Acórdão n.º 393/2016

Data de publicação22 Julho 2016
SeçãoParte D - Tribunais e Ministério Público
ÓrgãoTribunal Constitucional

Acórdão n.º 393/2016

Processo n.º 166/16

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I - A Causa

1 - A "Celestial Ordem Terceira da Santíssima Trindade" (Autora e ora Recorrente) intentou (em 04/02/2009, cf. fls. 2 e 30), no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, uma ação administrativa sob a forma comum contra Tertir - Terminais de Portugal, S. A. (Ré, aqui Recorrida), tendo em vista o reconhecimento do direito de reversão sobre certa parcela de terreno, que lhe havia sido expropriada em 1979 e logo transmitida à Ré. Cumulativamente, pediu a adjudicação da mesma parcela. O processo correu os seus termos naquele tribunal, com o n.º 327/09.6BEPRT, tendo a Autora alegado que a Ré, desde 2006, deu à parcela expropriada um fim diverso daquele que determinou a expropriação, nessa incidência fundando o pedido de reversão.

Na sua contestação, a Ré invocou (a título de exceção), entre outros argumentos, que, à data da formulação do pedido de reversão (em 26/06/2008, cf. artigo 95.º da contestação da Ré, assumindo tal data indicação fornecida pela própria Autora), tal direito já havia cessado, pelo decurso do prazo de 20 anos, contados desde a data da adjudicação (que remonta a 1979), nos termos do artigo 5.º, n.º 4, alínea a), da Código das Expropriações.

A Autora respondeu a esta questão (exceção), alegando, designadamente, que a aplicação do artigo 5.º, n.º 4, do Código das Expropriações de 1991, reiterado no Código das Expropriações de 1999, ao prazo decorrido antes da entrada em vigor de qualquer destes preceitos constitui aplicação retroativa da lei.

1.1 - Foi proferida sentença, pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto (fls. 768/776), julgando a ação improcedente, em virtude de "[...] haver cessado/caducado o direito à reversão que a Autora pretende fazer valer [...]", nos termos do artigo 5.º, n.º 4, alínea a), da Código das Expropriações [refere-se (aplica) a sentença, como resulta do seu texto, ao Código de 1999, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de setembro].

1.2 - Inconformada com tal decisão, a Autora dela interpôs recurso para o Tribunal Central Administrativo Norte. Das suas alegações consta, designadamente, o que ora se transcreve:

"[...]

Como refere Marcelo Caetano, 'É um princípio geral de direito - válido, por conseguinte no direito público e privado - que a lei não tem efeito retroativo, salvo quando seja de natureza interpretativa'.

No mesmo sentido discorre Gomes Canotilho, ao afirmar que os princípios de segurança jurídica e da proteção de confiança apontam para a proibição de leis retroativas.

O direito de reversão, tutelado pelo artigo 62.º da CRP, é de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias previstos no artigo 17.º da CRP e merecedor da mesma tutela jurídica.

Por tal facto, ao caso em apreço é aplicável o artigo 18.º, n.º 3 da CRP, do seguinte teor: 'As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir caráter geral e abstrato e não podem ter efeito retroativo nem diminuir a extensão e o alcance dos preceitos constitucionais'.

Tem-se vindo a decidir que a retroatividade pode ser autêntica ou inautêntica. No caso é inautêntica, pois a lei apenas proclama a vigência do Código das Expropriações de 91 e de 99 para o futuro, mas afeta posições jurídicas nascidas sob a égide do Código das Expropriações de 76. A lei constitucional não permite medidas arbitrárias, inesperadas, desproporcionadas ou afetarem direitos de forma excessivamente e impróprias as posições jurídicas jus fundamentadas das particulares (cf. Acs. TC n.os 354/00 e 449/02). A razão de ser deste requisito está intimamente ligada à ideia de proteção de confiança e segurança aos cidadãos, defendendo-os contra o perigo de verem atribuir-se aos seus atos passados ou às situações transatas efeitos jurídicos com que não podiam razoavelmente contar.

Trata-se, ao fim e ao cabo, de consubstanciar um dos traços do Estado de direito democrático, constitucionalmente afirmado no artigo 2.º Daqui suscita-se a questão se o princípio do estado de direito democrático não reclama considerá-lo como princípio geral válido para todas as leis que diminuam ou criem deveres ou encargos para os cidadãos (Acs. TC 11/83, 20/83, 32/84 e 201/86).

[...]

Conclusões

[...]

19 - No caso, atento a que a situação jurídica é tutelada pelo artigo 62.º, n.º 2, da CRP, por forma idêntica aos direitos, liberdades e garantias, o prazo de 20 anos fixado pelo artigo 5.º do CE de 91, nos termos do artigo 18.º, n.º 3, da CRP, não é passível de aplicação retroativa.

[...]" (sublinhados acrescentados

1.3 - Foi proferido acórdão no TCA Norte - trata-se da decisão objeto do presente recurso - , negando provimento à impugnação aí em causa, com os fundamentos seguintes:

"[...]

