Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 319/2018

Data de publicação10 Julho 2018
SeçãoSerie I
ÓrgãoTribunal Constitucional

Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 319/2018

Processo n.º 188/2017

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:

I - Relatório

1 - O Provedor de Justiça veio requerer a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas constantes dos n.os 1 e 2 do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 220/2008, de 12 de novembro, tanto na redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 224/2015, de 9 de outubro, quanto na sua versão originária, bem como, consequentemente, da norma constante no n.º 3 do mesmo artigo 16.º, em ambas as versões.

O requerente alega que as normas objeto do pedido violam o disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, com referência ao n.º 1, in fine, do seu artigo 47.º, invocando, para sustentar a inconstitucionalidade das normas impugnadas, os fundamentos seguintes.

«1.º

Está em causa o enunciado legal que versa sobre a delimitação subjetiva da elaboração dos projetos de segurança contra incêndios em edifícios e das respetivas medidas de autoproteção.

2.º

O n.º 1 do artigo 47.º da Constituição da República Portuguesa consagra a liberdade de profissão, abarcando explicitamente a liberdade de escolha mas também a liberdade de exercício.

3.º

Com efeito, entre nós fez trilha a opinião, hoje aparentemente inabalável, de que não pode estabelecer-se uma distinção cortante entre escolha e exercício da profissão: a escolha toca a questão do se uma profissão é assumida, continuada ou abandonada («realização da substância»); o exercício refere-se à questão do como («realização da modalidade»). E assim se chega à afirmação do direito à profissão como um direito fundamental unitário, cujos elementos são a escolha, a admissão, a assunção e aperfeiçoamento, como também o abandono da profissão" (cf. Soares, Rogério Ehrhardt, «A Ordem dos Advogados - Uma Corporação Pública», Revista de Legislação e de jurisprudência, n.º 3809 (1991), p. 288).

4.º

Em todo o caso, a afirmação da liberdade de profissão não impede que o exercício da atividade em questão seja subordinado ao preenchimento de determinados requisitos, em especial daqueles que se prendem com a necessária e suficiente preparação, como, aliás, indica o próprio n.º 1 do artigo 47.º da Lei Fundamental, na parte em que ressalva «as restrições legais impostas pelo interesse coletivo ou inerentes à sua própria capacidade».

5.º

Neste contexto, a liberdade de escolha de profissão está sob reserva de lei restritiva [...]. É um dos casos expressamente previstos de restrições legais de «direitos, liberdades e garantias» (cf. Canotilho, J. J. Gomes/Moreira, Vital, Constituição da República Portuguesa, Vol. I, 4.ª edição, Coimbra: Coimbra Editora 2007, p. 656), em harmonia com os n.os 2 e 3 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa.

6.º

É certo ainda que, na densificação daquela cláusula restritiva, o legislador dispõe de uma ampla margem de conformação, desde que observados os parâmetros embutidos no princípio da proporcionalidade, resguardando-se, deste jeito, o núcleo do direito fundamental, não estando vedada a criação de regimes jurídicos condicionantes do exercício de uma profissão, o mesmo valendo para a introdução de soluções sucessivamente mais exigentes (nesse sentido vai a abundante e sólida jurisprudência do Tribunal Constitucional, corno assinalam os Acórdãos n.os 474/89, 347/92, 672/96 e 355/2005).

7.º

Ao definir o regime jurídico da segurança contra incêndios em edifícios (SCIE), o Decreto-Lei n.º 220/2008, de 12 de novembro, vem enunciar, na redação hoje dada pelo Decreto-Lei n.º 224/2015, de 9 de outubro, o seguinte:

"Artigo 16.º

Projetos de SCIE e medidas de autoproteção

1 - A responsabilidade pela elaboração dos projetos de SCIE referentes a edifícios e recintos classificados na 1.ª categoria de risco, para as utilizações-tipo IV e V e nas 2.ª, 3.ª e 4.ª categorias de risco, decorrentes da aplicação do presente decreto-lei e portarias complementares, tem de ser assumida exclusivamente por um arquiteto, reconhecido pela Ordem dos Arquitetos (OA) ou por um engenheiro, reconhecido pela Ordem dos Engenheiros (OE), ou por um engenheiro técnico, reconhecido pela Ordem dos Engenheiros Técnicos (OET), com certificação de especialização declarada para o efeito nos seguintes termos:

a) O reconhecimento direto dos associados das OA, OE e OET propostos pelas respetivas associações profissionais, desde que, comprovadamente, possuam um mínimo de cinco anos de experiência profissional em SCIE, adquirida até à data de 15 de julho de 2011;

b) O reconhecimento dos associados das OA, OE e OET propostos pelas respetivas associações profissionais, que tenham concluído com aproveitamento as necessárias ações de formação na área específica de SCIE, cujos requisitos tenham sido objeto de protocolo entre a ANPC [Autoridade Nacional de Proteção Civil] e cada uma daquelas associações profissionais;

c) Os associados das OA, OE e OET que não tenham sido reconhecidos para a elaboração de projetos de SCIE das 3.ª e 4.ª categorias de risco e que, comprovadamente, possuam experiência na elaboração de projetos de SCIE da 1.ª categoria de risco, para as utilizações-tipo IV e V, e da 2.ª categoria de risco, podem solicitar a respetiva ordem o reconhecimento para a elaboração de projetos de SCIE relativos apenas a essas categorias de risco.

