Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 595/2018

Data de publicação11 Dezembro 2018
SeçãoSerie I
ÓrgãoTribunal Constitucional

Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 595/2018

Processo n.º 273/2018

Plenário

Acordam, em Plenário, do Tribunal Constitucional,

I - Relatório

1 - O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional requereu, ao abrigo do disposto nos artigos 281.º, n.º 3, da Constituição e 82.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro [LTC]), a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da norma que estabelece «a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovadoramente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos», resultante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal (CPP), na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro.

Legitima o presente pedido com a circunstância de a referida dimensão normativa já ter sido julgada inconstitucional, por este Tribunal, em pelo menos três casos concretos, facto evidenciado pelo Acórdão n.os 429/2016, proferido em Plenário, seguido das Decisões Sumárias n.º 664/2016 (2.ª Secção), e n.º 132/2018 (1.ª secção).

2 - Notificado em representação do autor da norma para, nos termos do artigo 54.º da LTC, se pronunciar sobre o pedido, o Presidente da Assembleia da República, na sua resposta, além de ter oferecido o merecimento dos autos, enviou uma nota, elaborada pelos serviços de apoio à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, sobre os trabalhos preparatórios que conduziram à aprovação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro.

3 - Discutido o memorando, a que se refere o artigo 63.º, n.º 1, da LTC, apresentado pelo Presidente do Tribunal, cumpre elaborar o acórdão nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, em conformidade com a orientação que prevaleceu.

II - Fundamentação

a) Verificação dos pressupostos

4 - A fiscalização abstrata da inconstitucionalidade de uma norma pode ser requerida sempre que a mesma tiver sido julgada inconstitucional em três casos concretos pelo Tribunal Constitucional. Trata-se de um processo de generalização, com fundamento na repetição do julgado (artigo 281.º, n.º 3, da Constituição e artigo 82.º da LTC).

No presente processo, verifica-se que a norma objeto do pedido foi efetivamente julgada inconstitucional, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, em pelo menos três casos concretos (o Acórdão n.º 429/2016 e as Decisões Sumárias n.os 664/2016 e 132/2018, cf. ponto 1), pelo que se considera preenchido o pressuposto previsto no artigo 281.º, n.º 3, da Constituição. O processo foi promovido pelo Ministério Público, que tem legitimidade para tal, nos termos do artigo 82.º da LTC.

Cumpre avançar para a análise da questão de constitucionalidade colocada.

b) Delimitação da questão objeto de fiscalização

5 - O pedido de declaração de inconstitucionalidade incide sobre a norma que estabelece «a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovadoramente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos», resultante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal (CPP), na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro.

Trata-se de uma das dimensões normativas interpretativamente extraíveis do preceito em causa. Efetivamente, este preceito tem a seguinte redação:

«Artigo 400.º

Decisões que não admitem recurso

1 - Não é admissível recurso:

[...]

e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos;

[...]»

Resulta claro que este enunciado não foi julgado inconstitucional em toda a sua amplitude nas decisões que estão na base do presente processo de repetição do julgado. O juízo de inconstitucionalidade proferido no âmbito desses processos de fiscalização concreta refere-se apenas aos casos em que a Relação, revertendo uma absolvição em 1.ª instância, condenou o arguido a uma pena de prisão efetiva não superior a cinco anos.

6 - A norma em causa no presente processo possui, pois, dois elementos caracterizadores: (i) a existência de uma decisão absolutória da primeira instância que é revertida pela decisão do Tribunal da Relação e (ii) essa reversão resultar na condenação em pena de prisão efetiva. Tendo em conta a natureza do recurso previsto no artigo 82.º da LTC e o princípio do pedido (artigo 79.º-C da LTC), essa dimensão normativa contida na alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP é, portanto, a única sobre a qual importa emitir um juízo com vista à declaração de inconstitucionalidade, e não qualquer outra, nomeadamente decorrente do mesmo preceito legal.

Desta forma, não é possível confundir a norma objeto de fiscalização com outras dimensões normativas extraídas do mesmo preceito legal que, apesar de terem sido também já objeto de apreciação pelo Tribunal Constitucional, ficam excluídas do âmbito de apreciação a empreender no presente acórdão. É o caso, designadamente, das normas que estabelecem a irrecorribilidade, respetivamente, do (i) «acórdão proferido, em recurso, pelo Tribunal da Relação que aplique pena privativa da liberdade não superior a cinco anos, revogando a suspensão da execução da pena de prisão decretada pelo tribunal de 1.ª instância» (Acórdão n.º 101/2018); (ii) do «acórdão da Relação que, perante a absolvição ocorrida em 1.ª instância, condene o arguido em pena de multa alternativa, atentando, no âmbito do estabelecimento das consequências jurídicas do crime subjacente a tal condenação, apenas nos factos tidos por demonstrados na sentença absolutória» (Acórdão n.º 672/2017); e, finalmente, (iii) dos «acórdãos proferidos, em recurso pelas Relações que, após decisão absolutória de 1.ª instância, condenem e apliquem pena de multa a arguida pessoa coletiva» (Acórdão n.º 128/2018). Todas estas normas foram objeto de uma apreciação autónoma e distinta da que agora se fará.

c) Enquadramento histórico-legislativo da questão objeto de fiscalização

7 - Desde a aprovação do CPP pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro, o sistema de recursos nele previsto foi já objeto de inúmeras alterações. O direito ao recurso das decisões - condenatórias ou absolutórias - proferidas pelo tribunal de 1.ª instância encontra-se estabelecido desde a versão inicial do Código.

Originariamente, no CPP de 1987 só era admitido um grau de recurso, estabelecendo-se uma divisão «horizontal» de competências entre as Relações e o Supremo Tribunal de Justiça: do tribunal singular recorria-se para as primeiras; do tribunal coletivo e do tribunal de júri recorria-se para o Supremo (artigos 427.º e 432.º). Este recurso para o Supremo Tribunal de Justiça respeitava apenas a matéria de direito (artigo 433.º, sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, n.os 2 e 3, que consagrava - e ainda consagra - o chamado modelo de revista alargada). A circunstância de o recurso ser interposto de uma decisão proferida pelo tribunal singular justificava a sua reapreciação por um tribunal colegial segundo as regras tradicionais da apelação. Diferentemente, assegurada a colegialidade do tribunal no julgamento de 1.ª instância, garantido o contraditório e obtida a imediação, o recurso reassumia a característica vincada de remédio jurídico, em que o mecanismo de reapreciação dos factos se reconduzia a uma mera válvula de segurança. Daí que se justificasse o recurso diretamente para o mais elevado órgão jurisdicional conferindo-lhe instrumento para detetar e diligenciar pela correção de situações indicadoras de verificação de erro judiciário (sobre a temática, v. José Narciso da Cunha Rodrigues, «Recursos», Jornadas de Direito Processual Penal, O novo Código de Processo Penal, Almedina, 1989, pp. 393-394). Eram irrecorríveis os acórdãos proferidos pelas Relações em recurso [artigo 400.º, n.º 1, alínea d), do CPP 1987].

A Lei n.º 59/98, de 25 de agosto, viria alterar este estado de coisas, tendo introduzido a possibilidade de se recorrer dos acórdãos proferidos em recurso pela Relação, salvo nos casos em que a lei estabelecesse a irrecorribilidade (artigo 399.º do CPP). Visando possibilitar o recurso em matéria de facto das decisões do tribunal coletivo - antes irrecorríveis - introduziu-se o duplo grau de recurso, passando assim a admitir-se um primeiro recurso para a Relação das decisões do tribunal coletivo (incluindo a matéria de facto) e um segundo recurso da decisão de 2.ª instância para o Supremo Tribunal de Justiça [artigos 400.º, n.º 1, alínea f), 427.º, 428.º, n.º 1 e 432.º, alínea b) do CPP]. A admissibilidade do duplo grau de recurso foi, no entanto, mitigada pela introdução de fatores de limitação do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça baseados na gravidade da pena e na regra da «dupla conforme» (i.e., as decisões da primeira e segunda instância serem conformes).

8 - É neste contexto de contenção dos efeitos ao duplo grau de recurso, tendo em vista prevenir uma excessiva elevação de pendências no Supremo, que surge a alínea e) no elenco estabelecido no n.º 1 do artigo 400.º do CPP, excecionando da regra geral de recorribilidade (artigo 399.º) os «acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos, mesmo em caso de concurso de infrações, ou em que o Ministério Público tenha usado da faculdade prevista no artigo 16.º, n.º 3». As restrições previstas à recorribilidade em segundo grau conduziram a que, apesar do aumento da possibilidade de recurso em matéria de facto, ainda pudessem considerar-se residuais as hipóteses de conversão de uma absolvição em condenação por decisão irrecorrível da Relação.

A alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º foi alterada em 2007, através da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, tendo o critério da pena abstratamente aplicável (sem prejuízo da faculdade prevista no artigo 16.º, n.º 3) sido substituído pelo da pena concretamente aplicada. Em conformidade, a alínea e) passou a estabelecer a irrecorribilidade «de acórdãos...

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