A questão colocada [...] não é nova, tendo já sido apreciada pelo Supremo Tribunal Administrativo, que uniformemente tem entendido que o direito de reversão é regulado pela lei vigente ao tempo do seu exercício, o que quer dizer que o Código das Expropriações de 1991 se aplica aos pedidos de reversão feitos após o início da sua vigência, ainda que os mesmos possam respeitar a expropriações realizadas anteriormente. De entre os vários arestos sobre esta matéria, destaca-se o Acórdão do Pleno da Secção de CA do STA, de 01.10.2003, P. 037653, assim sumariado:

'I - O Código das Expropriações de 1991 aplica-se aos pedidos de reversão feitos após a sua entrada em vigor, ainda que respeitantes a expropriações realizadas ao abrigo de anteriores diplomas legais.

II - Nos termos da alínea a) do n.º 4 do artigo 5.º do CE/91 o direito de reversão cessa quando tenham decorrido 20 anos sobre a data da adjudicação dos bens expropriados.

III - A cessação de tal direito não configura um ataque ilegal e inconstitucional ao direito de propriedade desde que a expropriação tenha obedecido ao cânones legais e, designadamente, tenha sido paga a justa indemnização'.

Debruçando-se sobre o artigo 5.º/4-a) do CE/91, este acórdão sublinhou, além do mais, que 'de acordo com o que se estatui neste preceito, a Expropriante estava obrigada a aplicar os bens objeto da expropriação na finalidade que a determinou no prazo de dois anos a contar da sua adjudicação sob pena, de não o fazendo, nascer na esfera jurídica dos Expropriados o direito de reversão, isto é, o direito a reaverem os bens expropriados. Este direito, contudo, não era um direito ilimitado suscetível de ser exercido a todo o tempo já que se operava a sua caducidade quando esse exercício não se fizesse no prazo de dois anos a contar da ocorrência do facto que o originou. Todavia, e para além da caducidade do direito de reversão, a lei previa também a possibilidade da sua cessação, a qual ocorria sempre que decorressem 20 anos sobre a data da adjudicação - vd. n.º 4, alínea a) daquele artigo 5.º Ou seja, o direito de reversão não só caducava pelo seu não exercício no prazo de dois anos a partir do momento do seu nascimento, como também prescrevia quando fossem decorridos vinte anos sobre a data da adjudicação dos bens.'

Reafirmaram esta jurisprudência, entre outros, os Acórdãos do STA, de 05.04.2004, P. 01386/02; e do Pleno da Secção do CA, de 02.06.2004, P. 046991; e, mais recentemente, o Acórdão do TCAN, de 19.11.2015, P. 00988/12.9BEAVR.

Assim, a questão da contagem do prazo de 20 anos, previsto no art 5.º/1 do CE/91, a partir da expropriação, mesmo quando esta tenha data anterior a tal Código, já foi objeto de jurisprudência constante do Supremo Tribunal Administrativo e decidida em conformidade pelas instâncias, o que, aliás, já determinou a não admissão de recurso de revista para o Supremo sobre essa mesma questão (cf. Acórdão do STA, de 05.05.2011, P. 0411/11).

Esta jurisprudência, que subscrevemos, é inteiramente aplicável ao caso em apreço, onde se verifica que entre o momento da adjudicação do bem (1979) e o momento em que o pedido de reversão foi formulado (26.06.2008) decorreram mais de 20 anos, tendo o decurso deste prazo determinado a prescrição desse direito (e não a sua caducidade, como refere a decisão recorrida), nos termos do artigo 5.º/4-a) do CE/91.

Além disso, e contrariamente ao defendido pela Recorrente, a decisão do Tribunal Constitucional sobre a inconstitucionalidade das normas do artigo 7.º, n.os 1 e 3, do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 845/76, de 11 de dezembro, constante do Acórdão n.º 827/96 do Tribunal Constitucional (que confirmou antecedente acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 24/09/1992, que havia recusado a aplicação de tais normas com fundamento em inconstitucionalidade), foi proferida em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, o que significa que tem mera eficácia inter partes (cf. artigos 280.º/5 e 281.º/3 da CRP), não sendo as normas aí julgadas inválidas eliminadas da ordem jurídica. Da mesma forma, ainda que se admita que a eficácia retroativa e o efeito repristinatório não são efeitos exclusivos das declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral (embora expressamente previstos apenas quanto a estas - cf. artigo 282.º/1 da CRP), ainda assim tal efeito repristinatório - caso se mostrasse possível (o que, além do mais, implicava verificar se a norma declarada inconstitucional revogara norma anterior) - sempre seria limitado ao caso concreto decidido em tal Acórdão n.º 827/96.

Assim, e contrariamente ao alegado, não ocorre aqui qualquer sucessão de prazos, nem pode afirmar-se que o artigo 5.º/4-a) do CE/91 tenha encurtado um qualquer prazo anterior que, na verdade, não existia. Por outro lado, como já foi salientado no mencionado Acórdão do Pleno da Secção de CA do STA, de 01.10.2003, P. 037653, a contagem do prazo para a cessação do direito de reversão tem que ser feita nos termos expressamente previstos na mencionada norma do CE/91, ou seja, a contar da data da adjudicação, sendo certo que subjacente a esta solução estão ponderosas razões de estabilidade jurídica, que determinam a estabilização de uma situação de expropriação, que foi efetuada legalmente...

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