2 - A responsabilidade pela elaboração das medidas de autoproteção referentes a edifícios e recintos classificados na 1.ª categoria de risco, para as utilizações-tipo IV e V, e nas 2.ª, 3.ª e 4.ª categorias de risco, tem de ser assumida exclusivamente por técnicos associados das OA, OE e OET propostos pelas respetivas associações profissionais com certificação de especialização declarada para o efeito nos seguintes termos:

a) Os associados das OA, OE e OET que não tenham sido reconhecidos para a elaboração de medidas de autoproteção das 3.ª e 4.ª categorias de risco e que, comprovadamente, possuam experiência na elaboração de medidas de autoproteção da 1.ª categoria de risco, para as utilizações-tipo IV e V, e da 2.ª categoria de risco, podem solicitar à respetiva Ordem o reconhecimento para a elaboração de medidas de autoproteção relativas apenas a essas categorias de risco;

b) O reconhecimento dos associados das OA, OE e OET, propostos pelas respetivas associações profissionais, que tenham concluído com aproveitamento as necessárias ações de formação na área específica de SCIE, cujos requisitos tenham sido objeto de protocolo entre a ANPC e cada uma daquelas associações profissionais.

3 - A ANPC deve proceder ao registo atualizado dos autores de projeto e medidas de autoproteção referidos nos números anteriores e publicitar a listagem dos mesmos no sítio da ANPC".

8.º

O dispositivo legal acima transcrito claramente delimita o âmbito pessoal do exercício profissional da atividade em causa, restringindo a liberdade de quem não satisfaça os requisitos inovatoriamente estabelecidos em 2008 e alargados em 2015.

9.º

Com efeito, a liberdade de exercício de uma profissão desdobra-se não só no direito de alcançar, em condições de igualdade, as necessárias habilitações e o direito de satisfazer, sem discriminações, as demais condicionantes da atividade, mas também o direito de praticar os atos jurídicos e os atos materiais inerentes ao seu desempenho (Miranda, Jorge, «Liberdade de trabalho e profissão», Revista de Direito e de Estudos Sociais, n.º 30 (1998), p. 156).

10.º

Portanto, se o preenchimento das condições estabelecidas - não só a inscrição em uma das mencionadas corporações (Ordem dos Arquitetos, Ordem dos Engenheiros ou Ordem dos Engenheiros Técnicos), mas também o reconhecimento por parte das mesmas - é indispensável para quem pretenda elaborar projetos de SCIE e medidas de autoproteção, concebidas nos termos do n.º 5 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 220/2008, de 12 de novembro, atinentes a imóveis classificados em determinadas categorias de uso e de risco, a não satisfação daqueles pressupostos é um fundamento impeditivo do exercício da profissão relativamente a tais espécies de atos.

11.º

Na ausência do que se estatui nos n.os 1 e 2 do referido artigo 16.º, o leque de profissionais que poderiam participar, a título oneroso, na formulação dos referidos planos e das correspondentes providências de aplicação, é indubitavelmente mais vasto.

12.º

Tomando de empréstimo a formulação que o Tribunal Constitucional empregou no Acórdão n.º 255/2002 a propósito de disposição semelhante, o artigo 16.º do regime jurídico da segurança contra incêndios em edifícios "regula matéria legislativa, não se limitando a proteger, promover ou ampliar o exercício da liberdade de escolha de profissão, nem a executar em aspetos de pormenor a regulação do seu exercício".

13.º

Mesmo que esta limitação possa encontrar alguma legitimação material sendo este, entretanto, um aspeto cuja análise de todo o modo escapará ao eixo argumentativo aqui privilegiado - , parece forçoso concluir que toda e qualquer restrição ao âmbito de intervenção profissional em causa está sujeita à reserva relativa de competência legislativa do Parlamento, consoante a alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa, em conjugação com o n.º 1, in fine, do artigo 47.º do mesmo texto normativo.

14.º

Sendo certo ainda que, tanto o Decreto-Lei n.º 220/2008, de 12 de novembro, como o Decreto-Lei n.º 224/2015, de 9 de outubro, este responsável pelos termos ora vigentes do artigo 16.º do regime jurídico da SCIE, são explicitamente aprovados com arrimo na alínea a), do n.º 1, do artigo 198.º da Lei Fundamental, sem a companhia de qualquer autorização parlamentar que habilitasse o encurtamento da liberdade de profissão, passando a exigir a qualidade de arquiteto, engenheiro ou de engenheiro técnico.

15.º

Posto isto, por se referir a direitos, liberdades e garantias e por não constarem de lei da Assembleia da República ou de decreto-lei devidamente autorizado para o efeito, as normas contidas nos n.os 1 e 2 do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 220/2008, de 12 de...

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