Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 247/2021

ELIhttps://data.dre.pt/eli/actconst/247/2021/06/09/p/dre
Data de publicação09 Junho 2021
SeçãoSerie I
ÓrgãoTribunal Constitucional

Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 247/2021

Sumário: Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas contidas nos n.os 4 e 5 do artigo 19.º, quando conjugados com o n.º 6 do mesmo artigo, da Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de agosto, que regula a eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais, na redação que lhe foi dada pela Lei Orgânica n.º 1-A/2020, de 21 de agosto.

Processo n.º 168/2021

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional

I - Relatório

1 - A Provedora de Justiça requereu, ao abrigo do disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma resultante das disposições conjugadas dos n.os 4 e 6 do artigo 19.º da Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de agosto, que regula a eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais, na redação que lhe foi dada pela Lei Orgânica n.º 1-A/2020, de 21 de agosto, bem como da inconstitucionalidade consequente do artigo 19.º, n.º 5, daquele diploma, decorrente da sua relação instrumental com o respetivo n.º 4.

2 - O pedido vem acompanhado da seguinte fundamentação:

«I. Breve enquadramento constitucional da candidatura de grupos de cidadãos eleitores aos órgãos das autarquias locais

1.º A Lei Constitucional n.º 1/97 aditou o n.º 4 ao artigo 239.º da Constituição da República Portuguesa, nos termos do qual «[a]s candidaturas para as eleições dos órgãos das autarquias locais podem ser apresentadas por partidos políticos, isoladamente ou em coligação, ou por grupos de cidadãos eleitores, nos termos da lei».

2.º Até então, a Constituição reservava o exclusivo da participação eleitoral mediante a propositura de candidaturas aos partidos políticos, com exceção das candidaturas às assembleias de freguesia, as quais, desde o texto originário, de 1976, podiam também ser apresentadas por grupos de cidadãos eleitores (artigo 246.º, n.º 2, da Constituição, na versão originária).

3.º A possibilidade de os grupos de cidadãos eleitores passarem também a concorrer às eleições de todos os órgãos autárquicos - acrescentando-se os órgãos deliberativo e executivo do município - é, por isso, jurídico-constitucionalmente relevante, enquanto concretização expressa, ao nível das autarquias locais - manifestação da organização democrática do Estado (artigo 235.º, n.º 1) -, do direito dos cidadãos de tomar parte na vida política e na direção dos assuntos públicos do país, consagrado no artigo 48.º, n.º 1.

4.º Assim, o direito de os cidadãos apresentarem, diretamente - sem intermediação dos partidos políticos -, candidatura às eleições dos órgãos das autarquias locais é, na sua essência, um direito fundamental, determinado a nível constitucional (artigos 48.º, n.º 1 e 239.º, n.º 4).

5.º Tal significa que a definição pelo legislador do processo eleitoral para os órgãos das autarquias locais, no que respeita à apresentação de candidaturas pelos grupos de cidadãos eleitores, está sujeita ao regime dos direitos, liberdades e garantias, designadamente à exigência de que as soluções encontradas pelo legislador na conformação do regime legal observem o princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2).

6.º A natureza jusfundamental da candidatura cidadã às eleições para os órgãos das autarquias locais é sublinhada na jurisprudência constitucional. No Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 582/2013, de 16 de setembro, afirma-se que «[quando a lei vem estabelecer a legitimidade para a apresentação de candidaturas às eleições para os órgãos das autarquias por grupos de cidadãos eleitores [...], confere essa faculdade aos cidadãos eleitores proponentes, que, desta forma, exercem um direito de participação política que lhes é expressamente conferido pela Constituição (artigo 239.º, n.º 4, da CRP)».

7.º Assim, à luz do artigo 239.º, n.º 4, da Constituição, jamais pode o legislador, ao regular o processo eleitoral dos titulares dos órgãos das autarquias locais, desvirtuar a opção constitucional fundamental, tomada em sede de revisão constitucional, de procurar abertura do sistema político para a renovação da representação política a nível local e de permitir a dinamização de uma verdadeira participação política e de mobilização próxima dos cidadãos (essa dupla finalidade é assinalada por Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2010, pág. 735).

8.º A tal entendimento não obsta o inciso final do n.º 4 do artigo 239.º, na parte em que reserva ao legislador a regulação das candidaturas apresentadas por grupos de cidadãos eleitores para as eleições dos órgãos das autarquias locais. Como escrevem Gomes Canotilho/Vital Moreira (cit., pág. 735), «a remissão para a lei - nos termos da lei - destina-se fundamentalmente a definir o número exigido de cidadãos proponentes no que se refere a candidaturas de grupos de cidadãos e o regime de candidatura de coligação partidárias [...]». Ou seja, não pode o legislador introduzir alterações de natureza substancial, que injustificadamente venham restringir um direito fundamental de participação política.

