos 111.º e 202.º da CRP.» (fls. 196-197, v.º)

2 - É desta sentença que vem interposto pelo Ministério Público o presente recurso de constitucionalidade, com base no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, seguidamente abreviada como "LTC"), para apreciação da norma do artigo 564.º, n.º 2, do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, interpretado no sentido de permitir à Administração retirar aos tribunais a função de decidir sobre os direitos dos trabalhadores com incidência retributiva, esvaziando, desse modo, as funções próprias daquele órgão de soberania.

3 - Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal Constitucional, foi ordenada a produção de alegações.

No final da sua alegação, o Ministério Público formulou as seguintes conclusões:

«1.ª) Vem interposto recurso, pelo Ministério Público, para si obrigatório, nos termos do disposto nos artigos 280.º, n.º 3, da Constituição e 72.º, n.º 3, da LOFPTC, "do despacho [sentença] proferido pela Instância Central - 1.ª Secção. Trabalho - Braga - J2 que recusou a aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 564.º do Código do Trabalho (redação int. pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro), com fundamento na sua inconstitucionalidade por violação do...

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