Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 299/2020

ELIhttps://data.dre.pt/eli/actconst/299/2020/09/18/p/dre
Data de publicação18 Setembro 2020
SectionSerie I
ÓrgãoTribunal Constitucional

Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 299/2020

Sumário: Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil, na redação dada pela Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro.

Processo n.º 984/2018

Plenário

I - Relatório

1 - Um grupo de trinta e seis deputados à Assembleia da República, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 e na alínea f) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa, pediu a apreciação e declaração da inconstitucionalidade da norma constante do n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil, na redação dada pela Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro.

2 - O artigo do Código Civil que contém a norma questionada tem o seguinte teor:

Artigo 1091.º

Regra geral

1 - O arrendatário tem direito de preferência:

a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de dois anos, sem prejuízo do previsto nos números seguintes;

b) Na celebração de novo contrato de arrendamento, em caso de caducidade do seu contrato por ter cessado o direito ou terem findado os poderes legais de administração com base nos quais o contrato fora celebrado.

2 - O direito previsto na alínea b) existe enquanto não for exigível a restituição do prédio, nos termos do artigo 1053.º

3 - O direito de preferência do arrendatário é graduado imediatamente acima do direito de preferência conferido ao proprietário do solo pelo artigo 1535.º

4 - A comunicação prevista no n.º 1 do artigo 416.º é expedida por carta registada com aviso de receção, sendo o prazo de resposta de 30 dias a contar da data da receção.

5 - É aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º, sem prejuízo das especificidades, em caso de arrendamento para fins habitacionais, previstas nos números seguintes.

6 - No caso de venda de coisa juntamente com outras, nos termos do artigo 417.º, o obrigado indica na comunicação o preço que é atribuído ao locado bem como os demais valores atribuídos aos imóveis vendidos em conjunto.

7 - Quando seja aplicável o disposto na parte final do n.º 1 do artigo 417.º, a comunicação referida no número anterior deve incluir a demonstração da existência de prejuízo apreciável, não podendo ser invocada a mera contratualização da não redução do negócio como fundamento para esse prejuízo.

8 - No caso de contrato de arrendamento para fins habitacionais relativo a parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, o arrendatário tem direito de preferência nos mesmos termos previstos para o arrendatário de fração autónoma, a exercer nas seguintes condições:

a) O direito é relativo à quota-parte do prédio correspondente à permilagem do locado pelo valor proporcional dessa quota-parte face ao valor total da transmissão;

b) A comunicação prevista no n.º 1 do artigo 416.º deve indicar os valores referidos na alínea anterior;

c) A aquisição pelo preferente é efetuada com afetação do uso exclusivo da quota-parte do prédio a que corresponde o locado.

9 - Caso o obrigado à preferência pretenda vender um imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal, podem os arrendatários do mesmo, que assim o pretendam, exercer os seus direitos de preferência em conjunto, adquirindo, na proporção, a totalidade do imóvel em compropriedade.

3 - Para impugnar a constitucionalidade da norma acima indicada, os requerentes invocam a violação do artigo 62.º, n.os 1 e 2, conjugado com o disposto no n.º 2 do artigo 18.º, todos da Constituição.

Começando por analisar o procedimento legislativo que conduziu à produção da Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro, os requerentes alinham um conjunto de considerações gerais sobre o sentido e alcance daquela norma:

«Em 27 de abril de 2018, o Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda deu entrada ao Projeto de Lei n.º 848/XIII-3.ª ["Altera o Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de novembro de 1966, para aprimoramento do exercício do direito de preferência pelos arrendatários (septuagésima quarta alteração do DL 47344/66 de 25 de novembro")], discutido na generalidade em 4 de maio de 2018. Esta iniciativa viria a baixar sem votação à Comissão do Ambiente, Ordenamento do Território, Descentralização, Poder Local e Habitação, por requerimento aprovado em 5 de maio de 2018.

Em reunião de 12 de julho de 2018, a referida Comissão procedeu a nova apreciação da iniciativa em evidência, tendo procedido à votação indiciária do texto originário e das propostas de alteração apresentadas por vários partidos. Dessa votação resultou um texto de substituição, elaborado pela Comissão, em benefício do qual o Bloco de Esquerda retirou a sua iniciativa.

O texto de substituição da Comissão foi aprovado - com votos a favor do Bloco de Esquerda, do Partido Socialista, do Partido Comunista Português, do Partido Ecologista "Os Verdes" e do Partido Pessoas, Animais e Natureza, e os votos contra do Partido Social Democrata e do Partido Popular CDS-PP - em votação na generalidade, na especialidade e final global, e viria a dar origem ao Decreto da Assembleia da República n.º 233/XIII, enviado para promulgação de sua Excia. o Presidente da República em 1 de agosto de 2018.

