Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 376/2018

Data de publicação18 Setembro 2018
SeçãoSerie I
ÓrgãoTribunal Constitucional

Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 376/2018

Processo n.º 679/16

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional

I - Relatório

1 - O Provedor de Justiça vem, ao abrigo da alínea d) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa, requerer a fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade «da norma constante da alínea d) do n.º 1 do artigo 22.º da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio, e, quanto à remissão para a mesma feita, das normas constantes dos n.os 2, 3 e 4 do mesmo artigo, ao condicionarem a concessão da licença ou autorização para o exercício da atividade de segurança privada ao requisito da inexistência de condenação, por sentença transitada em julgado, pela prática de crime doloso» (cf. fls. 2).

2 - No seu requerimento de pedido de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade das normas acima identificadas, o Provedor de Justiça apresentou os seguintes fundamentos (cf. fls. 2 a 8):

«1.º

"Está em causa o regime de licenciamento ou autorização do exercício da atividade de segurança privada, em especial no que se refere ao requisito da inexistência de condenação, por sentença transitada em julgado, pela prática de crime doloso, nos termos definidos na citada alínea d), do n.º 1, do artigo 22.º, com as remissões efetuadas pelos n.os 2, 3 e 4 do mesmo dispositivo legal.

2.º

Tal significa que estas normas impedem, como efeito acessório necessário de condenação criminal, a concessão do cartão de vigilante para exercício da atividade de segurança privada, em ofensa ao direito fundamental à liberdade de profissão, no enquadramento acima indicado.

3.º

Segundo o n.º 1 do artigo 22.º da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio, «os administradores ou gerentes de sociedades que exerçam a atividade de segurança privada devem preencher, permanente e cumulativamente» os requisitos ali elencados. Nos termos da sua alínea d), uma destas condições é «não ter sido condenado, por sentença transitada em julgado, pela prática de crime doloso previsto no Código Penal e demais legislação penal».

4.º

De acordo com os n.os 2, 3 e 4 do mesmo artigo, aquela exigência vale não só para os administradores ou gerentes de sociedades, mas também, respetivamente, para o pessoal de vigilância, o diretor de segurança, o responsável pelos serviços de autoproteção e os formadores de segurança privada.

5.º

Neste horizonte, a existência de uma condenação irrecorrível em virtude de cometimento de um delito doloso acarreta, de forma imediata e obrigatória, a impossibilidade de obtenção do respetivo título administrativo (alvará, licença ou autorização) indispensável para o desempenho da atividade de segurança privada.

6.º

Está-se seguramente perante um efeito automático da punição, que inviabiliza o acesso a uma determinada profissão e seu posterior exercício, em flagrante violação das normas constitucionais indicadas.

7.º

A Constituição da República Portuguesa assegura a todos, indistintamente, a liberdade de escolha de profissão (n.º 1 do artigo 47.º), «salvas as restrições legais impostas pelo interesse coletivo ou inerentes à sua própria capacidade».

8.º

Não se trata, como se viu, de uma garantia absoluta. Na medida em que este direito fundamental está sujeito à reserva de lei restritiva fundada na existência de interesse público (n.º 1, in fine, do artigo 47.º), assume relevância central neste território a lógica de ponderação de bens e interesses embutida no princípio da proporcionalidade (n.º 2 do artigo 18.º). Isso significa que as limitações apenas serão legítimas se refletirem uma determinada intencionalidade de tutela de outros direitos constitucionalmente protegidos e se não contrariarem a proibição de excesso.

9.º

Para além destas condições existe ainda uma barreira inultrapassável, também fixada no texto constitucional: em nenhuma circunstância a perda de um direito profissional pode resultar ope legis como efeito direto, forçoso e inafastável de uma pena ou de uma condenação criminal (n.º 4 do artigo 30.º).

10.º

Se o exercício do jus puniendi estatal não deve implicar a «morte profissional» do criminoso, o legislador não pode associar mecanicamente à sua punição uma proibição geral e abstrata que restringe eo ipso, sem a mediação densificadora de um acurado juízo de adequação e de necessidade no caso concreto, o seu direito de escolher livremente a profissão a exercer.

11.º

Na base deste limite absoluto ou incondicional - porque blindado em relação ao jogo de ponderação típico do processo de restrição legal dos direitos fundamentais - está a legítima preocupação de garantir algumas condições de partida imprescindíveis para a efetivação do programa de ressocialização do delinquente.

12.º

Para tanto, a norma constitucional afasta determinadas consequências estigmatizantes, dessocializadoras e criminógenas que prejudicam sobremaneira a realização da finalidade, também constitucionalmente assumida, de proporcionar ao criminoso as bases para a sua reinserção comunitária.