9.º Além da sua dimensão eminentemente subjetiva, conferindo expressamente aos cidadãos um direito de participação política, o artigo 239.º, n.º 4, contém igualmente uma dimensão objetiva, conformando o modo como, ao nível das autarquias locais - expressão, reitera-se, da organização democrática do Estado (artigo 235.º, n.º 1) -, se deve realizar aquele que é um dos princípios estruturantes de toda a ordem constitucional: o princípio democrático (artigo 2.º).

II. Da violação do direito dos cidadãos de tomar parte na vida política e na direção dos assuntos públicos do país (artigos 48.º, n.º 1, e 239.º, n.º 4, da Constituição)

10.º Com a alteração introduzida pelo artigo 2.º da Lei Orgânica n.º 1-A/2020, de 21 de agosto, ao n.º 4 do artigo 19.º da Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de agosto, que regula a eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais [doravante: LEOAL], passou a ser vedado a um mesmo grupo de cidadãos eleitores apresentar candidaturas, simultaneamente, a órgãos municipais e às assembleias de freguesia do mesmo concelho.

11.º Assim é, porque, nos termos dessa disposição, ao considerar-se distintos os grupos de cidadãos eleitores que apresentem diferentes proponentes, mesmo que apresentem candidaturas a diferentes autarquias do mesmo concelho, a lei passou a exigir, para que um mesmo grupo de cidadãos eleitores possa apresentar candidaturas para as eleições dos órgãos autárquicos, que a lista de proponentes seja exatamente idêntica na candidatura apresentada a cada um desses órgãos.

12.º Ora, por força do disposto no n.º 6 do artigo 19.º da LEOAL, os proponentes devem fazer prova de recenseamento na área da autarquia a cujo órgão respeita a candidatura, pelo que a condição estabelecida no n.º 4 desse preceito legal - para que um grupo de cidadãos eleitores que apresente candidaturas a diferentes autarquias do mesmo concelho não seja considerado «distinto» de todos os outros - é, na esmagadora maioria dos caos, objetivamente impossível de cumprir.

13.º Assim, deixa de ser possível que, no mesmo concelho, um mesmo grupo de cidadãos eleitores (com a mesma denominação, a mesma sigla e o mesmo símbolo) apresente candidaturas, simultaneamente, à assembleia municipal, à câmara municipal e a mais do que uma assembleia de freguesia.

14.º Com efeito, apenas é possível a um mesmo grupo de cidadãos eleitores apresentar candidaturas, simultaneamente, aos órgãos municipais e a uma única assembleia de freguesia, na exata medida em que, nessa hipótese, ainda se verificará uma perfeita identidade de proponentes. Já não assim no que respeita a candidaturas às restantes assembleias de freguesia do concelho, para as quais a lei exige proponentes recenseados em cada uma delas.

15.º Exemplificando, a partir do momento em que um determinado grupo de cidadãos eleitores (GCE 1) apresente e formalize candidaturas aos órgãos municipais e à assembleia de freguesia da freguesia A, torna-se legalmente impossível que os cidadãos eleitores recenseados na freguesia B - embora se possam organizar em grupo de cidadãos eleitores distinto (GCE 2) e, nessa qualidade, apresentar, igualmente, uma candidatura quer aos órgãos municipais quer à assembleia de freguesia dessa mesma freguesia B - sejam proponentes das candidaturas do GCE 1 aos órgãos autárquicos do município.

16.º Aliás, mesmo que os cidadãos eleitores recenseados na freguesia B decidam nem sequer ser proponentes de uma candidatura à assembleia de freguesia (da freguesia B), torna-se impossível que os mesmos sejam proponentes das candidaturas do GCE 1 aos órgãos municipais. Isto porque o GCE 1, ao apresentar uma candidatura à assembleia de freguesia da freguesia A teve já que definir os seus proponentes (que, obrigatoriamente, têm que estar recenseados nessa freguesia), pelo que terão que ser esses - e apenas esses - os proponentes das candidaturas aos órgãos municipais, ficando assim, necessariamente, excluídos todos os cidadãos recenseados em outras freguesias.

17.º Esta impossibilidade legal, decorrente do artigo 19.º, n.º 4, da LEOAL, de um mesmo grupo de cidadãos eleitores apresentar candidaturas, simultaneamente, aos órgãos municipais e às assembleias de freguesia [do mesmo município] consubstancia uma violação da liberdade de participação na vida pública, liberdade essa que se traduz, desde logo, no direito, que assiste a todos, de «tomar parte na vida política e na direção dos assuntos políticos do país» (artigos 48.º, n.º 1, e 239.º, n.º 4, da Constituição).

18.º Assim é por duas razões fundamentais que, estando embora entre si estreitamente relacionadas, devem ser analisadas separadamente. A primeira razão prende-se com a afetação grave - que decorre desta escolha legislativa - das possibilidades que têm os cidadãos de, enquanto membros de uma certa comunidade local, se envolverem na promoção e salvaguarda dos seus próprios valores e interesses; a...

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