O Decreto da Assembleia da República n.º 233/XIII foi devolvido por Sua Excia. o Presidente da República, nos termos do veto que acompanhou essa devolução, lido em Plenário em 6 de setembro de 2018.

A reapreciação do Decreto ocorreu em 21 de setembro de 2018, tendo sido discutidas e votadas as propostas de alteração apresentadas por vários partidos. A votação do texto final do decreto, com as propostas de alteração entretanto aprovadas, ocorreu na mesma data.

A 2.ª versão do Decreto da Assembleia da República (Decreto n.º 248/XIII) foi enviada para promulgação em 12 de outubro de 2018, tendo sido promulgado nessa mesma data.

A promulgação do Decreto deu origem à Lei n.º 64/2018, publicada no Diário da República, 1.ª série, n.º 208, de 29 de outubro, que "Garante o exercício do direito de preferência pelos arrendatários (altera o Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47 344, de 25 de novembro de 1966)".

Da mensagem de Sua Excia. o Presidente da República, que acompanhou o veto do Decreto da Assembleia da República n.º 233/XIII, cumpre destacar os seguintes trechos:

"Contra o diploma militam duas razões de fundo:

A primeira é a de, estando anunciado, ainda para esta legislatura, uma reponderação global do regime do arrendamento urbano, se estar a avançar, com medidas pontuais, casuísticas, não inseridas naquela reponderação. Isto, sendo certo que já foi promulgada e entrou em vigor a lei suspendendo o despejo de inquilinos habitacionais em situações de mais fragilidade.

A segunda - é a de, querendo proteger-se a situação dos presentes inquilinos, poder estar a criar-se problemas a potenciais inquilinos, ou seja ao mercado de arrendamento no futuro, visto que se convida os proprietários de imóveis, designadamente os não constituídos em propriedade horizontal, a querer tê-los sem inquilinos, ou só com alojamento local, para os poderem vender mais facilmente, sem a desvalorização que uma ação de divisão de coisa comum em tribunal, anterior à constituição de propriedade horizontal, pode acarretar.

[...]

Medindo contras de peso e prós, que o não são menos, ainda assim, o Presidente da República entende que o diploma justifica duas clarificações por parte da Assembleia da República.

A primeira é sobre os critérios de avaliação da parte locada do imóvel não constituído em propriedade horizontal. Como o direito de preferência é exercido antes da ação de divisão de coisa comum ou de constituição de propriedade horizontal, em cujo título se especificaria o mencionado valor, pelo menos em termos de permilagem, conviria, porventura, esclarecer os critérios de determinação desse valor, matéria que desapareceu do texto no decurso do processo legislativo. E não se diga que o n.º 6 do artigo 1091.º resolve essa questão, pois respeita à venda de todo o imóvel em conjunto com outros. Esse esclarecimento pouparia eventuais efeitos negativos em termos de litigiosidade judicial.

A segunda clarificação, mais importante, prende-se com o facto de, na sua versão submetida a promulgação, o diploma parecer aplicar-se quer ao arrendamento para habitação, quer ao arrendamento para outros fins, designadamente comerciais e industriais.

Ora, a proteção do direito à habitação, justificação cimeira do novo regime legal, tem cabimento no caso de o arrendamento ser para tal uso, mas não se for para uso empresarial".

As alterações ao Código Civil são do seguinte teor, conforme quadro abaixo:

[...]

Comparando a redação do artigo 1091.º do Código Civil que constava do Decreto da Assembleia da República n.º 233/XIII, com aquela que foi a redação final da lei, podemos concluir que as preocupações de Sua Excia. o Presidente da República foram, de alguma forma, acauteladas: a nova norma já se refere apenas ao direito de preferência dos arrendatários habitacionais, além de prever que o valor do locado, para efeitos do exercício do direito de preferência, tenha em conta o valor proporcional dessa quota-parte, expressa em permilagem do valor total da transmissão».

Seguidamente, os requerentes enunciam os fundamentos que, em seu entender, justificam um juízo positivo de inconstitucionalidade sobre a norma indicada no pedido:

«Da violação da garantia fundamental da propriedade privada.

A primeira desconformidade constitucional que cumpre assinalar diz respeito à limitação da liberdade contratual das partes e, bem assim, à faculdade de poder dispor livremente da sua propriedade.

Obviamente que os requerentes não contestam que o direito de propriedade constitucionalmente consagrado não constitui um direito absoluto, estando, pelo contrário, sujeito a várias restrições (incluindo, naturalmente, o direito de preferência).

Todavia, e desde logo, não se pode perder de vista que o princípio continua a ser o de que a propriedade privada é um espaço de autonomia pessoal, um instrumento para a realização de projetos de vida que não podem...

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