13.º

O que se pretende é impedir que à imposição de uma pena seja legalmente amarrada, de maneira linear e contínua, uma outra sanção jurídica com gravidade equivalente, ou seja, uma outra restrição de direito com repercussões substanciais sobre o projeto de vida do cidadão condenado em pena criminal.

14.º

Isoladamente considerado, o facto criminoso não tem o condão de fundamentar, por si só e abstratamente, a denegação do título de exercício. Compete à Administração, sempre habilitada pela lei, efetuar no caso concreto uma valoração autónoma da conduta prévia do requerente, ponderando acerca da adequação e da necessidade da restrição à sua liberdade de profissão.

15.º

Isso aplica-se mesmo naqueles casos em que é possível identificar alguma conexão normativa entre a natureza do delito cometido e a natureza da atividade profissional pretendida: também em este cenário será irrenunciável a interposição de um exame administrativo capaz e avaliar cuidadosamente a gravidade do facto praticado e a idoneidade cívica de cada candidato que almeja exercer a atividade de segurança privada, bem como os aspetos que se prendem com as perspetivas de ressocialização do agente.

16.º

Somente após esta ponderação será possível decidir sobre a virtualidade da condenação para fundamentar a recusa de concessão da licença requerida.

17.º

Ao impedir, em termos gerais e abstratos, sem qualquer mediação ponderadora através de uma condenação judicial ou decisão administrativa concreta, o exercício da atividade de segurança privada por quem foi definitivamente condenado pela prática de crime doloso, a alínea d), do n.º 1, e, por remissão, os n.os 2, 3 e 4 do artigo 22.º da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio, estão em clara rota de colisão com os supracitados dispositivos constitucionais.

18.º

É interessante sublinhar, uma vez mais, que a este respeito nem sequer se coloca um verdadeiro problema de balanceamento de direitos fundamentais a ser resolvido, no plano legislativo, segundo critérios de proporcionalidade.

19.º

Por maior força que pudéssemos emprestar ao argumento sobre a verificação de interesse público relevante a favor de uma fixação legal de efeitos necessários ou automáticos das penas, existe a montante uma proibição categórica imune a todo e qualquer tipo de consideração utilitarista de custo-benefício. O texto constitucional é, aliás, bastante enfático neste sentido (n.º 4 do artigo 30.º): «nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.

20.º

Nesta direção vai também a jurisprudência firme e constante do Tribunal Constitucional, ao considerar que aqueles efeitos materialmente equivalem, na prática, a uma outra pena, que, por isso mesmo, deve estar sujeita às regras próprias do Estado de direito democrático, designadamente o princípio da reserva judicial, o princípio da culpa e o princípio da proporcionalidade da sanção. Basta mencionar, por exemplo, os acórdãos n.os 154/2004, 239/2008, 368/2008 e 25/2011.

21.º

Por sua clareza e relevância, merece transcrição um fragmento do mencionado Acórdão n.º 25/2011:

«O artigo 30.º, n.º 4, da Constituição, estabelece que «[N]enhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos».

Como já se escreveu no Acórdão n.º 368/08, esta norma constitucional «visa salvaguardar que qualquer sanção penalizadora da conduta punida, independentemente da sua natureza e medida, resulte da concreta apreciação, pela instância decisória, do desvalor dessa conduta, por confronto com os padrões normativos aplicáveis. O que se proíbe é a automática imposição de uma sanção, como efeito mecanicisticamente associado à pena ou por esta produzido, sem a mediação de qualquer juízo, em concreto, de ponderação e valoração da sua justificação e adequação, tendo em conta o contexto do caso. E a proibição é necessária para garantia de efetivação de princípios fundamentais de política criminal [...]». Ou seja, como se sustentou no Acórdão n.º 284/89: «[...] com tal preceito constitucional pretendeu-se proibir que, em resultado de quaisquer condenações penais, se produzissem automaticamente, pura e simplesmente ope legis, efeitos que envolvessem a perda de direitos civis, profissionais e políticos e pretendeu-se que assim fosse porque, em qualquer caso, essa produção de efeitos, meramente mecanicista, não atenderia afinal aos princípios da culpa, da necessidade e da jurisdicionalidade, princípios esses de todo inafastáveis de uma lei fundamental como a Constituição da República Portuguesa que tem por referente imediato a dignidade da pessoa humana». A proibição dos efeitos necessários das "penas" estende-se, por identidade de razão, aos efeitos automáticos ligados à "condenação" pela prática de certos crimes (v., neste sentido, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, Coimbra, 2007, 505). E é aplicável não apenas no âmbito do ilícito penal, mas também no âmbito do ilícito administrativo, nomeadamente, quando estejam em causa efeitos de ilícitos...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT